terça-feira, 16 de setembro de 2014

passos de formiga 19



Pegadas humanas num caminho de lama vermelha. Pegadas de crianças. Restos de um brinquedo em partes desoladas, uma boneca ressurgida de outra vida, ou consequência de uma explosão. Uma imperceptível bola de gude tanto quanto uma pequena poça  de água, refletiam uma luz proveniente do céu daquele dia acinzentado.

A visão da pintura revisitou-me diante do quarto da menina. Recordei-me da paleta dominada pelo vermelho. chamuscado pelo verde ou revivificado pelo amarelo. O vermelho dominou-me por um tempo como quem olha pro sol com as pálpebras semicerradas.

A única coisa que restou de bom grado sendo dito foi um palavrão sinistro.

Mais uma vez a vida desolou-me e esperou pra me revelar isso no fim de uma escadaria.

Passos de formiga...

dilacerados por passos de humanos, porém infinitamente persistentes.


Não espere os ecos do grito 18

Subi as escadas em saltos largos. Seus gritos de início pareceram-me de susto. "Ela nunca gritou assim", pensei tomado por um pavor de qualquer coisa: de um ladrão plantado ao centro de seu quarto; de um animal noturno de aspecto horrível encontrado debaixo do travesseiro;  de um acidente, um escorregão...

Foi quando empurrei a porta do quarto.

Minha menina havia parado de gritar.


A mágica dos velhos brinquedos 17

Depois do almoço, depois de trocar receitas e desejar coisas melhores do que as coisas saborosas que estávamos comendo, começamos a conversar tendo olhos nos olhos. Ela com os cabelos volumosos e crespos, ornados por uma faixa de tecido lilás que recobria parte de sua testa. 

Tenho um vazio que preencho com uma visão entrecortada de minha infância. Lembro-me das batidas fortes de meu coração com medo, e das cores de bandeirolas de papel de seda que se manchavam com as gotas de uma chuva fina. Havia um par de olhos de uma estátua santa do redentor em seu bom fim e o ressoar de alfaias e estouros de foguetes. Eu podia jurar que era capaz de sentir o cheiro do papel de seda. Custei a assimilar que esse era o mesmo cheiro de pólvora queimada, exalada pelos foguetes. Talvez a relação entre as duas coisas, seda e pólvora tenham sido agregadas a minha memória por conta das estrelinhas de São João que meu pai costumava me dar nos festejos de junho. Estrelinhas produzidas pelo queimar do fino  tubo de papel de seda verde, vermelho, azul real e amarelo. 

Minha infância sempre se mostra pra mim assim, vestida com as cores do papel de seda, dançando ao som do vento nas bandeirinhas... do bamboar das alfaias.


O artista tem o poder de se fazer portal dessas memórias.

Depois de confessar esses meu segredos, como quem confessa uma tristeza, ela me mostrou seus olhos vermelhos, sentindo uma emoção que só seu leve sorriso pôde me ilustrar.

Você tem uma presença doce, eu pensei, tão suavemente doce como o perfume de um jambo maduro caído do jambeiro da colina onde cresci, a pensar que jamais pudesse envelhecer. Guarde sua doçura com cuidado, cuide de seu coração com  carinho.

Ela enxugou as lágrimas. Jovem. Pesquisa o trabalho de um artista que morreu há pouco tempo. Enxugou as lágrimas com apologias. As esperanças podem se renovar então, o verde novo  pode surgir entre as folhagens. No mundo há ainda essas raras almas. Há ainda uma dessas almas no mundo com o coração feminino repleto de saudades de um tempo no qual a delicadeza pudesse ser encarnada pelas nuances de um desvario de memória, como o meu desvario a recordar das cores  de seda de meu tempo de menino.

Quando ela se foi, atravessando a rua,  senti uma falta tão grande da menina, que me deixei ser tomado por essa vontade de me encolher. 

Sentei-me na calçada então.  

e lá estava um início de tarde chuvoso.

e nele, nesse início de tarde, lá estava eu, desejando a mágica dos meu velhos brinquedos que o tempo levou.

  

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

o fim de um homem 16

Fiquei olhando pra ele assim meio de longe, sem que ele pudesse dar comigo ali a observá-lo.

Sentou-se num banco à beira rio e se deixou quieto até o fim do por do sol.

Ontem ele me disse que estava cansado. Falou-me que aquelas eram suas últimas tentativas de conseguir chegar. Parecia-me um pouco motivado. Hoje porém, nem me parece ser o mesmo., envelheceu, suas costas arquearam...

O que fará depois que a noite cair?

"Preciso ver minha filha crescer. Ela não pode crescer sem um pai. Não que o pai seja lá grande coisa. Mas ela é certamente a única coisa que mantém o pai vivo". Disse-me entre os tragos de rum.

Há homens que vieram a este mundo para cumprir uma grande missão e conseguem.

Há outros, muitos outros que não conseguem cumpri-la.

"Eu não consegui cumprir minha missão. Vou morrer e talvez, se tiver alguma lembrança disso do outro lado, vou passar a eternidade me lamentando por isso".

Eu só podia ficar olhando enquanto ele dizia essas coisas. Pensei em culpas...

Mas de quem é a culpa?

De quem é a culpa afinal?

