segunda-feira, 29 de abril de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 14

. Pode parecer algo difícil de explicar. As idéias estão embaralhadas na minha cabeça. Mas hoje surgiu-me uma frase completa que resume toda minha suspeita: A música não existe.

É uma pareidolia.

A música não existe. Do dia pra noite a minha capacidade de ouvir desapareceu. Só ouço estruturas sonoras, organizadas em combinações variadas  e um tanto vazias. Estou surdo. A música perdeu o sentido?


Será que Bethoven realmente ficou surdo?


sábado, 6 de abril de 2024

Aperfeição e o impossível 12

O RECITAL 

Como me senti. Uma constatação. No meio de todo mundo ali... e ainda assim no meu mundo. Foi pra onde a audição me levou... pro meu mundo. Um lugar onde estou sozinho, mas sem solidão ou tristeza. Um terreno imaterial, obtuso, pra qual sempre vou levado por música.

Talvez eu consiga escrever sobre isso sem que minha mente esteja ainda imersa no que testemunhei. O que é bom, Gosto quando algo me leva a escrever. Escrever é a arte que mais amo.

Então se o que ouvi me fez sentir vontade de escrever, é porque me tocou, levou-me de volta a um caminho que de vez em quando abandono.

Não tenho ainda muito a falar sobre orquestras, ainda estou aprendendo a decifrar as sensações, entendendo ainda como as coesões podem dar certo no final, porque pela proximidade agora, tenho percebido que é um todo, que junta tudo, inclusive  a simpatia com o regente conta também, porque com o mínimo de sensibilidade é possível notar as nuances do que está sendo dito, embora a decifração nunca venha por inteiro porque as interfaces são muitas

De algum modo há a voz do compositor,  nas entrelinhas do tecido, todo seu entorno, sua biografia, sua poética, tudo está ali, mesmo que não se revele por inteiro. Mas há nisso em grande parte o espírito do intérprete. Talvez meu julgamento e sensações fiquem nublados porque conheço quem interpreta, já estivemos em paisagens comuns e isso afeta bem minha audição. Não afeta de um jeito ruim. Apenas afeta, algo que tem no cerne a transformação.  

Este momento atual de minha vida, agora, tem cara de epílogo, então... isso também afeta minha audição. Estou no tempo de me despedir e nessas horas, tudo que absorvo tem um gosto memorial, pra uma memória que aos poucos vai se desmaterializando.

As coisas belas pra mim, o são não porque carregam uma possível técnica perfeita. O que é belo me restabelece, me dá uma realidade mais leve e até desnecessária. Fala-me algo que não dá pra desmentir.

Por serem estes dias difíceis, nos quais estou andando em lugares que sempre quis evitar, talvez eu precisasse sentir o que senti hoje naquele recital. Eu no meu mundo, sozinho, ouvindo, sentindo a paz de estar ali por quase uma metade de hora. Sozinho. Pacificamente sozinho.


quarta-feira, 3 de abril de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 10

Vou dar um tempo de filosofia e vou fofocar um pouco, porque a fofoca é um tipo prazeroso e peculiar de ética.

Há inúmeras vantagens em ser um homem maduro, em muitas circunstâncias. Principalmente quando a paciência é um dos elementos fundamentais para o processo no qual se está envolvido. Mas, convenhamos aqui, tem muitas desvantagens, que pro nosso desagravo de velhos, são desvantagens facilmente superáveis, quando utilizamos a perspicácia que acumulamos com o passar do tempo.

Nina agora diria sua sapiente palavra, com um enorme ponto de exclamação ao final dela: Depende!

Verdade. O que não falta por aí é gente velha com total ausência de perspicácia.

