sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

TREBLINKA



-Não acho que seja justa essa sua mudança comigo. Não sei o que eu possa ter feito para que isso seja justo.

-Não se trata de justiça.

-Até um dia desses, tu me recebeste com carinho. Parecia feliz em voltar a me ver. Mas... prestando bem atenção,  só me aceitou naquele dia, logo que entrei aqui. Depois? Depois, deixou até de me cumprimentar, ou me aceitar como visita. Fiz alguma coisa errada? Sério. Sempre te achei muito educado. É muito estranha essa sua mudança do  comportamento comigo.

-tem um ditado Árabe que diz: Se és amigo de meu inimigo, és meu inimigo.

-Então é por causa disso? Não pode entender que disso em mim quase nada mais resta?

-Sim.

-Acha isso justo?

-Não é questão de justiça. É só uma única opção que tenho. E é uma opção fria, eu sei. Você ama e faz parte de um mundo que expulsei de perto. Quando olho pra você, quando você se aproxima, eu posso sentir o cheiro do que expulsei. Mesmo que tudo  agora não seja o mesmo que foi. Você não é a única. Expulsei muitos outros. Até queimei livros. Destruí coisas que eu gostava. Destruí coisas que estavam comigo por muito, muito tempo. Tive que matar boa parte de mim, também.  Ouvi dizer que havia uma prática muito comum em guerras antigas. Quando um inimigo quase invencível era vencido, ele tinha que ser varrido da face da terra, para que deixasse de ser uma ameaça latente. Para que isso acontecesse, todos os vencidos, homens, mulheres, crianças, até mesmo os templos, os deuses, os escritos, tudo Arminda, tudo era destruído, para que todo o mal que o inimigo representava fosse esquecido, para que desaparecessem tanto as dores causadas, quanto as lembranças dessas dores. Quando eu olho pra você, tudo reaparece. é por isso que não lhe quero mais aqui.

-Isso é ódio.

-Pode chamar assim se quiser.

-Houve alguma vez outra coisa?

-Houve mentira.

-o quê? O que eu deveria saber?

-Nunca se sentiu assim?

-Não sei ao certo.

-O sentimento depois é de nojo. Um arrependimento que beira o nojo. Estranho. Arrependimento da mais pura espécie. Arrependimento . Talvez o ódio seja o esqueleto disso: o arrependimento de ter sentido felicidade... O arrependimento de ver a todo instante o fantasma de um outro caminho. O caminho que indaga: E se tudo fosse? E se o erro não estivesse?

-Quando você se salvou...   quando se viu sozinho naquela ilha...  o que sentia?

- Careceríamos de muito tempo , para que eu pudesse falar a respeito de tantas coisas que me ocorreram. Eu me senti morto naquela ilha. Eu nunca, porém,  me havia salvado. Eu já estava morto muito antes do navio afundar. Quando alcancei a ilha, depois de nadar como louco, estava um tanto escuro...  escuro. Era quarto crescente, mas havia muitas nuvens e estava muito escuro, o sal havia corroído os meus olhos, e meus ouvidos sibilavam, estava muito escuro. Na manhã seguinte, eu pude enfim enxergar os afogados estirados pela mais bela  praia que já vi na vida. Tudo me ficou mais claro. Os que sobreviveram, não sei quantos, foram  devorados, um a um,  por lobos. Apesar de que eu já estava morto, tanto quanto ainda o estou agora, como já disse,  tratei de manter meu corpo respirando. O ódio me fez ficar vivo em corpo. Eu ouvia  gritos durante as noites, mas mesmo durante essas noites, tudo estava mais claro. Eram os lobos a devorar, vivos ainda, os meus companheiros de viagem, as minhas lembranças das ilusórias boas coisas, dos momentos cheios de ternura que não sei interpretei ou  vivi. Quando a lua ficou cheia, quando sua luz prata iluminou  ainda mais a noite, eu já estava só. Além de mim, naquela terra desconhecida,só os lobos, que me espreitavam, que me perseguiam, tudo exceto isso era milenar e tranqiilo. Os lobos eram como um sentimento de culpa, do qual eu deveria fugir para por ele não ser aos poucos devorado. Então.. comecei a ter um sonho freqüente. Eu sonhava que um demônio falava comigo. Ele me dizia: eu estou te chamando. É preciso que tu invadas aquela cidade e mate os que nela habitam, ele dizia isso o tempo todo, sem se calar um só instante. Eu tinha uma espada nas mãos. Eu sonhava com isso todas as noites, e isso era enlouquecedor. Todas as noites eu mal dormia porque era muito frio. Gritando eu arregalava os olhos, tateando no escuro. Onde está a maldita cidade! Eu gritava. Onde está!. E a cada vez que o sono me roubava novamente, cada vez que minhas pálpebras ficavam muito pesadas e com isso eu perdia a vigília, o sonho reaparecia, cada vez mais próximo do real. Era a loucura a se apossar lentamente de mim, acariciando minha mente, para que minha morte não se construísse tão miseravelmente dolorosa.  Toda loucura é como uma analgesia no espírito. Não existe um sentimento definido nessas lembranças. Elas são o que são.

