quarta-feira, 29 de março de 2017

As Peças em reencontro 12

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Fiquei pensando que aquele passarinho já cantava na pele de outros passarinhos que viveram suas breves vidas no meu tempo de infância. Em meio a toda violência, em meio a toda inocência ele estava lá, na sua samsara, cantarolando para o seu sol alógeno, no seu milésimo renascimento.

Naqueles tempos eu ouvia a voz do sonho. Dobre os joelhos, a voz dizia. Dobre os joelhos e voe! Esse mundo tão inexplicável acabava por me salvar. E meu olhar a cada dia ia ficando mais distante, alcançando distâncias que nunca fui. Eu me retirava das horas mortas e me aquietava num alpendre que construí só pra caber alguém do meu tamanho. Lembro da epidemia de uma doença da várzea que levou alguns de meus amigos. A velha senhora não me permitia sair à rua para distrações fora de hora. Ela temia que o mal me atingisse e me aprisionasse naquela morte terrível e lenta que levou tantas crianças.

O que me restava além do Moodjong eram os livros que chegaram até mim pelo meu pai e irmãos, que ficavam arrumados numa estante que separava a sala de jantar da sala de estar. Mas havia outros que me fascinavam, escritos por velhos sábios de eras muito distantes. Ipan Li costumava me emprestar seus livros em português. Eram livros que pareciam nunca ter sido abertos,  que tinham cheiro de tinta de imprensa e armários de cedro...

Eu ficava no meu alpendre mergulhado naquelas palavras... Pacificado, como uma criança sonolenta.

Se as vidas passadas da samsara do passarinho do porto já viviam a cantar nas madrugadas, eu não lhes ouvia o canto. Quem sabe esse meu triste amigo madrigal já estivesse lá enquanto eu sonhava. Não havia melhor lugar no qual poderia estar. Digo isso porque sei que os sonhos são o melhor lugar do coração de uma criança.
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terça-feira, 28 de março de 2017

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Vi homens serem assassinados diante de meus olhos. Homens esfaqueados correndo lavados de sangue. já ouvi os ruídos que projeteis fazem ao atingir um corpo humano. ouvi também o estampido de balas direcionadas a mim e os estilhaços dos tijolos do muro às minhas costas que atingiram. Já apertei por três vezes um gatilho. por três vezes escapei de atingir alguém com um tiro. Já fui espancado. Já tive que espancar pra sobreviver. Vi amigos serem golpeados e outros serem mortos. Cresci num cenário violento... absurdamente violento.

tenho cicatrizes e lembranças ruins. Pra sobreviver ali, eu precisava sobreviver lutando. O caminho da escola era cheio de surpresas e eu precisava entender que deveria haver um modo... um outro modo de viver.

Tive que aprender a lutar... e meus mestres eram homens justos e rudes. Aprendi bater forte... aprendi a me defender de todos que se aproximavam demasiado. Era o meu jeito... eu precisava bater antes. E quando aprendi a bater eu quis me tornar o melhor. Quando aprendi a golpear, entendi que aquela era a única maneira...

Na tranquilidade de minha casa, onde eu não tinha a privacidade de um quarto, eu me escondia entre as prateleiras e os livros de meu pai. Rabiscava desenhos de meu dia a dia e escrevia o que se passava no lugar onde as sensações pulsavam. Havia cicatrizes e calos em meus punhos. Havia revolta e medo. 

Hoje tento cultivar uma paz em mim. Mas nasci numa guerra, sobre estivas e miséria. Tudo em mim foi forjado entre a lama e o céu. Sou oito ou oito mil. O que essa minha história me tirou? muita coisa. Perco muito por ser um sobrevivente. O que ganhei foi a vida... a pós vida...

E se eu não tivesse lutado, estaria morto como a maioria de todos os meus pares daquele tempo. Não tenho orgulho da minha infância real. Mas guardo o tesouro de uma infância que vivi nos meus momentos de solidão, nos sonhos de um olhar que mirava ao longe. Por vezes a ferocidade me aflora pelos poros... perco a paciência e digo coisas agressivas. Sei que estas pessoas de agora não são mais aquelas de meu passado, mas minha guarda está sempre alta e meus punhos do sol estão sempre prontos, pra defender em pon sao e atacar com a precisão dos selvagens.
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sexta-feira, 24 de março de 2017

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Naquele dia acordei disposto a ver tudo do modo inverso. Deleitei-me com o inverso. Lembro que foi olhando pra uma flor.

"De hoje em diante vou acreditar que é esta flor amarela a responsável em fazer o sol girar... e assim seu nome deverá ser dito no modo imperativo: "Gira sol!""


