quinta-feira, 17 de julho de 2014

A GARGANTA 4



Acho que vou vender a casa. Não fique surpresa. Sei que você pode dizer que não consegue me imaginar vivendo em algum lugar diferente. Eu já fiz de tudo para transformá-la num outro lugar. Quebrei paredes, abri outras portas mas... sei lá. Eu deveria acreditar que as casas possuem alma? Por mais que elas mudem de cara... carregam coisas no ranger de suas dobradiças.

Ontem, no forte do presépio, cheirei a pele de meu joelho e senti o cheiro dos compartimentos dessa casa. Ela está entranhada em mim desde que nela plantei os pés pela primeira vez.

Se você pudesse ver, há lençóis espalhados e roupas por lavar. Markova desapareceu e tenho que freqüentemente ler rótulos diante do fogão.

Dia desses acordei com um vozerio. Espiei através da porta entreaberta. Meus vizinhos estavam limpando o que restou do jardim. Aquilo me causou algum mal porque me deixei  ainda mais fechado, como que invadido, desrespeitado, como uma bicha feia e puritana do serviço público, que acabou de ser xingada pelo mendigo da escadaria.

Na única visita que Rosana me fez  arrancou as folhas do calendário. Ao todo ela arrancou cento e vinte e sete folhas. “Já fazem cento e vinte e sete dias”, ela me informou.

“Não pode deixar ela sozinha. Ela precisa de você”.

Cento e vinte e sete dias. O pedaço meu que se move talvez ainda não se garanta.

Cento e vinte e sete dias de quê? sem Markova... É sim, a primeira folhinha marcava um 22 de janeiro. Dia 21 foi o dia em que ela decidiu deixar eu me foder sozinho.

Ela me suportou por muito tempo. Rosana, antes de ir embora me lembrou que tudo aquilo já durava mais de dois anos e que estava indo embora desta cidade. Quando bateu a porta ao sair... senti algo estranho na garganta. Lembrei dos fios de cabelo da menina. A sentença de Rosana, “ela precisa de você”, começou a tomar corpo em meu juízo.

Dois dias depois quando entrei naquele lugar frio e pude ver novamente suas mãos pequeninas senti novamente aquele estranho ardume na garganta e meus olhos começaram a ferver e minha respiração começou a ficar difícil.

Muitas coisas que acontecem comigo me mostram que meu corpo é insuficiente. Devo ser um homem com um martelo dentro desse pote de vidro transparente e inquebrável. Um homem que de vez em quando fica nervoso...

Encostei minha boca em sua testa. Ela acordou e quando me viu seus olhos ainda com sono começaram a avermelhar.

“Eu ainda não estou pronto”, eu disse antes que ela falasse qualquer outra coisa.

“Não tem problema”, ela me respondeu olhando bem direto pra mim, como um raio de sol que atravessa furtivamente um grande salão.

“Quando eu estiver pronto, espero que seu perdão esteja esperando ansioso por mim”.


“Quando você estiver pronto, tudo vai estar bem”.

CLARÃO E CHUVA FINA 3

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O guarda rodoviário bateu no vidro lateral. O pequeno carro verdemusgo era capaz de cento e quarenta... mesmo se tremendo todo, depois de desistir de desistir, o guarda me informou que a estrada estava interditada.  Lá adiante, após a fila imensa havia um clarão...

Havia um clarão.

Entrei na chuva e ela me molhou aos poucos enquanto aos poucos eu caminhava rumo ao clarão.

Quase acreditei em almas


Quase acreditei em tudo o que me disseram...

Quase entendi o clarão como as vozes dos meus amores a sussurrar um adeus leve, naquela noite de chuva fina.


