sexta-feira, 30 de novembro de 2012

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Por anos seguidos não mais pude ver Santiago encalhado no Rio Poxim.

A falta daquele barco velho e pobre nas águas diante do centro velho, tiravam, pra mim, uma grande parte da beleza de Aracaju. Agora o manguezal mostra-se frondoso e os barcos com motor Honda substituem as libertárias jangadas de pesca.

Viver o agora não é uma tarefa fácil.

Eu pensava nessas coisas enquanto o médico escrevia garranchos numa receita. Ele havia apertado minhas costelas e eu sinceramente vi estrelas. Pensei em providenciar analgésicos. Era preciso estar em ordem para construir um trenó de natal, que aguardava ainda em matéria prima no atelier. quantas idiotices você poderia fazer para descolar uma boa grana?

Com Santiago, sem remos, Serafin buscou seu signo perdido. O que ele encontrou foi uma praia, um moinho de vento sem vento, um trigal, um cercado pintado de branco e uma criatura sem nome, que corria sem rosto e sem rumo por essa paisagem. Santiago tem a fisionomia de meu passado, quando tive que morar em casas muito velhas, dividindo espaço com escorpiões, comendo pão e leite e ouvindo música estrangeira.

Sem grana para condução, eu caminhava pela avenida Beiramar. E lá estava o pequeno barco de pesca, todos os dias, balançando, no mesmo lugar. Santiago parecia não ter vida, parecia não ter dono. A única coisa que o prendia de uma liberdade total era uma corda velha que, talvez amarrada a uma pedra afundeada, lhe servia como âncora. Pobre barco, diante de tanto rio, diante desse delta que se abre para o Atlântico, continua preso.

Então me veio a pergunta tola que trata de prisões e liberdades. Santiago, meu signo particular dessa ideia, jamais abandonaria meu juízo. Sempre reaparece com seu balançar tranquilo de quem se conforma com o pouco que lhe cabe; e eu sempre com a maldita ideia de cortar a velha corda e deixá-lo fugir de bubuia rumo ao oceano infinito e profundo.

Na 125, vez ou outra me vejo de bubuia rodando sobre o asfalto da Augusto.

Viver o agora não é uma tarefa fácil. Os garranchos do médico foram decifrados pelo farmacêutico; eles devem ter um pacto secreto de sangue.

A vida não deve estar farta ainda de mim. A corda velha ainda está lá.

Mas sinceramente...





que se foda.

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Certa vez eu fiz uma outra contagem regressiva, muito parecida com esta que faço agora. Eu estava a ponto de estourar e só havia uma salvação. Então eu contava regressivamente os dias que me separavam dos olhos de Pirilampo, e de sua mãe, que lhe guardara pra mim.

Eu tinha cometido um erro, entrado numa brincadeira de crianças perdidas. Eu estava com todas as juntas doloridas, pois eu já era um velho.

E eu pensava: Os olhos de pirilampo vão me curar dessa doença.

Lembro que foi num mês de dezembro que recebi a notícia de que minha contagem regressiva fora inútil. Eu não teria mais a presença da menina ao meu lado. Lembro que eu tive um ombro pra me queixar, no qual apoiei minha cabeça e lagrimei como uma mocinha. Lembro que eu não soube ao certo o que senti.

Veja só o que arranquei de mim mesmo.
Idiota.

Ouço muita gente falar de amor. Sinto meus tímpanos estourarem de tanto ouvir essa gente gritando os seus amores. Se todos nós nos calássemos um instante, por um segundo deixássemos o universo livre de nossas caraminholas, quem sabe, reaprenderíamos  a amar.


Nina me recebeu e cuidou do que restava em mim, depois daquele dezembro. Absolutamente sem fé, passei a olhar para corpos humanos andando como quem olha para criaturas desconexas, tontas, cheias de estardalhaço, amontoados como bonecos playmobil numa pequena estação ferroviária . Minha decepção, minha raiva, meus erros tomavam conta de minha cabeça.  Envelheci ainda mais do mesmo modo como envelhecem os castanheiros. Eu bebia água, eu comia o que bem fosse; qualquer coisa que me saciasse a fome ou a sede. Eu estava cheio de ódio.

Atravessei o país, certa vez, só para dizer que amava. Era um tempo em que eu não sentia dores musculares. Amar, nunca julguei que esse verbo, agora banal pela cidade por conta de sua força mercantil, fosse vazio em minha boca. Esse verbo me preenchia e me fazia desejar povoar o mundo. Eu estava louco, invadido de uma deliciosa loucura permissiva, apaixonado. Foi com ela, a dona disso, depois de alguns anos, que escolhi ter um filho. Descobrimos um tempo depois, num exame onde os sons tomam forma visível, que se tratava de uma menina. O que sentir? Dávamos ao mundo uma ninfa? Uma cura? Toda criança que nasce possui o enigma e a potência de um messias.

Buscar em outras criaturas isso que  me faltava...  