  Aristeu se aproximou da janela e tornou-se silencioso. Estácio entrou na sala e ao divisar ao canto a figura de uma mulher, desculpou-se e tencionou deixar seu mestre a sós com a visita. Mas Aristeu percebera a presença do velho amigo e também compreendeu seu  constrangimento e, por isso, saiu do silêncio.

-Como ela está, Estácio? A noite está fria. Ainda insiste em ficar daquele jeito?

-Não senhor. Ela está vestida e parece-me mais saudável – Estácio falou isso aos sussurros, muito perto dos ouvidos de seu mestre. Mas Aristeu a  não se preocupar falou quase aos gritos, “Essa moça que você está vendo é  como parte de Sofia.  Seu nome é Arminda. Ela já estava de saída”.

A  última frase foi dita assim, quase inaudível, com disfarçado cinismo.

Arminda cruzou o amplo salão, parou ao lado de Aristeu, suspirou e sem mover a face ou os olhos:

-Toda vez que eu me aproximo dela... ela entra em crise. Grita e se debate, até que eu esteja longe. Você não tem idéia do quanto isso dói. Minha querida Dee. Minha querida Dirce... Eu nunca pensei que ela pudesse se tornar isso. Você é um bom homem, Aristeu. Tenta vestir essa máscara , mas não consegue se esconder.

Quando  saiu dali, o que restou ao amplo salão era um vazio silencioso, tépido. Os grilos...nos sons da noite, nos sons da cidade dos circos... tudo lá fora desenhado em lonas cintilantes e leds improváveis.

Quem testemunhasse a cena, de fato, veria Estácio a caminhar sozinho rumo à porta, com os braços estendidos, como se guardasse ao lado a presença de uma dama. Sabia entender seu mestre, e por mais que não visse o que ele via, aceitava, que na verdade era  a sua visão o que se fazia ali, naquela cena toda,  suficiente para alcançar tantas e incontáveis outras dimensões.

-E quanto ao casal?  Quem são eles?- Indagou Aristeu.

-Suicidas, senhor. Ingeriram treblinka. Agora estão mortos. Espero que estejam mais felizes.

Aristeu colocou-se novamente diante da janela. A brisa era extremamente fria.

A brisa era extremamente fria.

“Dizem que não existe paraíso aos suicidas. Nem para os que morrem amantes?” 

-Quando minha irmã Arminda novamente bater à porta desta casa, ouça bem Estácio, não lhe abra novamente a porta.

-sim senhor, mestre - Estácio então se encheu de tristeza.







REDENTA HORA

Redenção, ó redenção,nessas noites de insônia, minhas mãos se revelam a sentir toda graça do mundo, toda a cor, toda a cor deste mundo, esperei poder ver, cada cor como quem vê o amor construído em mil pedras pesadas, redenção.

Quando por vezes falei “arco íris rouco”, falava de tua voz nos meus ouvidos.

Quando pude andar, tratei de me afastar, de correr pro outro lado, descobrir esse mundo, decidir os caminhos, já que esta é a sina que nosso aprendizado de sermos fortes nos impõe. Meus pequenos passos, pequenas sementes.... que de um outro jeito posso supor, que mais e mais me prendem onde fico...  mesmo que eu pense estar correndo para me afastar.