MARKOVA 2

Quando Markova chegou, pude ouvir os ruídos de suas inúmeras tentativas de abrir o portão. passou por mim resmungando alguma coisa sobre chaves, cadeados travados e chuva. Eram sete e trinta. Achei que essa maluca gorda não fosse aparecer por aqui hoje, pensei que o dia me deixaria em paz de sono no qual eu pudesse não me importar em deixar o computador ligado a rolar mil vezes a mesma coisa. O primeiro gesto de Markova após passar por mim foi puxar o plug. Desligou tudo, arrastou a cortina e desligou o frio da central de ar.

“Caralho”, resmunguei.

“Tá bom disso”, Markova e sua voz de quem fala dentro de um barril. Sentou ao meu lado, senti o colchão afundar e as molas estalarem. “Quando a gente enterra, acaba”.

Quando a gente enterra acaba?

E as sementes? “Quando a gente enterra acaba”... de onde essa preta gorda tirou isso?


A menina tinha pendurado um artefato no lugar onde antes era um reino de uma lâmpada incandescente. Markova sorriu quando olhou pra coisa. Coisa de gente inocente. Acredita que ela ficou me dizendo que aquilo servia para fisgar sonhos bons? Acho que não tem funcionado bem. Talvez tenha um efeito estranho. talvez deva se chamar "apagador de sonhos". Desde quando ela pendurou essa coisa aí não tenho lembrado de nenhum sonho. Acordo como se a noite não tivesse passado. Noite sem passado... Se eu não tivesse que defecar agora, pegaria uma caneta e rabiscaria um poema com isso.

"Acho que você deveria começar a esconder essas coisas", apontava com os olhos para um jornal de cinco dias.

Não adianta...  por mais que eu esconda... não adianta, as pessoas pelas ruas me reconhecem e ficam me olhando com cara de dó, como se eu fosse o desgraçado mais desafortunado da terra.

Ela encheu um copo com água fria que gotejou com bálsamo divino e empurrou para que eu bebesse.

É estranho um cara que não acredita em deus se pôr a beber bálsamo divino.







quarta-feira, 16 de julho de 2014

CARNEGA - 1


Ouço agora a música catastrófica e nem me surpreendo ao constatar que ela não poderia ser ouvida por mim nos tempos em que eu andava às quedas. Se eu a ouvisse naqueles tempos, rápido me daria ao fim. Eu tentaria encontrar motivos para justificar um desânimo que me ocupava;  quem sabe me chorasse ou lamentasse a  vontade de desistir de tudo. Deixaria isso  para os frescos. A mim, o que me sobraria seria suportar a dor, como um guerreiro velho.

Hoje entendo que devo lhe contar a história desde seu início. Uma punição isso. Mas se eu não vencer esse sentimento odioso, o veneno modesto de minha culpa matará o mundo inteiro ao redor de meus pés. 

Sondei a quantidade de coisas escritas. Milhares de páginas.

Pensei que poderia reorganizar, avaliar e corrigir tudo, num estado de espírito completamente equilibrado, insensível.

Antes, quando eu me deparava com aquelas palavras, a cara do demônio, que me consumira, costumava reaparecer  profundamente tentadora. Dessa vez anseio uma diferença nessa novela.

Antes, instintivamente eu desejava uma parede protetora, com uma larga sombra ao sol, mesmo que suja e rabiscada; um alucinógeno, que me fizesse não depender da realidade que a lembrança me jogava na cara. Agora me vejo frio, como quem  por muito tempo carrega nas costas o que seria o cadáver de um único filho.

Tenho uma lembrança marcante. Essa lembrança não mostra o começo de tudo, mas representaria  bem o papel de prefácio, se minha história merecesse algum tomo:

Estou dentro de um pequeno carro verde musgo e sigo pela estrada um ônibus. Havia sido tomada uma decisão. Eu seguia o ônibus. Posso ainda imaginar,sentir até,  a tristeza em mim daquele momento. Fui tirando o pé do acelerador, o ônibus aos poucos foi se afastando rumo ao sul. No retrovisor as dezenas de dezenas de outros carros; seres humanos com suas vidas, que não guardavam em suas almas um lugar sequer de interesse às minhas sinas.

