domingo, 27 de novembro de 2016

DE VEZ EM QUANDO CORTO-ME NA CARNE

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Fico a olhar pros teus pés e esqueço-me que um dia a lâmina escapou-me... e me feriu. Toco nos seus pés...

Posso beijá-los? Posso só ficar olhando pra eles? Posso sem anomalia alguma ficar perdido em pensamentos olhando para eles?

Por onde  andaste, menina? Suas andanças são tão imaginárias, que imaginá-las é como sonhar dentro de um sonho, como subir numa escada de papelão.

Não eras nada além de uma beleza que habitava o interior de um outro corpo. Dediquei minha vida  a te tirar de lá. E agora dizes com esse olhar doce que não sou muito. mas é justo... não me vistes te esculpindo antes que teus fios te achassem, e essa minha ação veio de um dom e dons não sou responsabilidade do domado.

Ah menina, não posso te mostrar as cicatrizes das lâminas que me penetraram na palma da mão esquerda enquanto eu te libertava.

E agora que estás aí, ficam as maravalhas...  e tudo o que sei de ti é o que em ti crio e manipulo.

Sinto um amor estranho. Sabe-se lá o que sinto.

Sinto me arderem os olhos

É por tua causa que transformo minha carne na carne de cedros...


Estou soterrado por tudo o que criei de ti. meu mar e minha ilha. Minha vontade de ir embora.

Minha pequena Marília, que nasceu com amor nos olhos.
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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O AMOR CRIADOR

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surge quando o universo, como que com cuidado aproxima o que nunca poderia ter estado separado.

Está oculto no olhar do desatento, na hora exata em que enxerga o voo da borboleta ou o lento desabrochar de uma camélia que só acontece para o pouso de uma única abelha.

É como estar quieto e, num dia de pouco vento, ter a honra de ser o corpo no qual pousa delicada a flor da samaúma.
É tão raro, que sonhá-lo é quase o mesmo que perdê-lo.
É no sonho que se forja o seu tamanho e sua presença.
É enquanto desperto, que se entende sua ausência.
A alma sente quando ele se aproxima
E todas as outras almas de tudo, por um instante, recomeçam e retornam ao dia em que nada buscavam...
e tudo se enche de paz e se recria.
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A alma sente quando vai embora
e é assim que a paz se enche de tudo, para ter paz.
e tudo se cria.
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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Golondrina 3

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Eu diria que estou além de um corpo falho, de um temperamento incompleto e de uma forma fora de acordo.

Eu diria que bastaria a presença, ou a suspeita. Diria que o toque no corpo seria apenas uma consequência de estarmos em algum lugar ao mesmo tempo. Já ouvi casos em que almas irmãs se encontraram mesmo em tempos diferentes. Mas no caso, tornaram-se necessárias as imagens em sonho ou alguma fotografia esquecida numa parede ou num canto de um alpendre.

Talvez tenha mesmo sido por sua decisão somente que eu estivesse ali, diante dela, sentado num sofá. na encruzilhada da casa que um dia foi de um pintor de sedas. Por ideia minha, estaríamos diante do rio, mesmo com a forte ventania que se fazia vindo a nordeste.

Uma casa colorida me surgiu e depois de uma procura breve e umas quantas caminhadas inúteis, alcancei o interruptor da campainha. E tudo isso foi antes de estar neste sofá, diante dela, com o coração docemente alegre e suspeitosamente duvidoso.

Há tempos que eu não tinha tanta certeza, de que de algum modo, alguém no mundo sentia igual a mim, uma estranha melancolia por supor que o universo era tão belo a ponto de nos caber inteiro na imensidão de uma espera.

"É o paraíso", eu disse naquele outro dia. "Deve ser isso o que tantos chamam de paraíso. encontrar uma paz assim... um olhar que te cabe..."

"Quer chá?" indagou-me.

Mas lembro que o chá foi depois do beijo. É claro que estou confuso. Eu beijara o improvável... Ou o chá foi antes do beijo?

A total improbabilidade estava ao toque de minha boca. Mas por algum motivo maior não havia temor de tudo ser tolice. Deveria ter tido um temor, mas a ânsia não se importava.

Pensei que um chá seria tudo o que um homem sensato poderia desejar. homem sensato? Agora sei que a sensatez precisa de olhos atentos e de corações impuros e doloridos, para surgir como o monstro do lago.

O chá não veio, agora lembrei.  Foi o beijo antes de tudo... Pois tudo o que importa cresceu depois daquilo.
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