Eu sou um manipulador de um instrumento?
Eu sou um músico?
Eu sou um leitor de partituras? Sou um tipo bem peculiar de aparelho sonoro? A agulha de uma vitrola? Um circista treinado pra malabarear meu violino? O que há de diferente entre mim e uma datilógrafa de 1960? aquelas datilógrafas tão bem treinadas que eram capazes de copiar um texto enquanto ao mesmo tempo conversavam acerca de outro assunto com a colega do lado. Eu quero ser um violinista assim?
A professora coloca diante de mim uma partitura e espera que eu apenas a leia e execute o que ela pede, como um autômato? Como uma datilógrafa? A serviço de quê estaria essa minha robotização? Da colônia? Agora, em plena era digital decolonizante de que vale esse tipo formação musical? Sei que são indagações pertinentes e merecem toda atenção. Mas não sou daqueles que constesta o modo como as escolas violinísticas cumprem sua tradição. Admiro a conservação de uma tradição tão bem trabalhada e nutrida no decorrer do tempo como a tradição violinistica, tanto como a do balé russo, do chan tao chuan chinês, da medicina ocidental, da yoga... da construção naval do Caripetuba.
Mas definitivamente há entretantos.
Na escola de música estou rodeado por muitos estudantes de violino contidos em timbres flautados, talvez ocasionados pelo receio de soar diante de seus professores. Como crianças que falam baixinho diante de pais ferozes. Eles crescem ali assim, predestinados à orquestra, predestinados a soar apianados, quase sussurradores. O timbre flautado remete à essa timidez, um medo de errar, como a leitura de um menino recém alfabetizado que enuncia as palavras com demasiado cuidado diante de sua alfabetizadora, pra se fazer demasiado e desnecessariamente limpo e maquinal, como se as palavras escritas diante dele não pudessem ser ditas sem ser lidas.
Entretanto essa prática, apesar de possivelmente não gerar solistas impetuosos, é capaz de formar músicos no exato formato da orquestra. Serão partes de um corpo. Células. Teclas.
Mas e quanto aos solistas? quem dedica a eles um olhar especial?
nunca vi motivo nenhum para ser avaliado musicalmente por quem quer que seja. Mas nos últimos 13 meses tenho me deixado à avaliações e aprendizados fora do autodidatismo. A última dessas avaliações foi para ingressar no curso técnico de instrumentista da escola de música. Havia uma exigência a ser cumprida, um programa, que consistia em executar uma escala maior em três oitavas; os arpejos maiores e menores dessa escala; o primeiro estudo de Kreutzer e; um concerto aos moldes do RV356 de Vivaldi. A outra seleção posterior ao ingresso no curso técnico foi destinada a preencher as cadeiras das duas orquestras estudantis. A essa seleção, o que se exigiu foi a execução de uma escala maior em três oitavas e uma peça de livre escolha.
A peça que escolhi foi a famosa Sicilliene da pianista Maria Theresia von Paradis. Dado o meu problema de leitura de partitura e, ainda tendo a plena certeza que não é uma leitura fluente que define um bom músico (apesar da importância inegável dessa habilidade), escolhi tal peça de tal compositora por uma verdade simples, Von Paradis era cega. Perdeu a visão ainda na infância, e isso não a impediu de se tornar virtuosa ao piano.
Tal referência fora um agrado a mim mesmo. Uma auto-ode à minha risível simplicidade . Uma anedota que só a mim caberia compreender e tirar proveito e risos. Um presunçoso ousando tolices diante dos laureados.
O violinista Ivry Gitlis rodou a europa executando essa peça aos seus 95 anos de idade, com umas execuções de beleza sem igual, dadas sim a imprecisões, ranhuras de arco, leves deslizes nos rubatos, somados a uma extrema sensibilidade de um homem trêmulo e velho. Ivry Gitlis soube como ninguém expressar a poética sonora do violino, colher sua voz mais verdadeira, batendo de frente com sua velha escola, reverenciando os outros modos de execução, como o cigano, ou o tribal campesino onde os violinos sempre soaram livres e gritantes, porque são tocados ao ar livre. Ah esses lugares distantes dos lugares pomposos, onde os virtuosos sempre beberam de seu vinho. Ivris e seu stradi era um proclamador da melodia, do cantábile, da candura. Quando executava a Sicilliene de Paradis, mantinha os olhos fechados. Uma honraria à sua autora cega? Talvez. Ivry era um ser humano grandioso, que no decorrer de sua vida passou a entender que a música não é uma rocha ingalgável, imóvel e imutável. A música também acontece sendo muito mais leve que uma pedra, embora em outras vezes é a própria pedrada em movimento.
Pra mim aquele meu momento diante dos meus juízes-futuros-professores foi uma despedida de uma vida em segredo, porque o violino pra mim sempre foi secreto como uma oração. A partir do momento em que eu entrei naquela escola, meu intuito passou a ser o de um aprendiz. O som do meu violino passou a não ser mais somente meu. Passei a ler e tocar música de autores mortos, oriundos de uma realidade diferente da minha.
E o exercício que faço com muita felicidade é o de aceitar isso tudo, pois fui eu que empurrei a porta. Ninguém veio me pedir pra fazer isso. Cabe-me então agora realizar o que me provocam, buscar o que me incitam a buscar.
Sou um homem velho a três passos do mármore. Não estou ali pra realizar um sonho. Jamais sonhei ou desejei estar ali. Taí algo que nunca nem sequer passava por minha cabeça. Apenas julguei, que o momento seria propício, como um poço que aparece no caminho ensolarado, num dia de sede. Não há razão para não beber dessa água.
Quando o discípulo sedento está pronto o mestre aparece carregando um cálice cheio de vinho.