Estávamos no final do corredor do segundo piso, o piso das cordas friccionadas, como diriam alguns. Eu, Hada, Lancelote e Paulo estávamos executando a escala de Sol maior. Em pianíssimo, mesmo com surdinas em todos os instrumentos, o estudo exaurido do caos, não soaria tão agoniante, como costumam soar os estudos de alunos pelos corredores. Estávamos já na quarta volta e os acordes que iam surgindo naturalmente no nosso exercício começavam a soar equilibrados, começava a parecer música. Pelo olhar surpreso de Hada, ela parecia nunca ter tido a experiência de soar daquela maneira em conjunto sem estar com os olhos fixos numa partitura. E estávamos assim, com certo grau de orgulho de finalmente poder entender a função do estudo de escalas, quando irrompeu de uma das salas o Gavroche, um rapazote carregando todos os hormônios da terra. Com o seu violino em mãos ele se aproximou de nós e, suspeito que querendo impressionar Hada, começou a tocar muito mal qualquer coisa de Vivaldi, sem surdina, com seu instrumento gritando desesperadamente, entre a parede e sua cadeira, num minúsculo espaço, desconfigurando completamente a coesão do nosso exercício em grupo. Hada parou de tocar e passou a olhá-lo com certo desprezo, com os olhos levemente arregalados. O olhar dela me encontrou e levemente balancei a cabeça  e tirei o meu violino do ombro. Não posso julgar o Gavroche. Na idade dele eu também andava lá com minhas peripécias e confesso que até há bem pouco tempo, eu ainda costumava me tufar como um pombo quando via uma mulher bonita. Ah, os jovens!

O grupo, que soara tão bem, começou a dispersar, deixando Gavrote sozinho. Mas ele não duvidou de si mesmo. Continuo a arranhar seu violino à guisa de um concerto em Lá menor, como se fosse o próprio Vivaldi ali naquele corredor. 


"Na década de oitenta esse garoto certamente levaria um tabefe no cangote", pensei.Mas logicamente o tempo passou e estamos noutros tempos. Foi então que aprendi uma lição, que veio escrita em torno de toda aquela cena de infanto-juvenil:


"Aqui a disciplina tomada como lei torna o caminho menos pesado e a compreensão de tudo o que é executado fica mais clara".


É a disciplina que faz o bom violinista. E isso precisa ser tomado como uma espécie de código de honra e conduta. Talvez nisso more o grande segredo desse instrumento. E isso não deve ser tomado com empáfia ou mesmo presunção. A disciplina se torna no estudo desse instrumento uma barreira protetora. Devo pensar sobre isso e entender o que isso significa.

segunda-feira, 25 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 9

 PERFAZER LEVA À PERFEIÇÃO


Posso criar vários bons ditos aqui, vários axiomas particulares, aqui que é o meu reino, o reino onde minhas idéias correm livres. Por exemplo: posso dizer que uma criança humana é a mistura perfeita e indefinível do mais profundo medo com a mais livre coragem. É por isso que crianças humanas acabam nos surpreendendo com seus feitos maravilhosos e assim, passamos a chamá-las de milagres, ou messias, ou gênios, ou Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart. Mas aqui eu digo com toda convicção, crianças são apenas crianças e seus feitos não são extraordinários. São sim criaturas livres para usar a imaginação e isso faz com que elas pareçam prodígios aos nossos olhos desatentos, nós há muito castrados de nossos impulsos naturais criativos. Essas prodigiosidades à partir da adolescência, comumente passam a  não não mais ocorrer de um modo tão furioso.  A sociedade humana é muito eficiente em desconstruir a tendência à perfeição que a criança traz consigo. Nosso desejo por sexo e poder, ofusca nossa capacidade imaginativa ou simplesmente a objetifica. Destruímos a pureza da ilimitada inventividade infantil, quase sempre ajustada ao cosmos, apenas pela manutenção da nossa doutrina de poder e sexo sobre a superfície de nosso mero mundanismo. O cerne das sociedades é controlar esse ímpeto criativo, direcioná-lo a interesses nacionais. Entre esses interesses habita o da diversão, mas vou falar disso depois.

Vou chamar aos que são oportunamente dedicados ao estudo operário da música como MÚSICOS. Essas criaturas são responsáveis por disseminar o evangelho da música a todos aqueles a quem pretendem converter. Como bons religiosos que são, criam ritos que nunca devem ser questionados, elencam seres humanos do passado e os alçam ao patamar divino e inalcansável, chamam-nos de prodígios, gênios, axiomas. E assim transformam segundo seus desígnios o significado profundo da palavra perfeição. Suponho que perdida nesse turbilhão vai também a música, uma das artes vítimas dessa doce vilania, destituída completamente de seu sentido ancestral.


É preciso entender que a cada ser humano cabe um tipo específico de perfeição. É isso baby, a perfeição não é um deus único. Tanto quanto deuses sobre a terra, tanto quanto religiões sobre a terra, é múltipla a perfeição. Portanto a perfeição de Mozart não pode ser medida à perfeição do Juca de Oriximiná, que tece paneiros de nvira como ninguém.  Por que? O motivo é simples: perfeição é a superação do feito, da feição. E isso se consegue extrapolando o feito extraordinário, tornando-o ordinário. E isso só se consegue, sendo humano, com a praxis. E não há quem não conheça o sábio dito popular que diz: A prática leva a ...  