Fiquei parado no acostamento por cerca de duas horas. A cidade inteira parecia passar por mim. Meu olhar estava anestesiado. Por milhares de segundos virei uma pedra... ao largo,com a cara ardendo e os olhos vermelhos.

Restara  um buraco, um vácuo, bem no meio de tudo.

Eu poderia ter  acabado com aquilo. Eu poderia ter feito aquela porra de lata velha com rodas parar. Eu entraria lá com os olhos esbugalhados confessando que não seria possível viver o resto de meus dias afastado  da vida que se formou ao redor. Espancaria o motorista com cara de tédio...

Talvez a vida que me restara não me era mesmo um lugar de decisões apaixonadas e heróicas. O choro idiota secou enquanto as luzes dos carros noturnos cortavam minha vista em minha estrada de volta. Em pouco tempo eu já me encontrava ao começo de um sono, numa casa cercada de árvores ao largo de uma estrada remota, com  muitas noites adiante...muitas noites, arquitetando os diversos modos de esquecer toda aquela merda. Jurando, por obrigação e sobrevivência, acreditar na força que por fé morava em mim. Uma força que dependia de uma cegueira...

Estranhos sonhos vieram me visitar depois daquela noite. Eu fechava os olhos, eu deixava que a minha morada me devorasse.

Eu e a menina costumávamos cuidar do jardim. Não era o jardim de um rei, não se abriam flores raras nele, nem pássaros mágicos, nem borboletas azuis...  era nosso pequeno jardim. E então aquele lugar de sutil dedicação foi se enchendo de descuido e sombras, depois que ela foi embora. A casa, que crescia a cada dia muito mais, foi ficando imensa. Eu me perdia nas suas minúsculas  salas, eu me perdia onde quer que eu estivesse. De dentro da casa, apesar de tudo,  passei a ouvir melhor o mundo. Tornei-me um refugiado. A casa tornou-se refúgio.

Vesti-me com os tecidos que serviram antes para ornar as mesas e encobrir as janelas. O sol foi impedido de entrar e iluminar o chão onde eu pisava. Eu, que achava serem os planos desenhados a única solução, caía em mim mesmo, desolado, improvisando. Talvez eu tivesse cometido um erro. Talvez eu tenha tomado a decisão errada. Mas era tarde... tarde até mesmo para criar possibilidades e se deixar perder em subjuntivos.

Como o jardim se tornou impossível de cuidar, paguei um homem para derrubá-lo. Tudo se transformou num amontoado de folhas secas a esperar a cremação.

A casa era um museu; Um relicário; um columbário cheio das mesmas cinzas de uma noite na estrada, em que deixei um ônibus partir,julgando que a racionalidade pudesse me  iluminar a lida.

“Procure seu caminho”, diria a voz firme de Enie. “Procure o propósito”, diria ela com aquele sorriso cheio de sentimentos. “Procure o que lhe falta, o que vai lhe completar. Talvez nem esteja distante, mas você precisaria de paz e solidão pra pisar no campo onde isso se perdeu”.

Ela me deu a solidão. Por enquanto era uma solidão sem paz.

Enie era quem estava dentro do ônibus que partiu. A menina também estava com ela.


Chovia naquela noite. Tinha pouco combustível no pequeno automóvel verde...

Foi assim que tudo começou.

É assim que começa essa minha história, que está escrita em minha pele, que não consigo deixar de ler quando me vejo refletido no espelho. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Nem tudo

o que disseram? uma mentira poderia apagar uma verdade... viver temendo a escolha entre verdades e mentiras. deve ser uma vida...

tive a felicidade da pequenina bem perto de mim, acordando ao meu lado, andando junto a mim por dentro de minha vida.

felicidade é como a cura, quando se esquece a dor por ter a dor desaparecido.

quando se percebe que aquela dor passada nem merecia tanta queixa.

viver a plenitude de um gesto

viver a plenitude de uma escolha

viver a plenitude de uma verdade...

dever ser isso a felicidade.