PERFAZER LEVA À PERFEIÇÃO
Posso criar vários bons ditos aqui, vários axiomas particulares, aqui que é o meu reino, o reino onde minhas idéias correm livres. Por exemplo: posso dizer que uma criança humana é a mistura perfeita e indefinível do mais profundo medo com a mais livre coragem. É por isso que crianças humanas acabam nos surpreendendo com seus feitos maravilhosos e assim, passamos a chamá-las de milagres, ou messias, ou gênios, ou Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart. Mas aqui eu digo com toda convicção, crianças são apenas crianças e seus feitos não são extraordinários. São sim criaturas livres para usar a imaginação e isso faz com que elas pareçam prodígios aos nossos olhos desatentos, nós há muito castrados de nossos impulsos naturais criativos. Essas prodigiosidades à partir da adolescência, comumente passam a não não mais ocorrer de um modo tão furioso. A sociedade humana é muito eficiente em desconstruir a tendência à perfeição que a criança traz consigo. Nosso desejo por sexo e poder, ofusca nossa capacidade imaginativa ou simplesmente a objetifica. Destruímos a pureza da ilimitada inventividade infantil, quase sempre ajustada ao cosmos, apenas pela manutenção da nossa doutrina de poder e sexo sobre a superfície de nosso mero mundanismo. O cerne das sociedades é controlar esse ímpeto criativo, direcioná-lo a interesses nacionais. Entre esses interesses habita o da diversão, mas vou falar disso depois.
Vou chamar aos que são oportunamente dedicados ao estudo operário da música como MÚSICOS. Essas criaturas são responsáveis por disseminar o evangelho da música a todos aqueles a quem pretendem converter. Como bons religiosos que são, criam ritos que nunca devem ser questionados, elencam seres humanos do passado e os alçam ao patamar divino e inalcansável, chamam-nos de prodígios, gênios, axiomas. E assim transformam segundo seus desígnios o significado profundo da palavra perfeição. Suponho que perdida nesse turbilhão vai também a música, uma das artes vítimas dessa doce vilania, destituída completamente de seu sentido ancestral.
É preciso entender que a cada ser humano cabe um tipo específico de perfeição. É isso baby, a perfeição não é um deus único. Tanto quanto deuses sobre a terra, tanto quanto religiões sobre a terra, é múltipla a perfeição. Portanto a perfeição de Mozart não pode ser medida à perfeição do Juca de Oriximiná, que tece paneiros de nvira como ninguém. Por que? O motivo é simples: perfeição é a superação do feito, da feição. E isso se consegue extrapolando o feito extraordinário, tornando-o ordinário. E isso só se consegue, sendo humano, com a praxis. E não há quem não conheça o sábio dito popular que diz: A prática leva a ...
Perfeição tem relação com refazer ad infinitum. A refazenda, como diria Gilberto Gil. É tua quantidade de refazendas que aos poucos vai tornando a tua perfeição algo ordinário. Notem que estou usando um pronome possessivo antes da palavra perfeição, afinal nesse meu universo, cada indivíduo possui sua própria idéia de perfeição. Quando a minha idéia de perfeição encontra com a tua idéia de perfeição, e assim elas se interrelacionam, um de nós vai gritar: Bravo!!!
No ensino contemporâneo da arte do violino há uma tendência à robotização, ou, pra melhorar o termo: há uma coreografação da atitude de tocar violino. O resultado musical é o mero resultado da educação de um corpo através de uma coreografia rígida. Não é à toa que muitos professores de violino observam e corrigem muito mais a postura do aluno, que a sua produção de sons. É claro que essa atitude é justificável, porque é se corrigindo a postura e retraindo quase a zero os vícios do corpo do violinista, um corpo que deve ser bem estruturado e confortável em sua postura, que se vai poder aceitar a coreografia e transformá-la numa estrutura invisível e na produção de um som aceitável.
Entretanto, com o passar do tempo, essas centenas de anos na arte violinística, é bem provável que o ensino dessa coreografia tenha se tornado vazio por se converter ao algo mais importante. E nesse pesado vazio estruturante, a música profunda, aquela oriunda dos mais sagrada espiritualidade humana se perde, como água derramada sobre uma areia grossa. E no final a estrutura se torna a parte mais aparente durante a execução musical, como um quadro na parede onde a dedicação e vaidade do emoldurador se tornou mais jubilosa que a do pobre coitado pintor.