Perfeição tem relação com refazer ad infinitum. A refazenda, como diria Gilberto Gil. É tua quantidade de refazendas que aos poucos vai tornando a tua perfeição algo ordinário. Notem que estou usando um pronome possessivo antes da palavra perfeição, afinal nesse meu universo, cada indivíduo possui sua própria idéia de perfeição. Quando a minha idéia de perfeição encontra com a tua idéia de perfeição, e assim elas se interrelacionam,  um de nós vai gritar: Bravo!!!

No ensino contemporâneo da arte do violino há uma tendência à robotização, ou, pra melhorar o termo: há uma coreografação da atitude de tocar violino. O resultado musical é o mero resultado da educação de um corpo através de uma coreografia rígida. Não é à toa que muitos professores de violino observam e corrigem muito mais a postura do aluno, que a sua produção de sons. É claro que essa atitude é justificável, porque é se corrigindo a postura e retraindo quase a zero os vícios do corpo do violinista, um corpo que deve ser bem estruturado e confortável em sua postura, que se vai poder aceitar a coreografia e transformá-la numa estrutura invisível e na produção de um som aceitável.

Entretanto, com o passar do tempo, essas centenas de anos na arte violinística, é bem provável que o ensino dessa coreografia tenha se tornado vazio por se converter ao algo mais importante. E nesse pesado vazio estruturante, a música profunda, aquela oriunda dos mais sagrada espiritualidade humana se perde, como água derramada sobre uma areia grossa. E no final a estrutura se torna a parte mais aparente durante a execução musical, como um quadro na parede onde a dedicação e vaidade do emoldurador se tornou mais jubilosa que a do pobre coitado pintor.

sexta-feira, 22 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 8

 A ZONA DE ESTRANHAMENTO 2

Vou tentar aqui ordenar as camadas de minha percepção quando sou colocado diante de uma partitura.

Vou tentar esmiuçar de início em sete tópicos o que vou chamar aqui de primeira camada:


1-Tenho meu primeiro contato visual com a música escrita. Uma partitura se apresenta a mim como um texto escrito em caracteres Devanagari.   O Devanagari é o alfabeto abugida com o qual se escreve as línguas da Índia e do Nepal.  Ora, é bem claro que tenho a pleno funcionamento o meu aparelho fonador, com ele sou capaz de produzir e emitir os mais variados sons que um ser humano normalmente emite para se comunicar. Entretanto, colocado diante dos escritos devanagáris, eu me calo, porque simplesmente não compreendo nem domino a lógica sonora que aqueles caracteres encerram.


2-Meus olhos percorrem o papel tentando coletar padrões compreensíveis. Um bom professor me indagaria na minha língua materna: Mas se você já fala fluentemente sua língua, se consegue dominar todos os padrões fonéticos, fonológicos e semânticos dela, qual a razão para dominar esta linguagem escrita dessa língua estrangeira específica? E você já a fala com certa fluidez. Qual o sentido dessa busca?  Eu responderia ao mestre com certa paciência e não muito certo da eficiência de minha resposta: Eu o faço simplesmente porque quero.

Já com o violino e a escrita musical que o tangencia, os tópicos são auto explicativos:

3-Começo a fazer uma leitura incipiente de rítmo. Utilizando o pouco conhecimento que tenho dessa técnica de leitura.

4-começo a localizar as notas musicais e relaciono isso mentalmente com o instrumento. A percepção visual  em um átmo tenta se transformar em cinética muscular. Assim eu tento digitar as notas no espelho cego do violino.

5-começo a juntar a atitude física da execução musical à leitura. É o entendimento que ali se escreve uma coreografia.

6-Ouço pela primeira vez de modo parvo o que a partitura em certo aspecto propõe

7-tento juntar todas essas ações, executando-as ao mesmo tempo. Falho miseravelmente. Meu corpo precisa ser lapidado, porque devo ler com todo o meu corpo.

terça-feira, 12 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 7

 A ZONA DE ESTRANHAMENTO - parte 1


Observemos a imagem abaixo:


Trata-se de um trecho da Sinfonia No4, catalogada como K19, de Mozart. A imagem não mostra os legatos, nem outra qualquer anotação de articulação, porque o que interessa aqui é a  primeira impressão que se tem quando se enxerga essa imagem. Posteriormente vou voltar a esse tema com mais minúcias. Por agora, deixemos as minúcias de lado e o cuidado com o método, para que eu possa discorrer livremente a respeito do tema, de acordo com minhas intuições.