Tua mão me indicava, um lugar mais tranqüilo, um caminho aberto, e um outro lugar a se chegar, estreito, em constructo.

Redenção nessa tua velhice, me seria o florescer de minha alma toda a glória do teu amor triunfante a me bordar durante mil anos.

Redenção que me abriga, diante desses braços abertos
Em mil preces amedontradas de um menino que convalesce diante do som dos trovões
Encontre-me, no saguão a me esconder
A esperar que o dia acabe
Pra deitar comigo


Ela, que habitava aqui junto, agora estaria a esticar a massa sobre a mesa
A buscar a sobrevivência
A não ficar quieta diante das horas...
A rezar suas avemarias durante o pordossol

Mas o teu olhar agora nem entende a minha fisionomia
Teu olhar agora nem compreende os movimentos dos meus olhos
Nem a surpresa que me assola de te ver assim tranqüila
Como se estivesse sentada num jardim florido em vento em final de tarde
Cheia de amor e um calor incessante...
Cheia de tempo para dar o maior amor do mundo
Sem dar a nada o maior Amor do mundo

E  o amor menor como lágrima agora me brota
Nesse jardim as lágrimas são pólem

Elas cobrirão o chão

Elas florescerão até o fim dos meus dias na terra
Ninguém me vociferou que o amor menor seria triste
Ou que amor tinha disso de tamanho ou hora
Mas é que tenho que achar um jeito de dizer



quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

REVELAÇÕES SIMPLES

As sombras da padaria estão compridas a atravessar a rua. seis da manhã...
Os pães ainda estão quentes. Mas de que importa isso, se a esta hora o corpo só aceita o alimento por tradição.

o corpo ainda quer a cama


o corpo também mal quer o dia


um homem velho com sua sacola de feira caminha sorridente rumo ao fim da praça

manhã de raios solares dourados
manhã de sombras compridas

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

SINAL DE FUMAÇA

o que me faz lembrar, reter, guardar, quando procuro

é a certeza de que não me engano quanto ao que lembro, retenho e procuro.


o que cativei guarda de mim a melhor parte

nem passado
nem futuro

só a existência.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

domingo, 11 de dezembro de 2011

CONVERGÊNCIAS 2


Dee se despiu e esticou suas roupas sobre o gramado, experimentando no vazio o vento, o calor...

Pessoas passavam por ali e no entanto nem davam com seu corpo, nessa cidade o corpo é de uma naturalidade indizível, quase impraticável. O vento que vinha do mar, salgado e quente, a tudo secaria, planejava Dee, tudo em pouco tempo, pouco menos que hora e meia. Então sorriu depois de entender isso e se deitou como sabendo que se deitava na superfície de seu planeta. Poderia dormir um pouco, esperar.

Demônios tranqüilos poderiam pousar por ali,  brancos angelinos, nada assustariam. Seria talvez o lugar mais tranqüilo de Antrofazia, e ainda assim se não o fosse não importaria. Era o parque dos madrugantes, arborizado com salgueiros  que se desenhavam como nuvens tão pouco estáticas sobre o gramado oliva,  salgueiros em ramagens  que mutavam lentamente com o vento, lentamente, com o passar dos dias, lentamente no crescer dos galhos, no prosperar dos brotos.

Um casal sentou-se sobre uma pedra próxima e grande como um leito. Dee encolheu-se, mas os dois nem sequer lhe lançaram algum olhar. Ficaram a se encarar como se buscassem meios mais convincentes de comprovar que estavam ali mesmo, em dois, um diante do outro, apaixonados, em romance medieval e impossível. A moça se pôs a chorar. O rapaz enxugava-lhe as lágrimas. Umtípico casal madrugante.

Ao longe, a grande casa de janela  única, abrigando quem sabe um coração solitário, de um homem que nunca se libertaria do olhar através da janela, desenhava o fim do horizonte. Lá, em tal casa, havia esse homem misterioso que ganhara a fama de louco, por ter sido encontrado entre lobos. Ele estava de pé, seu corpo era minúsculo envolvido pelos caixilhos da  janela de inúmeras folhas e vidroscoloridos.