Tive uma fé profunda nessa minha nova ideia. mesmo depois de uma frustração com o óbvio, ainda me pego em indagações subjuntivas:

E se fosse mesmo o girassol um gira sol?

Nunca fui diferente do passarinho do porto, exceto pelo fato de que ele nunca deixou de gorjear à lampada.
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segunda-feira, 20 de março de 2017

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O técnico de som se incomodou com os arranhões das malas cenográficas do "Jardim". Pobre homem perdido. Nina ainda respondeu algo, agradecendo brevemente a ignorante preocupação dele. As malas precisam de cicatrizes, diria-me Nina num lugar menos ruidoso.

As cicatrizes nas malas dizem muito mais das viagens, que os próprios verbos do viajante.

Fico pensando a respeito disso, dessas aproximações indevidas e invasivas e isso... cada vez mais me leva a querer entender as distâncias que impomos entre nós, como humanos, como criadores até. Como criaturas famintas por um sossego faminto como o dos jacarés.

Quando a borboleta voa em cena, ela observa as flores onde pode pousar. Não sei ao certo como funciona essa escolha dela, mesmo que ela esteja pendurada em minhas mãos e pareça parte de mim. Creio que algumas crianças, cheias de espírito de flor aparecem pro espetáculo com o afã de receberem um pouso, pelo meno invento essa crença em mim, pra que tudo tenha um sentido mais meigo. Creio até que já há algumas que esperam ansiosas pra que isso aconteça, com certa certeza, moldando um comportamento, como os devotos em um templo. Elas de certa forma entendem, é um jogo, é a borboleta que escolhe a flor, elas sabem. E como são imprevisíveis as borboletas. e como são imprevisíveis as flores e as crianças.

Aprendi isso ao acaso, quando borboletas azuis apareceram numa manhã e começaram a pousar num pé de sombra que nascera furtivo no saguão de minha casa. Eu dizia a minha pequena Aísha que isso não era menos que um milagre. Aprendemos juntos, eu e ela, que nos restavam duas maneiras de fruir borboletas livres. Uma seria flanando pelos campos com os olhos atentos; a outra, seria cultivando um jardim.

Decidimos pelo jardim.

Minha vida deu uma reviravolta e cá estou ainda cultivando, ornado por plantas de braquias coloridas. Ontem vi, voando por sobre ele, esse jardim meu de agora, pobrezinho ainda de flores, uma borboleta cor de laranja...

Quantas viagens para voltar ao mesmo lugar de outrora? Quantas cicatrizes nas malas. E nunca é demais sorrir pra cara do tempo que deu uma volta enorme para nos esfregar no peito uma ânsia estranha por viver mais e testemunhar pacientemente o que mais vier, antes da última hora, durante o pouso final da última borboleta, cor de laranja, cor de todas as coisas.

Se o técnico de som soubesse que as malas são borboletas...

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terça-feira, 14 de março de 2017

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Hoje estou diante deles, que me olham com seus olhos espichados.

O tempo estabeleceu uma distância segura entre nós, criaturas distintas. O movimento, ciência e arte que se manifesta através dos fios dos títeres, é um veículo, um meio termo, um sobreviver em cooperação mútua.

No entanto, estou cada vez mais distante. O controle da regulação da distancia se tornou algo com o qual não quero mais ter questão. 

No terreno onde a armadilha mordeu a perna do gato, não anda por lá o gato com a tranquilidade que andaria em seu quintal.

Fiquei pensando no porto de outrora, abandonado, soturno e com sua lâmpada âmbar  quebrada. Fiquei calculando que idade teria o passarinho se ele pudesse viver tanto...

Ah... mas ele está vivo...

está sim.,

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segunda-feira, 13 de março de 2017

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O tempo passou, afastei-me do porto e senti a paz de não saber a resposta que julguei tão importante por um longo tempo. 

Vi minhas mão se enchendo de fios de algodão e tive a graça de entender a diferença entre movimento e vida...

entre o mero movimento e o profundo perfume da vida.

Ah, que questão pesada em mim, trazida por meu velho pai que morreu num leito, ainda movimentando o corpo em espasmos de vontade de ficar. Mas me diziam que aquilo eram apenas movimentos sem vida, insistentes. O velho homem de beira-rio já não existia naquele corpo e o pai que um dia me presenteara com elefantes de açúcar desaparecera para sempre dentro daquele corpo que insistia em manter sua fisionomia intacta.

Silencio, tão nobre amigo... arrancando de mim essas lágrimas que provém da incorfomaçao de ser enganado pelo poder do tempo. E ainda hoje, por mais que ruidoso eu me mantenha, o silencio de todas as perdas rasga esse véu, essa pele de tímpano... algo que ofusca a orquestra... algo que lança num vazio...