A primeira reação está relacionada à perda do controle e das próprias vontades, criando assim um vale, uma zona planificada de estranhamentro. Ler significa decodificar em sons audíveis e modulados por regras o que está exposto aos olhos em forma de signos fechados (um conceito elaborado por mim, mas depois vou atrás de referências e conceitos mais sólidos). Está relacionada também à decisão de realizar a tarefa de decodificar o que está escrito, algo que trafega entre necessidade simples e auto desafio também simples. Como violiniilista, meu plano seria decodificar com auxílio do meu instrumento o que meus olhos vêem. Mas essa tarefa se dá com total desprendimento, por conta de uma também total descolagem da tradição violinística.

Notem que no parágrafo anterior referi-me a mim mesmo como violiniilista. Eu inventei essa porra. Tá na cara que é a junção entre as palavras violinista e niilista. Se você não sabe o que significa niilista, nem sei o que faz lendo meus textos. Mas ainda assim vou copiar e colar o que achei na internet sobre esse termo muito usado na filosofia contemporânea. Niilismo caracteriza-se pela rejeição de valores tradicionais, ceticismo em relação à verdade absoluta e descrença no propósito da vida. Bem, se isto aqui fosse um artigo científico, eu teria que dizer de onde tirei esse conceito. Mas isso aqui não é um artigo científico, são só coisas que eu estou a fim de escrever e isso é o que me basta.


Voltemos, então:



Até então a minha relação com o instrumento, com o seu soar, tratava-se de um manuseio livre, com o propósito de dar uma abrangência maior às capacidades de meu corpo emitir sons ou ruídos. O mesmo acontece com a fala, com nosso aparelho fonador. não sei o que acontecia comigo, com minha consciência, enquanto estive por alguns meses mergulhado no líquido amniótico dentro da barriga de Dona Noca, minha mãe. Mas sei que a partir do momento em que tive o primeiro contato com o ar da atmosfera terrestre, eu gritei como um louco. Aquela foi a primeira vez que eu ouvi meu próprio som. Não sei se me assustei com isso. Como eu me assustaria se nem mesmo o conceito de susto passava por minha cabeça. Eu nem era eu antes daquele grito. Taí uma coisa boa e poética de se pensar: A partir do momento que gritamos logo após sermos expulsos de nossa era líquida, começa a construção sonora de nossa personalidade.

Caramba. Gostei disso. Vou parar por aqui pra pensar um pouco. Preciso estudar o humilhante concerto No4. Mas depois disso retornamos à investigação a respeito da zona de estranhamento.
















quinta-feira, 7 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 6

 Aspire ser perfeito como o pai do céu é perfeito


Ontem pelos corredores ouvi os meninos construindo melodias com seus instrumentos e na juventude deles me senti acolhido. Eles vão ficar neste mundo por mais tempo que eu e o tempo dos meus dias que já vivi é tão vasto quanto o tempo que eles terão em seus dias futuros.

Hoje ainda é a noite de quinta feira e já estou muito exausto, como se tivesse acabado de atravessar correndo um país.


Tudo está justo nestes meus dias e como prêmio merecido cá estou com as pálpebras pesadas.



quarta-feira, 6 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 5

Eu sou um manipulador de um instrumento?

Eu sou um músico?

Eu sou um leitor de partituras? Sou um tipo bem peculiar de aparelho sonoro? A agulha de uma vitrola? Um circista treinado pra malabarear meu violino? O que há de diferente entre mim e uma datilógrafa de 1960? aquelas datilógrafas tão bem treinadas que eram capazes de copiar um texto enquanto ao mesmo tempo conversavam acerca de outro assunto com a colega do lado. Eu quero ser um violinista assim?

A professora coloca diante de mim uma partitura e espera que eu apenas a leia e execute o que ela pede, como um autômato? Como uma datilógrafa? A serviço de quê estaria essa minha robotização? Da colônia? Agora, em plena era digital decolonizante de que vale esse tipo formação musical? Sei que são indagações pertinentes e merecem toda atenção. Mas não sou daqueles que constesta o modo como as escolas violinísticas cumprem sua tradição. Admiro a conservação de uma tradição tão bem trabalhada e nutrida no decorrer do tempo como a tradição violinistica, tanto como a do balé russo, do chan tao chuan chinês, da medicina ocidental, da yoga... da construção naval do Caripetuba.