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O instinto 15

"É necessário que os homens se matem entre si. É uma forma natural de controle da própria maldição humana". Falei isso diante de uma plateia de jovens estudantes de arte. Uma multidão de rapazes afeminados e mocinhas  remelentas de cabelos sujos, que me olhavam com olhos vermelhos. "Tudo está morto no mundo de vocês. Tudo está morto no meu mundo. Sou um amontoado de lembranças furtivas de um tempo bom, que existia nos livros empoeirados do meu avô".

Saí do auditório por volta das cinco. Uma turminha caminhava ao meu lado fazendo barulho. Ofereceram-me algo que fumavam. Dei dois tragos e rápido fiquei legal. A menina havia estacionado o carro debaixo de um flamboaiã e esperava por mim enquanto se distraía olhando o rio. Tornou-se uma linda mulher de vinte e cinco anos, com seu jaleco branco e sua aparência de nojenta assepsia. Sorriu quando me viu entre os garotos. Gargalhou quando percebeu que eu estava doidão.

-Como foi lá? Ela indagou
-Falei um monte de besteiras. Comecei a formular coisas estranhas. No final dei dois tragos da maconha deles. O orientador parece não ter gostado.

O carro cortou a meridional com uma velocidade agradável. Ela dirigia bem. Eu podia sentir até os pelos do meu rosto. Podia sentir também o cheiro do final da tarde. Comecei a sofrer uma fome insuportável e então paramos numa sorveteria antes de seguirmos pra casa.

Chegamos  por volta das sete. Corri direto pras panelas em busca de comida. Ela subiu as escadas e me desejou boa noite. "É cedo, eu sei... mas estou morta".

A casa agora era bem maior. Ficava no bairro mais antigo da cidade e eu não me cansava de admirar sua arquitetura. Comecei a ouvir as cigarras do bosque, sentado numa velha cadeira de balanço, comendo as sobras do almoço com voracidade juvenil. Foi quando ouvi um grito, que atravessou a tranquilidade da casa ecoando através de seus corredores.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Passos de formiga 14

Acordei no sofá com dores pelo corpo, ouvi o chuveiro do atelier. Depois de alguns passos e pude ver uma mulher nua esfregando as pernas. Fiquei a olhá-la sem grande excitação; não sem nenhuma. Mas os impulsos do corpo, proporcionados por aquela mulher no banho não eram suficientes para me fazer cair numa  aventura instintiva matinal. 

A menina entrou e colocou sobre a mesa uns sacos de papel. Dos seus fones de ouvido eu podia quase definir qual música ouvia. Olhou para Drina tomando banho e sorriu. olhou em seguida pra mim e torceu os lábios.

Meti a mão num dos sacos que ela trouxe e saí dele com uma maçã. Foi o que comecei a comer quando Drina saiu do chuveiro se enxugando. A criatura nua, de corpo roliço e branco atravessou o salão do atelier até a mesa, pegou outra maçã me fazendo uma reverência e sumiu pelo corredor.

Pouco tempo depois ouvi o motor de partida de seu carro e em seguida o ronco de seu velho escapamento. Duas breves buzinadas me deram o sinal de que Drina tinha se mandado.

A menina vestiu um uniforme escolar com um pouco mais de cerimônia. Antes de sair me beijou na testa. Fiquei a mirar a grande pintura, a me despedir como um tolo apegado, no início daquele dia, que parecia começar incomum, mas que na verdade poderia me abrir um novo ciclo, até então de nome desconhecido. 

passos de formiga 13

Drina entrou  com um sorriso enorme. Esperou por dez meses por aquele dia. Quando puxei o pano que encobria a enorme tela ela deu um suspiro. Ficou em silencio por cronometrados dezessete minutos. 'Deu do céu!", exclamou isso seis vezes depois da pausa e só começou a tagarelar depois que bebeu um pouco de vinho. Foi a menina quem lhe serviu, com a generosidade de quem deseja embebedar um distraído.

Drina deu grandes goles da taça e se manteve de pé diante da grande tela. Indagou o preço e quando lhe disse o valor, deu mais três goles e rosnou: "vá se foder!". Pediu desculpas para a menina, beijando-lhe a testa. A menina completou sua taça com vinho. A cena era engraçada e comecei a rir.

-Porque tu tá rindo?- Drina indagou já com a língua pesada.
-Você vai ficar bêbada.
-Bêbada? Eu já estou bêbada! Essa porra é a coisa mais foda que você já pintou e vale muito mais que isso.
-Quer mais vinho? - A menina parecia ter assumido a louca missão de secar aquela garrafa.
-Essa tua filha colocou alguma coisa nessa taça?
-Não, só tem suco de uva fermentado aí. - Disse a menina colocando a garrafa emborcada, deixando cair as últimas gotas de vinho. Piscou-me um olho e saiu.

Tirei a taça das mãos de Drina e lhe fiz sentar no sofá. Ela caiu pesadamente. Nunca tinha visto alguém ficar de porre tão depressa. era uma mulher volumosa, com grandes mamas que tentavam escapar pelo seu decote. o vestido azul de malha que usava era curto, deixava-lhe com a calcinha de renda sempre à mostra.

Foi então que pela primeira vez olhei pra tela depois de julgar ter terminado o longo processo. Era a imagem de pegadas humanas num caminho de lama vermelha. As pegadas de botas pesadas se misturavam a pegadas de crianças pequenas. Capsulas de projéteis e formigas mortas dividiam uma cena de profunda desolação.

Drina começou a soluçar, mas aquilo me pareceu engraçado. 

Ficamos ali a noite inteira sem trocar nenhuma palavra.