Depois do almoço, depois de trocar receitas e desejar coisas melhores do que as coisas saborosas que estávamos comendo, começamos a conversar tendo olhos nos olhos. Ela com os cabelos volumosos e crespos, ornados por uma faixa de tecido lilás que recobria parte de sua testa.
Tenho um vazio que preencho com uma visão entrecortada de minha infância. Lembro-me das batidas fortes de meu coração com medo, e das cores de bandeirolas de papel de seda que se manchavam com as gotas de uma chuva fina. Havia um par de olhos de uma estátua santa do redentor em seu bom fim e o ressoar de alfaias e estouros de foguetes. Eu podia jurar que era capaz de sentir o cheiro do papel de seda. Custei a assimilar que esse era o mesmo cheiro de pólvora queimada, exalada pelos foguetes. Talvez a relação entre as duas coisas, seda e pólvora tenham sido agregadas a minha memória por conta das estrelinhas de São João que meu pai costumava me dar nos festejos de junho. Estrelinhas produzidas pelo queimar do fino tubo de papel de seda verde, vermelho, azul real e amarelo.
Minha infância sempre se mostra pra mim assim, vestida com as cores do papel de seda, dançando ao som do vento nas bandeirinhas... do bamboar das alfaias.
O artista tem o poder de se fazer portal dessas memórias.
Depois de confessar esses meu segredos, como quem confessa uma tristeza, ela me mostrou seus olhos vermelhos, sentindo uma emoção que só seu leve sorriso pôde me ilustrar.
Você tem uma presença doce, eu pensei, tão suavemente doce como o perfume de um jambo maduro caído do jambeiro da colina onde cresci, a pensar que jamais pudesse envelhecer. Guarde sua doçura com cuidado, cuide de seu coração com carinho.
Ela enxugou as lágrimas. Jovem. Pesquisa o trabalho de um artista que morreu há pouco tempo. Enxugou as lágrimas com apologias. As esperanças podem se renovar então, o verde novo pode surgir entre as folhagens. No mundo há ainda essas raras almas. Há ainda uma dessas almas no mundo com o coração feminino repleto de saudades de um tempo no qual a delicadeza pudesse ser encarnada pelas nuances de um desvario de memória, como o meu desvario a recordar das cores de seda de meu tempo de menino.
Quando ela se foi, atravessando a rua, senti uma falta tão grande da menina, que me deixei ser tomado por essa vontade de me encolher.
Sentei-me na calçada então.
e lá estava um início de tarde chuvoso.
e nele, nesse início de tarde, lá estava eu, desejando a mágica dos meu velhos brinquedos que o tempo levou.