Mas definitivamente há entretantos.

Na escola de música estou rodeado  por muitos estudantes de violino contidos em timbres flautados, talvez ocasionados pelo receio de soar diante de seus professores. Como crianças que falam baixinho diante de pais ferozes. Eles crescem ali assim, predestinados à orquestra, predestinados a soar apianados, quase sussurradores. O timbre flautado remete à essa timidez, um medo de errar, como a leitura de um menino recém alfabetizado que enuncia as palavras com demasiado cuidado diante de sua alfabetizadora, pra se fazer demasiado e desnecessariamente limpo e maquinal, como se as palavras escritas diante dele não pudessem ser ditas sem ser lidas.

Entretanto essa prática, apesar de possivelmente não gerar solistas impetuosos, é capaz de formar músicos no exato formato da orquestra. Serão partes de um corpo. Células. Teclas.

Mas e quanto aos solistas? quem dedica a eles um olhar especial?

nunca vi motivo nenhum para ser avaliado musicalmente por quem quer que seja. Mas nos últimos 13 meses tenho me deixado à avaliações e aprendizados fora do autodidatismo. A última dessas avaliações foi para ingressar no curso técnico de instrumentista da escola de música. Havia uma exigência a ser cumprida, um programa, que consistia em executar uma escala maior em três oitavas; os arpejos maiores e menores dessa escala; o primeiro estudo de Kreutzer e; um concerto aos moldes do RV356 de Vivaldi. A outra seleção posterior ao ingresso no curso técnico foi destinada a preencher as cadeiras das duas orquestras estudantis. A essa seleção, o que se exigiu foi a execução de uma escala maior em três oitavas e uma peça de livre escolha.

A peça que escolhi foi a famosa Sicilliene da pianista Maria Theresia von Paradis. Dado o meu problema de leitura de partitura e, ainda tendo a plena certeza que não é uma leitura fluente que define um bom músico (apesar da importância inegável dessa habilidade), escolhi tal peça de tal compositora por uma verdade simples, Von Paradis era cega. Perdeu a visão ainda na infância, e isso não a impediu de se tornar virtuosa ao piano.

Tal referência fora um agrado a mim mesmo. Uma auto-ode à minha risível simplicidade . Uma anedota que só a mim caberia compreender e tirar proveito e risos. Um presunçoso ousando tolices diante dos laureados.

O violinista Ivry Gitlis rodou a europa executando essa peça aos seus 95 anos de idade, com umas execuções de beleza sem igual, dadas sim a imprecisões, ranhuras de arco, leves deslizes nos rubatos, somados a uma extrema sensibilidade de um homem trêmulo e velho. Ivry Gitlis soube como ninguém expressar a poética sonora do violino, colher sua voz mais verdadeira, batendo de frente com sua velha escola, reverenciando os outros modos de execução, como o cigano, ou o tribal campesino onde os violinos sempre soaram livres e gritantes, porque são tocados ao ar livre. Ah esses lugares distantes dos lugares pomposos, onde os virtuosos sempre beberam de seu vinho. Ivris e seu stradi era um proclamador da melodia, do cantábile, da candura. Quando executava  a Sicilliene de Paradis, mantinha os olhos fechados. Uma honraria à sua autora cega? Talvez. Ivry era um ser humano grandioso, que no decorrer de sua vida passou a entender que a música não é uma rocha ingalgável, imóvel e imutável. A música também acontece sendo muito mais leve que uma pedra, embora em outras vezes é a própria pedrada em movimento.

Pra mim aquele meu momento diante dos meus juízes-futuros-professores foi uma despedida de uma vida em segredo, porque o violino pra mim sempre foi secreto como uma oração. A partir do momento em que eu entrei naquela escola, meu intuito passou a ser o de um aprendiz. O som do meu violino passou a não ser mais somente meu. Passei a ler e tocar música de autores mortos, oriundos de uma realidade diferente da minha.

E o exercício que faço com muita felicidade é o de aceitar isso tudo, pois fui eu que empurrei a porta. Ninguém veio me pedir pra fazer isso. Cabe-me então agora realizar o que me provocam, buscar o que me incitam a buscar.


