quarta-feira, 16 de abril de 2014

BASILISCO



 "(…)Sê como o basilisco, que o inimigo mata por invisível ferimento."
[ Shelley]



Marília, não há 
Outra ilha no mar
Marília só há 
sua ilha
Mar e ilha, Marília!

O mar não silencia. Ouvir seu rugido soturno é como ouvir as cantigas impertinentes de um trovador na lida. E nossa cidade, surgida entre as cantigas feitas para o mar, também não silencia. 

Imagino o olhar basilistico do mar, um convite ao afogamento. Um tentador pedido. afogue-se! diz o rugido que não cessa. Essa voz habita o silencio de Marília, ela não a entende, não a decifra. Marília planta os pés na terra a cada vez que ele, o mar, noturno lhe vocifera. "Lá habita o basilisco", ouviu isso nas trovas de sua infância, nas cantigas de roda, nas crenças dos velhos do templo. 

Marília me foi trazida numa noite de chuva, como um capítulo dos círculos de Serafin. A árvore da vida, a geometria sagrada e os antigos mistérios ocultos também me trouxeram o movimento de Marília. Ela não é disforme e incompleta como a pequena senhora, nem sonhadora e bela como Melinda. Mas, suas sutileza são tão pesadas que não me atrevo a desenhá-la além de seus gestos. Marília é pura forma e movimento, por isso é cena, não cabendo num outro tipo de descrição.

Apaixono-me por essas personagens e ando com elas em mim onde quer que eu vá; não as abandono ou as esqueço vitimado pelo tempo. Claro que as confundo a uma superfície única, mas por decifrá-las em suas individualidades, tão bem e por por um longo tempo, faço-me criador na própria criatura e vivo com elas em suas vidas.

O náufrago representa essa doação do que lhe resta de vida.

Os sonhos de Marília são representados por uma caixa que flutua através do oceano até encontrar um náufrago, moribundo, numa ilha rochosa, na qual espatifou-se seu veleiro. O náufrago é o mesmo espírito que outrora construíra veleiros para se extraviar. É o mesmo Horácio, é quase o mesmo Serafin.

Só o que importa do náufrago para a cena, é o seu último alento de vida, seus últimos movimentos. Naufragado há cinco dias, a desidratação e a fome o condenam. Seu olhar está perdido, vago, o olhar anterior à morte naqueles que já se desapegam da vida.

A pequena caixa à flor das ondas o alcança nesse estágio letárgico. Seu corpo convalesce e ele mal consegue se locomover até o objeto. Procura por comida, por um líquido qualquer que aplaque sua terrível sede. Mas na caixa só encontra os sonhos de Maríla. E são os sonhos de Marília que por um milagre o fazem acreditar que é possível morrer em paz.

Marília encontrou sua ilha

Não havia só uma ilha, como dizem as cantigas de Antrofazia.

Mar é ilha, Marília.  


sexta-feira, 4 de abril de 2014

FLUXO


"Se o tempo corresse menos...

Todos os movimentos dela serão minha culpa. Sua vida, em início e fim,  será minha culpa. 

Se milagrosamente um fluxo de pensamentos se formasse nela, independente de mim, e se esses pensamentos me tomassem como prisão e inimigo...

seria tudo isso minha culpa.

Deitaria a mulher de porcelana sobra a bancada com todas essas arquiteturas na cabeça. Haverá um dia em que lhe sustentarei pelo fio da vida?

Será minha responsabilidade sua vida e morte. Os movimentos dela seguiriam os meus. Nada nela se faria sem que sua energia viesse de minha alma".

Nas rochas que cobrem a estéril ilha, o náufrago se deixa nesse fluxo de frases. Os pés tentando se manter ilesos sobre as rochas, os olhos a buscar no horizonte um motivo.

Marília é o receptáculo da vida que se esvai.