Perto de meus ouvidos uma voz sussurrou docemente.

"Meu coração é frágil e acredita fácil na felicidade. Mas o tempo e as dores me deram braços de ferro, capazes de proteger aquilo que me é mais precioso. Ainda assim algo escapa vez ou outra... "

O fio da vida. Algo pelo qual vale a pena gorgear...

Uma luz do porto eloquente como o sol

Algo pelo qual vale a pena gorgear...


um fio de vida.

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domingo, 5 de março de 2017

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Eu sabia que tinha encontrado uma pedra. Pedra é como costumo chamar as ideias que em meus pensamentos podem se transformar numa construção. O pássaro do porto era a minha mais nova pedra. Quando encontro algo assim, fatalmente se abre um grande espaço em branco em tudo o que penso, no centro coloco a pedra e tudo o que ela representa e pode representar. O que pode me fazer ir adiante, entrar na pedra, transformá-la, lapidando suas arestas com energia e afeto, ver qual forma ela me esconde, ou qual revelação ela me guarda, são as coisas que sinto dentro de minha alma. Tenho a capacidade de fazer um julgamento frio e anterior sob um vasto período de insônia e vigília, indago-me se tenho alguma certeza de que aquilo não oferece nenhum perigo, reluto muito... antes de estabelecer um movimento... naquela direção.

Nunca tive o domínio das escolhas certas, sinceramente. Dediquei-me a encontrar um sistema de julgamento, mas  em muitas oportunidades errei, meu sistema sempre foi falho e incompleto. E o erro, ai de mim,  é uma explosão absurda capaz de desintegrar todos as pequenas e grandes  construções que me mantém equilibrado. 


No caso do passarinho do porto, vi de imediato que não me causaria mal e que  tinha em seu espírito uma revelação necessária, enviada a mim, numa linguagem cósmica. 

Eu precisava ficar atento...

Eu precisava acima de tudo... Fruir profundamente o que aquilo me trazia. De imediato vi que era uma pedra preciosa, que brilhava tanto quanto um sol que se escondia dentro da luz do porto. O passarinho tinha um sistema parecido ao meu. E isso me fazia bem. Quando essa boa sensação me acolhe, num suspiro de alívio, costumo entender  o que sinto como o que sente aquele que numa terra estrangeira encontra um irmão, que exala um doce perfume do lugar onde nasceu.
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sexta-feira, 3 de março de 2017

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É que tem aquele lugar da cidade onde tudo dela é montagem, mosaico, embuste

Um lugar onde tudo estranhamente se configura lado a lado, como numa feira, arrumada de um modo que agrade ao rei.

Há outros lugares onde cada pequena peça do mosaico é o universo e a verdade. Desses lugares ninguém gosta de falar...

lá poucos gostam de estar...

E portanto, disso, quase não se lê poemas.
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quinta-feira, 2 de março de 2017

As peças em reencontro 3

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Tristeza sempre me foi um estado misterioso, uma terra remexida, pronta pra receber sementes. 

Tristeza... 

E se ele souber? Indaguei-me. Deve saber sim. Esses bichos são muito sábios. O pássaro do porto se alegrava por gorjear à luz âmbar? Ora, se eu pensasse assim, poderia dormir nas próximas noites sem ser incomodado por essa louca vontade de quebrar lâmpadas alheias e libertar inocentes.

Mas por dezenas de noites seguidas...

Impossível...
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As peças em reencontro 2

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"O anjo que lutava para curar os frutos de tanta intolerância era intolerante". Essa frase que vi escrita na contracapa me fez desistir de ler aquele livro. Eu estava numa palafita e da janela era possível ver as aguas cinzas da baía sob o laranja do ocaso. Eu me vestia sempre com camisetas brancas e calças largas que foram feitas com os tecidos das cortinas da casa. Era como se Maria Rainer tivesse se metido na minha vida. E eu fumava sempre naquela janela, esperando que alguma qualquer coisa me valesse por estar vivo. Nada valia o esforço presente e ínfimo naquela vida vazia, sem ganhos... naquele novembro de 2006... naquela janela... naquela palafita quente e tomada por mosquitos.

Pude ouvir o canto de um único pássaro e achei que ele cantava pro sol que estava se pondo. Mas o sol se foi e escureceu ao mesmo tempo que a forte lâmpada  do porto se acendeu.

O pobre pássaro continuou a cantar, atravessando a noite. E eu dormi com aquilo, de inicio supondo ser um milagre bom. Mas ao amanhecer, eu já estava convencido de que aquela cantoria era fruto de engano.

O pássaro do porto cantava para a luz âmbar alógena que se acendia entre o poente e o nascente do sol.

"O coitado deve estar exausto", foi o meu primeiro pensamento matinal.

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