Sou um homem velho a três passos do mármore. Não estou ali pra realizar um sonho. Jamais sonhei ou desejei estar ali. Taí algo que nunca nem sequer passava por minha cabeça. Apenas julguei, que o momento seria propício, como um poço que aparece no caminho ensolarado, num dia de sede. Não há razão para não beber dessa água.


Quando o discípulo sedento está pronto o mestre aparece carregando um cálice cheio de vinho.








terça-feira, 5 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 4

 A vida dá uma volta inteira, de um ponto ao outro e, se você tiver cuidado com seus amores, eles possivelmente voltarão a lhe encontrar em pontos inusitados do caminho e, esses reencontros, caso você tenha seguido ao conselho do cuidado, serão pacificadores, porque não há melhor paz de se sentir que essa paz oriunda do bem amar. 

Nos meus velhos escritos, a melhor maneira que encontrei de representar esse amor furtivo e eterno foi através de alegorias que, sinceramente, por pressa com as palavras e falta de cuidado com as letras, não foram alegorias fáceis de materializar. Foi assim que surgiu uma cidade inteira habitada por títeres, milhares deles, manipulados por um marionetista velho e rabugento. O marionetista, criador daquela cidade-mundo se revestia vez ou outra de um personagem, pra personificar e construir histórias, enredos. E o melhor de seus personagens deuses foi um que vivia em busca de um único objetivo: fugir, afastar-se, abster-se, isolar-se. Sua vida era invariavelmente uma busca insana se libertar daquilo que o aprisionava. E o que lhe aprisionava era o próprio sentido da vida. O que mais ele desejava era um olhar e um viver sem sentir, tal como uma árvore, um moinho de vento ou uma gaivota.


O sentir arruinava sua vida. Era pelo sentir que ele sucumbia a paixões, dores, medos, alegrias, felicidades, tolices sentimentais e paz.


Uma outra alegoria era um moinho de vento, que só girava quando o vento era forte suficiente. Nada havia de sentimento ou razão entre o jogo criador entre o moinho e o vento, entretanto, ali se fazia um segredo cósmico, pacificador de buscas. Se o moinho girava havia vento forte. Mas o moinho envelheceu e suas roldanas começaram a travar como os joelhos de um homem idoso. Assim precisava o vento ser cada vez mais forte para fazer com que as hélices do velho moinho rodopiassem. Até que o vento se fez forte demais e destruiu o moinho.


Amores cuidadosos são ventos cuidadosos, que em determinado ponto do enredo descobrem que haverá um dia em que o moinho não conseguirá mais girar, tremerá somente num pálido torpor, mas ainda assim, chegando bem perto os sentidos, dará pra notar um leve trepidar nas hélices, uma vontade oca e cálida, algo como uma sincera gratidão, como na tarde um resto de perfume de um amor intenso e matinal de outrora.

Qual alegoria devo conceber para estes meus dias de orquestra?  seria a orquestra o vento? seria eu o moinho? velho que estou até gosto de parecer um moinho. Não sei se já é o ponto de confundir orquestra com música. Mas agora sinto que quando estou dentro da orquestra, só há aos outros um sentido palpável nisso, um sentido justo por ser óbvio, soar. Mas pra mim estar ali não significa soar somente. Tem muito mais nisso, mas por agora nada sobre isso consigo formular.


O que posso dizer é que tudo o que agora vivo um dia foi profecia. É um pouco assustador testemunhar o cumprimento de uma profecia, principalmente se nele você está, mas é libertador também, porque sentimos em nós o olhar atento do cosmos, como se fossemos peça importantes no tabuleiro dos deuses.


Justo nós, que nos julgamos tão pequenos.





domingo, 3 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 3

 Por dentro da cabeça do demônio


"Tive essa fortuna em vida de conhecer a música em alguém. A fortuna de lhe ver, sentir, tocar, amar e  ouvir premente e fisicamente na existência de alguém".


Ali sentado eu não sabia exatamente o que fazer. O músico que dividia comigo a estante agasalhou em seus pés um copo Stanley cheio de chá mate e ao lado  uma grande xícara de café. Aquilo me pareceu uma boa idéia pra enfrentar duas horas de ensaio sem intervalo. Sigfried fez um breve discurso a respeito das duas peças que estudaríamos e deu grande ênfase ao fato de que Mozart escreveu uma delas aos nove anos de idade. Indagou com bom humor: O que vocês estavam fazendo com nove anos de idade?

