-Não acho que seja justa essa sua mudança comigo. Não sei o que eu possa ter feito para que isso seja justo.
-Não se trata de justiça.
-Até um dia desses, tu me recebeste com carinho. Parecia feliz em voltar a me ver. Mas... prestando bem atenção, só me aceitou naquele dia, logo que entrei aqui. Depois? Depois, deixou até de me cumprimentar, ou me aceitar como visita. Fiz alguma coisa errada? Sério. Sempre te achei muito educado. É muito estranha essa sua mudança do comportamento comigo.
-tem um ditado Árabe que diz: Se és amigo de meu inimigo, és meu inimigo.
-Então é por causa disso? Não pode entender que disso em mim quase nada mais resta?
-Sim.
-Acha isso justo?
-Não é questão de justiça. É só uma única opção que tenho. E é uma opção fria, eu sei. Você ama e faz parte de um mundo que expulsei de perto. Quando olho pra você, quando você se aproxima, eu posso sentir o cheiro do que expulsei. Mesmo que tudo agora não seja o mesmo que foi. Você não é a única. Expulsei muitos outros. Até queimei livros. Destruí coisas que eu gostava. Destruí coisas que estavam comigo por muito, muito tempo. Tive que matar boa parte de mim, também. Ouvi dizer que havia uma prática muito comum em guerras antigas. Quando um inimigo quase invencível era vencido, ele tinha que ser varrido da face da terra, para que deixasse de ser uma ameaça latente. Para que isso acontecesse, todos os vencidos, homens, mulheres, crianças, até mesmo os templos, os deuses, os escritos, tudo Arminda, tudo era destruído, para que todo o mal que o inimigo representava fosse esquecido, para que desaparecessem tanto as dores causadas, quanto as lembranças dessas dores. Quando eu olho pra você, tudo reaparece. é por isso que não lhe quero mais aqui.
-Isso é ódio.
-Pode chamar assim se quiser.
-Houve alguma vez outra coisa?
-Houve mentira.
-o quê? O que eu deveria saber?
-Nunca se sentiu assim?
-Não sei ao certo.
-O sentimento depois é de nojo. Um arrependimento que beira o nojo. Estranho. Arrependimento da mais pura espécie. Arrependimento . Talvez o ódio seja o esqueleto disso: o arrependimento de ter sentido felicidade... O arrependimento de ver a todo instante o fantasma de um outro caminho. O caminho que indaga: E se tudo fosse? E se o erro não estivesse?
-Quando você se salvou... quando se viu sozinho naquela ilha... o que sentia?
- Careceríamos de muito tempo , para que eu pudesse falar a respeito de tantas coisas que me ocorreram. Eu me senti morto naquela ilha. Eu nunca, porém, me havia salvado. Eu já estava morto muito antes do navio afundar. Quando alcancei a ilha, depois de nadar como louco, estava um tanto escuro... escuro. Era quarto crescente, mas havia muitas nuvens e estava muito escuro, o sal havia corroído os meus olhos, e meus ouvidos sibilavam, estava muito escuro. Na manhã seguinte, eu pude enfim enxergar os afogados estirados pela mais bela praia que já vi na vida. Tudo me ficou mais claro. Os que sobreviveram, não sei quantos, foram devorados, um a um, por lobos. Apesar de que eu já estava morto, tanto quanto ainda o estou agora, como já disse, tratei de manter meu corpo respirando. O ódio me fez ficar vivo em corpo. Eu ouvia gritos durante as noites, mas mesmo durante essas noites, tudo estava mais claro. Eram os lobos a devorar, vivos ainda, os meus companheiros de viagem, as minhas lembranças das ilusórias boas coisas, dos momentos cheios de ternura que não sei interpretei ou vivi. Quando a lua ficou cheia, quando sua luz prata iluminou ainda mais a noite, eu já estava só. Além de mim, naquela terra desconhecida,só os lobos, que me espreitavam, que me perseguiam, tudo exceto isso era milenar e tranqiilo. Os lobos eram como um sentimento de culpa, do qual eu deveria fugir para por ele não ser aos poucos devorado. Então.. comecei a ter um sonho freqüente. Eu sonhava que um demônio falava comigo. Ele me dizia: eu estou te chamando. É preciso que tu invadas aquela cidade e mate os que nela habitam, ele dizia isso o tempo todo, sem se calar um só instante. Eu tinha uma espada nas mãos. Eu sonhava com isso todas as noites, e isso era enlouquecedor. Todas as noites eu mal dormia porque era muito frio. Gritando eu arregalava os olhos, tateando no escuro. Onde está a maldita cidade! Eu gritava. Onde está!. E a cada vez que o sono me roubava novamente, cada vez que minhas pálpebras ficavam muito pesadas e com isso eu perdia a vigília, o sonho reaparecia, cada vez mais próximo do real. Era a loucura a se apossar lentamente de mim, acariciando minha mente, para que minha morte não se construísse tão miseravelmente dolorosa. Toda loucura é como uma analgesia no espírito. Não existe um sentimento definido nessas lembranças. Elas são o que são.
Aristeu se aproximou da janela e tornou-se silencioso. Estácio entrou na sala e ao divisar ao canto a figura de uma mulher, desculpou-se e tencionou deixar seu mestre a sós com a visita. Mas Aristeu percebera a presença do velho amigo e também compreendeu seu constrangimento e, por isso, saiu do silêncio.
-Como ela está, Estácio? A noite está fria. Ainda insiste em ficar daquele jeito?
-Não senhor. Ela está vestida e parece-me mais saudável – Estácio falou isso aos sussurros, muito perto dos ouvidos de seu mestre. Mas Aristeu a não se preocupar falou quase aos gritos, “Essa moça que você está vendo é como parte de Sofia. Seu nome é Arminda. Ela já estava de saída”.
A última frase foi dita assim, quase inaudível, com disfarçado cinismo.
Arminda cruzou o amplo salão, parou ao lado de Aristeu, suspirou e sem mover a face ou os olhos:
-Toda vez que eu me aproximo dela... ela entra em crise. Grita e se debate, até que eu esteja longe. Você não tem idéia do quanto isso dói. Minha querida Dee. Minha querida Dirce... Eu nunca pensei que ela pudesse se tornar isso. Você é um bom homem, Aristeu. Tenta vestir essa máscara , mas não consegue se esconder.
Quando saiu dali, o que restou ao amplo salão era um vazio silencioso, tépido. Os grilos...nos sons da noite, nos sons da cidade dos circos... tudo lá fora desenhado em lonas cintilantes e leds improváveis.
Quem testemunhasse a cena, de fato, veria Estácio a caminhar sozinho rumo à porta, com os braços estendidos, como se guardasse ao lado a presença de uma dama. Sabia entender seu mestre, e por mais que não visse o que ele via, aceitava, que na verdade era a sua visão o que se fazia ali, naquela cena toda, suficiente para alcançar tantas e incontáveis outras dimensões.
-E quanto ao casal? Quem são eles?- Indagou Aristeu.
-Suicidas, senhor. Ingeriram treblinka. Agora estão mortos. Espero que estejam mais felizes.
Aristeu colocou-se novamente diante da janela. A brisa era extremamente fria.
A brisa era extremamente fria.
“Dizem que não existe paraíso aos suicidas. Nem para os que morrem amantes?”
-Quando minha irmã Arminda novamente bater à porta desta casa, ouça bem Estácio, não lhe abra novamente a porta.
-sim senhor, mestre - Estácio então se encheu de tristeza.