Dee esperava suas roupas secarem. Sentia-se invadida e fragilizada pela melancolia. Largara pelos caminhos a guitarra. Deixara de lado tantos sonhos juvenis, como se aos poucos a realidade se tivesse encarregado de desnudá-la, revelando sua pouca competência em dizer coisas ao mundo através dos esqueletos de suas melodias. Já fazia muito tempo  que planejara melindrar  o mundo com seus cantos, já fazia muito tempo que abandonara sem vida o Maverick empoeirado. Dee já nem era mais Dee.
De tão pouco que era, Dee já nem mais falava.

...

Ele, da sua imensa janela também observa a mulher nua deitada sobre o gramado do parque dos madrugantes, e julgou consigo mesmo que aquilo sim era a felicidade.
Quanto ao casal,  tinha ele somente  a certeza de que se tratava de um par de jovens dispostos a morrer um pouco, a se matar aos poucos, chamando essa lenta morte de amor.

Quando a noite se fez madrugada, Estácio surgiu diante de Dee com cobertores e comida. Ela, como um felino assustado, manteve-se fechada e arisca, não respondendo ao que o velho dizia, rugindo como se quisesse enxotá-lo. Ele aproximou-se do casal, estavam deitados um sobre o outro, seus corpos estavam frios.

Fico com essa necessidade de forjar uma melodia para que a cena crie os contornos que preciso, para segurá-la, para segurá-la firme antes de torná-la palavras. Por muito tempo, eu me deixava adoecer para que as sensações da paisagem e das criaturas fossem tão próximas de mim a ponto de serem reveladas dentro de uma verdade cósmica, pelos substantivos e predicações disponíveis em mim. Que bobagem...  logo eu que nem sei o que digo. Posso imaginar que na manhã seguinte, homens em uniformes espantosos surgiriam para recolher os dois corpos sem vida dos dois jovens amantes. Mas o casal suicida só está na cena por estar na cena, assim como estão na cena também os salgueiros e o gramado.

Dee esperou que Estácio se afastasse e se serviu das uvas e dos pães  que ele lhe trouxera, do mesmo modo que tem feito desde que ela ali chegou e encantou com sua liberdade o  senhor da casa de janela única.
Como era farta a oferta, Dee fez gestos para o casal, a supor poder dividir com eles as uvas e os pães. Eles não se mexiam. O veneno lento se fez neles um senhor absoluto e os cativou. Morrer de amor... prática comum em Antrofazia, e por ser comum, admirada como bela, como criadora de jovens semideuses entre os tolos.



Neuromia

sábado, 10 de dezembro de 2011

CAMISETAS VERDES

Trinta e sete segundos entre cada fúria.
a contagem seria somente para que houvesse espaço para um respirar profundo. a cada mergulho a mudança de mundo tomava forma entre os olhos.
fundo do mar.

lugar imenso e disforme.

atravessa a multidão enfiado em camisetas verdes. sente-se melhor com esse poder de independência que o dinheiro acolhe


fundo do mar, onde os corais são de um colorido improfanável.



trinta e sete segundos para respirar profundo. quantas vezes subir?

quantas vezes respirar?

o colorido  de um deus improfanável.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O CANTO

ouvi, distante, dali de onde eu estava parecia distante, o cantar de um galo.

desci-me da cama e aquietei-me para que pudesse ouvi-lo de novo.


 Adormeci nessa espera esquisita.

quando aos meus amigos narrei tal fato, na manhã que veio, riram-se de mim. Fiquei com a desconfiança de uma certa loucura a respeito dos galos, de sua utilidade, dessa relação humana de tempo galo e madrugadas.

Dessa esquisita sinfonia de tempo, canto, e despertar.

Dessa suspeita de tudo isso já é superado, nesse mundo em cristal líquido, em que os despertadores  parecem somente ainda mais nos deixar em sono profundo a cada vez que supostamente nos despertam.

"já não existem mais", disseram-me. Mas cresci acreditando na imponência de um canto que virou sombra?

sim, são anedotas do passado. são adivinhações poéticas de um messias esquecido, que se via negado antes de seus tres cantos matutinos.


durmo apertando botões de um controle remoto. desperto dentro de  um falso silêncio de paredes acústicamente tratadas. lá fora a humanidade ruge, como leões em Samaria.