Eu senti vontade de dar a única resposta óbvia de ser dada. Eu diria: não sei maestro, eu ainda tenho quatro anos de idade, resta saber o que Mozart fazia aos seus quatro anos.

Posso me dar a esse luxo de me ver renascido e recomeçar. Posso me ver tão broto em algo, ainda sem raízes, facilmente levado pelo vento. É um direito meu me renovar assim, mesmo que não funcione, mesmo que meu apelo por vida fracasse. Quem sabe, quando eu chegar aos meus nove anos, desta nova vida, eu escreva minha primeira sinfonia.

...


Como não amar a nota sol?

Até aqui eu vim sozinho e nunca toquei ao lado de ninguém. Até há pouco tempo eu nem sequer tive o prazer de ouvir um violino de outro músico soar perto de meus ouvidos. Fiz algumas tentativas disso, mas pra mim era impossível. Como encarei a música como minha cura interior, não cabia a mim usá-la para me expressar aos outros, não me parecia correto distribuir por aí um remédio que só em mim fazia efeito. E agora eu estava ali, rodeado de jovens aprendizes com um terço da minha idade. Todos me olhando não sei se com admiração ou condescendência. Entretanto, no viés desse caminho eu tenho sentido uma profunda paz. tenho o dia todo para me dedicar a isso. tenho a calma dos taciturnos e nenhum medo da morte. Ora bolas, tenho a certeza absoluta que estarei morto daqui a vinte anos. Eu aos meus setenta e quatro, talvez até mais envelhecido que Yvri Gitlis, quem sabe tocarei uma bela melodia diante dos olhos lacrimejantes dos jovens, tendo a certeza de que eu já deveria estar morto.

Como não amar a nota sol? O maestro levantou os braços e ela ressoou pela sala dominando os outros tons. Mas há uma sensação que eu não devo deixar escapar destas minhas memórias. Eu estava dentro da cabeça de Mozart. Mozart era um grande salão onde grandes estantes se organizavam e exibiam notas musicais. Nas paredes dessa grande sala havia muitos quadros que certamente retratavam as memórias do menino prodígio. Mas por algum motivo as imagem eram impossíveis de ser definidas, afinal, como eu poderia imaginar as coisas pelas quais o jovem compositor passou para organizar aquelas notas musicais em frases tão singelas, como se a vida fosse uma festa pueril e infinita?

E enquanto durou aquele ensaio, fui abrigado por aquela mente tão distante no passado e ainda tão presente ali. Que milagre, não é? Isso me fez sentir uma profunda felicidade e por um instante até acreditei em espirítos. Pelo menos por aquele momento acreditei que a vida tem a vocacão de ser eterna.



A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 2

Eu já tinha ouvido a respeito do mito dos lugares onde se senta, mas foi a primeira vez que o experimentei na prática. A esse mito vou chamar a DOCE DANÇA DAS CADEIRAS. Mas não vou perder tempo explicando esse mito de nome tão interessante. Por agora fiquemos com a voz do maestro me dizendo"Lavodnas, sente aqui nessa cadeira. Pra mim, por não me importar ainda com o meu lugar naquela equipe, o que menos me preocupava era o lugar onde eu ficaria sentado. O maestro agora parecia incomodado com a temperatura da sala, realinhou as ventuínas do condicionador de ar e aumentou a temperatura que ficava piscando no mostrador para vinte e três graus.

Quanto ao maestro, por agora só posso desenhá-lo pra você como sendo um homem branco, alto e um tanto gordo, com as bochechas rosadas e um sorriso simpático. Ainda há pouco estávamos na geladíssima sala de ensaio de naipe e ali ele se demonstrou uma criatura afável, com um certo calor humano, demonstrando sem nenhuma cautela ou culpa, sua alegria altamente educada e polida por fazer parte daquele universo inspirador. Quando esfreguei as mãos de frio ele indagou solenemente: Ist Lavodnas kalt? Respondi que sim, mas que isso não seria um problema. Mas de onde eu tirei a palavra culpa? Mas por que ele teria culpa? Por seus privilégios? Por parecer tão feliz e espontâneo?  Quem sou eu para intuir que tal sujeito tenha tido uma vida fácil? Nada do que eu tinha dele até aquele momento me seria suficiente para julgá-lo ou pré concebê-lo. Por agora fiquemos por aqui com o maestro. Haverá tempo pra que seu personagem se revele e se desenvolva. Mas é justo que ele receba uma alcunha, por isso vamos chamá-lo de Sigurd, o herói mitológico tão aclamado por Wagner, tão indistintamente...  não, melhor, vamos batizá-lo com a versão alemã do nome Sigurd: Sigfried.


