o teatro de lona
Eu tinha acho que uns quatro anos quando pela primeira vez me vi debaixo da grande lona de um circo.
Eu era um garoto franzino, do tipo que aparentemente está sempre assustado. Minha mãe caminhava ao meu lado, de olhos em mim, fazia isso quase sempre, porém jamais me amparando com qualquer tipo de controle. Ela me treinava aos pouco para que eu suportasse uma possível solidão repentina, coisa que aconteceu a ela, logo depois da última grande guerra, quando era uma criança mais ou menos de minha idade. Por essas coisas eu, apesar de estar sob os olhos da velha senhora, sentia-me responsável por mim mesmo, pois fui doutrinado a sempre estar na espera por uma catástrofe, ou qualquer outra coisa que a humanidade ou a natureza possam inventar. Escolhi um lugar que achei conveniente nas fileiras de cadeiras centrais. Dei uma olhadinha para trás e vi minha mãe conversando com um desconhecido. Era um homem alto, de pele amarronzada e cabelos lisos ao ombro. Seus olhos, enquanto conversava com a velha senhora, dissecavam toda a platéia, como se buscassem algum ponto em especial.
O espetáculo logo começou e as pessoas ao meu lado começaram a gritar e a pular entusiasmadas. Eu não achava nada daquilo entusiasmante. Nem a mulher imensamente gorda, que ameaçava saltar de uma altura indizível; nem o homem que esbofeteava leões, como se estas feras fossem débeis e ridículas; nem o equilibrista que por sobre a platéia caminhava tranqüilo numa corda, correndo o risco de despencar sobre nossas cabeças. Acreditem, eu dormi no meio do espetáculo, e acordei com o menino do meu lado me sacudindo e dizendo: “Ei, garoto esquisito, ele está falando com você”.
Como se me tivessem jogado numa realidade da qual eu ainda não lembrava o contexto, levei meu olhar para aquele que estava no picadeiro e apontava para mim. Quando meus olhos deram com os olhos dele, ele sorriu. E quando ele sorriu, toda a platéia gargalhou por muito tempo.
Então ele ergueu as mãos e os risos cessaram.
Seu rosto era branco e parecia sempre triste. Sua boca era marcadamente negra e parecia maior que o normal, por isso, seu sorriso era com certeza o maior sorriso que eu já tinha visto. Ele me lembrava em muito o homem que há pouco conversava com minha mãe.
Olhei para os lados e percebi que eu era o centro de quase todos os olhares, inclusive do palhaço sobre o picadeiro. E eu, treinado para me sentir só, nas mais diversas catástrofes, acabava de descobrir os olhares estrangeiros em direção às minhas terras. Invasores benignos ou malignos? Universos tão infinitos, que por mais que eu multiplicasse meus superpoderes, jamais conseguiria a todos descrever.
O palhaço então indagou numa voz grave:
“qual seu nome? Menino que não ri”.
Serafim, eu respondi.
A platéia quase explodiu numa gargalhada. O palhaço levantou as mãos novamente, os risos novamente cessaram. Ele então indagou à platéia:
“Amigos, que riem de mim. Qual meu nome?
Todos que estavam ali responderam quase em uníssono:
“SERAFIN!”
Os olhos do palhaço pareceram-me mais tristes, e toda sua expressão facial também entristeceu.
E desde disso eu percebi, que a solidão seria pra mim um ideal longínquo. E ninguém, nem ele mesmo, o tal palhaço de riso largo, precisou me dizer que eu tinha o mesmo nome de meu pai, e consequentemente o mesmo destino. Pois, foi desde aquele dia que deixei de ver, na realidade, a mulher que me gerou.
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