quinta-feira, 20 de março de 2014

FISIOMETRIA

Então caí na besteira de deitar ali na pequena sala aquele sofá grande como um mastodonte. Fico medindo a largura da porta pensando como aquela porra entrou ali. Como vai sair?


O joelho arde; no computador deixo o cinema rolar, é uma janela a mim bem mais justa. A realidade é sem graça demais. Um raio divino destruiu a antena de rádio do teatrinho. Por causa disso os filmes estão todos sem legenda. Sem internet, sem legenda.



Fiquei tecendo o rosto de Marília. Quanto tempo faz que não esculpo? Muito tempo. Há habilidades que engavetei por muitos anos, esculpir é uma delas. Precisei buscar uma boca que despertasse a sede. A boca da Marília dos escritos desperta a sede. Os olhos grandes com pálpebras volumosas encontrei sem muito sofrimento na atitude de esculpir, ficaram belos, vivos. O queixo repartido em dois foi outra coisa que me veio naturalmente. No fim, o rosto de Marília me pareceu o rosto de uma bela mulher imperfeitamente bela, frágil e forte, como a menina empacotadora do supermercado. Mas e a boca? De quem é a boca que emprestei para construir Marília?



Na retaguarda dos caixas do supermercado da rua onde moro há um exército de rapazes, dezenas deles. Entre eles há somente uma menina, jovem, muito bonita, disfarçando os cabelos longos e cacheados por debaixo do boné do uniforme. 



Marília se fosse humana seria capaz de atravessar o mar. Silenciosa; deificada pelo silêncio. Por isso, talvez, se eu soubesse o desenho dos lábios da menina do supermercado, eu não precisaria de um esforço para criar do vazio um objeto provocador da sede.



Devo admitir que a boca de Marília é nascida para ser somente a boca de Marília.



Era por volta das quatro quando larguei aquela escultura. o sono me vinha vencendo...  adormeci olhando para o rosto dela. Deixei-me dormir como um Dirceu, a imaginar que a sede, a fome e a desesperança poderiam ser sanadas, pro bem da justiça universal, pela bailarina vestida de azul celeste, tecida em mármore e porcelana, silenciosa como a paz.







Nenhum comentário:

Postar um comentário