O maestro Sigfried têm um prazer peculiar em falar alemão. É possível vez ou outra pegá-lo pelos corredores soltando pequenas frases nessa língua ou balbuciando com voz orgulhosa depois de um gracejo: Es gibt hier einige germanist? Suponho que Sig tenha estudado na Alemanha ou na Austria, daí seu interesse peculiar em ostentar alegremente sua habilidade em falar o idioma de Wolfgang, que por sinal, assinava as duas peças escolhidas para estudarmos. A primeira sendo a insuportavelmente famosa Eine Kleine Nachtmusik e a outra a mitológica sinfonia número quatro, que segundo dizem, um prodigioso Mozart escreveu aos seus nove anos de idade. Eu sinceramente não me permito entrar no mérito da verdade disso. Mozart é um deus, respeitemos a divindade milagrosa dos deuses.

Quando me direcionei para as cadeiras do lado direito da sala, ouvi uma voz de menina: Senhor, sua cadeira é lá pro outro lado. Na verdade eu não queria já me sentar, queria apenas apoiar meu estojo na parede em busca de encontrar as partituras que estavam amontoadas dentro do meu bornal. Para não causar embaraço na doce dança das cadeiras vigiada pela infante, me direcionei para o outro lado da sala sem me queixar e repousei minhas coisas no chão ao lado de um outro assento qualquer. Foi então que ouvi a voz de Sigfried vinda do patíbulo: Lavodnas, sente aqui, nesta cadeira.

Ora, ora, eu estava dançando com quarenta e cinco anos de atraso. Eu estava fazendo parte da fantástica e doce dança das cadeiras. O espala levantou-se educadamente e ali, naquele instante a nota Lá vibrou como nunca antes na minha vida eu a ouvira vibrar. Eu, nos meus pensamentos sarcásticos e felizes, não pude deixar de  me imaginar balbuciando a Sig: Die Zeit ist der Geist, meine kleine Heuschrecke!





sexta-feira, 1 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL

"A perfeição é impossível? Vou te dizer um segredo: O impossível é a perfeição"


A música...

Em determinada medida é selvagem. Não baila comigo, nem conversa nos balcões de cafeterias. Fica se esgueirando como quem foge de um fantasma. Olhou-me e no semblante dela parecia me chamar de traidor. Música, coisa que abandonei por doze anos.


Mas talvez seja tudo por conta do modo novo que estou lhe tratando agora. Sim, eu deixei, permiti que os outros entrassem na casa. Tenho passado horas dos dias a reproduzir o que eles me motivam a fazer. Apesar de que antes eu não via sentido nenhum em me dedicar a obedecê-los, agora essa tarefa não me parece um delírio. Eu mito um papel onde há garranchos que me dizem como devo ou não soar.


A música agora é uma amante volúvel e imortal. Eu não a vejo ainda nos meus amigos da escola de música. Tudo o que até agora vejo neles é preocupação. A música nem mesmo ressoa ao fundode suas tentativas. Ela é um detalhe, um acessório, uma consequência, um movimento corporal árduamente ensaiado.


A professora segura a minha mão direita, como quem segura a mão de um lunático. Eu deveria ter avisado a ela que tenho problemas com contato físico? No instante em que isso ocorre, por conta da agressividade do gesto, da ação, a sutileza da música se esvai e por me tornar assustado e tenso, tudo perde o sentido, porque o gesto, apesar de talvez boas intenções, contenta-se na atmosfera dos gestos apenas, como um engodo que só aceitamos por ter a certeza que vai durar pouco. Sinto-me numa jaula e de repente passo a me preocupar com meu ritmo cardiaco e respiração.


Vi na profusão da quase crise a imagem projetada de um casal de amantes. Ah esses dois amantes: a Perfeição e o Impossível. Não se separam um só instante e por alguma razão me assustam, me intrigam e me fascinam,  principalmente porque o Impossível tem um semblante vago e desterrado, como uma pedra que atiramos num lago profundo e a perfeição não tem rosto e mesmo que a vigiemos de perto, nunca podemos ter certeza se ela está mesmo ali, onde supomos que ela esteja.