quarta-feira, 3 de abril de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 10

Vou dar um tempo de filosofia e vou fofocar um pouco, porque a fofoca é um tipo prazeroso e peculiar de ética.

Há inúmeras vantagens em ser um homem maduro, em muitas circunstâncias. Principalmente quando a paciência é um dos elementos fundamentais para o processo no qual se está envolvido. Mas, convenhamos aqui, tem muitas desvantagens, que pro nosso desagravo de velhos, são desvantagens facilmente superáveis, quando utilizamos a perspicácia que acumulamos com o passar do tempo.

Nina agora diria sua sapiente palavra, com um enorme ponto de exclamação ao final dela: Depende!

Verdade. O que não falta por aí é gente velha com total ausência de perspicácia.

Estávamos no final do corredor do segundo piso, o piso das cordas friccionadas, como diriam alguns. Eu, Hada, Lancelote e Paulo estávamos executando a escala de Sol maior. Em pianíssimo, mesmo com surdinas em todos os instrumentos, o estudo exaurido do caos, não soaria tão agoniante, como costumam soar os estudos de alunos pelos corredores. Estávamos já na quarta volta e os acordes que iam surgindo naturalmente no nosso exercício começavam a soar equilibrados, começava a parecer música. Pelo olhar surpreso de Hada, ela parecia nunca ter tido a experiência de soar daquela maneira em conjunto sem estar com os olhos fixos numa partitura. E estávamos assim, com certo grau de orgulho de finalmente poder entender a função do estudo de escalas, quando irrompeu de uma das salas o Gavroche, um rapazote carregando todos os hormônios da terra. Com o seu violino em mãos ele se aproximou de nós e, suspeito que querendo impressionar Hada, começou a tocar muito mal qualquer coisa de Vivaldi, sem surdina, com seu instrumento gritando desesperadamente, entre a parede e sua cadeira, num minúsculo espaço, desconfigurando completamente a coesão do nosso exercício em grupo. Hada parou de tocar e passou a olhá-lo com certo desprezo, com os olhos levemente arregalados. O olhar dela me encontrou e levemente balancei a cabeça  e tirei o meu violino do ombro. Não posso julgar o Gavroche. Na idade dele eu também andava lá com minhas peripécias e confesso que até há bem pouco tempo, eu ainda costumava me tufar como um pombo quando via uma mulher bonita. Ah, os jovens!

O grupo, que soara tão bem, começou a dispersar, deixando Gavrote sozinho. Mas ele não duvidou de si mesmo. Continuo a arranhar seu violino à guisa de um concerto em Lá menor, como se fosse o próprio Vivaldi ali naquele corredor. 


"Na década de oitenta esse garoto certamente levaria um tabefe no cangote", pensei.Mas logicamente o tempo passou e estamos noutros tempos. Foi então que aprendi uma lição, que veio escrita em torno de toda aquela cena de infanto-juvenil:


"Aqui a disciplina tomada como lei torna o caminho menos pesado e a compreensão de tudo o que é executado fica mais clara".


É a disciplina que faz o bom violinista. E isso precisa ser tomado como uma espécie de código de honra e conduta. Talvez nisso more o grande segredo desse instrumento. E isso não deve ser tomado com empáfia ou mesmo presunção. A disciplina se torna no estudo desse instrumento uma barreira protetora. Devo pensar sobre isso e entender o que isso significa.

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