Ideia tola dos diabos. Era como se nu, eu tateasse entre urtigas, tentando a todo o custo encontrar um diamante. Sozinho, eu não conseguia criar; tornei-me um fracasso ambulante; alguém que depois de um naufrágio já simplesmente espera que os músculos não obedeçam. Rub deu-me então o mundo, o espaço, as possibilidades e o caminho. É claro que não entendi assim naquele instante, é claro que assim só agora entendo. A merda é que os sinais que me surgiram  foram os mesmo que me fraudaram logo depois.

Nina agora mesmo sabe que devo ir, pois já me enxerga e reconhece meus olhos entre os olhos da multidão... e o amor em mim por Nina é um tempo livre de medição. Nina trouxe-me num jarro a cura. Nina buscou me colocar de volta diante do caminho, aquele mesmo caminho. Volte a caminhar! Ela me dizia com seus gestos, eu mal conseguia manter os olhos abertos. Nina, por causa da criatura mágica que é, levou-me a me reconstruir.


Foi depois de velho que aprendi que há quem seja imenso em disfarces. Tão imenso que nem mesmo sabe que disfarça. Eu mesmo por tanto tempo disfarcei. Mas agora basta. Essas rotinas cansativas de verter o mundo de acordo com os ventos que esperamos...

Essas rotinas vazias...

Definitivamente o amor não é essa quantidade imensa de palavras e, toda essa gritaria mundana para deuses, músicas, artes...  destemperos planejados.

Tenho tentado novamente jardinar a área livre diante de minha casa. Os dias de sol estão tão dominantes...

Hoje faz um frio de chuva. Seria um bom dia pra sentir saudades e tomar café coado com biscoitos mineiros. Hoje seria um bom dia para pensar na vida...  sem pensar em nada.


O que me aguarda no final desta contagem regressiva?

Penso na imagem do riso de Pirilampo.
Penso em Nina
em Rub
em Dora a olhar através da janela


Penso em Pandora
em Bodelé

Penso que o sorriso em tudo isso é o mesmo sorriso meu. Diamante entre urtigas, guardado pelo tempo e pelo testemunho de quem o perdeu, valorizado ao divino pela criatura cansada que o reencontra, neste dia que amanhece com um  frio de chuva.

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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

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Se a respiração tornou-se uma atividade dolorida, quase insuportável. Quanto não deve ser dolorido o respirar profundo?

Como levantar as pesadas peças de virola?

Como descer lá do sótão as tábuas virgens?

com a força dos músculos em tensão, não há como sair sem os desgastes oriundos da queda. Uma pequena queda num estacionamento, onde eu  buscava uma vaga, para aquietar a nervosa 125.

fatos pequenos do dia se confundem com os caminhos da alma. Tenho pensado em deixar ao longe, de vez, quieto como uma peraltice da infância, esse sonho. Penso por mil vezes em abandonar a cenografia. Na minha vida, a cenografia teve um começo ruim, e as tramas terríveis desse começo ainda me incomodam.

Por outro lado, calar esse léxico, que me faz sentir um pequeno deus construtor de Édens, seria calar não só a trama suja, mas parte boa de minha alegria.

Tenho pensado idiotices mexicanas. tenho imaginado mulheres de longas cabeleiras laqueadas a chorar sem lágrimas diante de uma câmera, dizendo a si mesmas: "pobre mundo que não mereço". tudo isso é claro, antes do engraçadíssimo comercial de shampoo.

E das coisas que faço, a melhor bem que poderia ser escolhida e colocada num trono. A melhor ação que tomo em arte, suponho, não carece de corpo algum além do meu. É uma masturbação frequente. aperto as teclas e as palavras vão surgindo..  e todas as emoções conhecidas, desconhecidas, nomeadas ou não, cabem e se constroem entre meus dedos e a minha vontade... basta que eu persista, mesmo que os músculos me implorem para que eu desista.

Não sinto vontade de começar a construir o que devo construir no atelier, tolos de mente pequena diriam que isto é preguiça. Esta cidade, desde quando nela resolvi me aquietar, tem tido a incumbência de me revelar a primazia, os sub produtos de toda a merda da civilização ocidental. A primeira de todas, foi essa sensação de estar só, após ter julgado encontrar uma  fatídica possibilidade contrária. e de toda sensação de solidão, a que mais me castigou foi uma, proveniente de um fruto, um fruto que, pelas barbas de Netuno,  não para de crescer. Minha filha, Pirilampo, distante, crescendo dia após dia longe de mim. Que pesado fardo para um coração malignamente egoísta e pseudo pós cristão de pai,  como o meu! É como se eu tivesse orgulho de ter um sofrimento que caberia tranquilamente no meu crachá de servidor público:  PAI DISTANTE. Um cristão saberia bem como resolver a questão: Meu Deus sangrou numa cruz, eles dizem, de que vale esse teu sofrimentozinho de merda? eles indagam. Feche os olhos e cante como um débil mental, eles aconselhariam.

Sofrimento para descer as pesadas peças lá de cima, com os músculos do peito e as costelas dando o ar de sua dolorida graça.

Puta que pariu! Vão se foder, bando de filhos da puta!

Ah...  Se os xingamentos me livrassem de toda essa lama fedorenta, eu seria o dono da Phebo e distribuiria sabonetes de graça para todos os sofredores da cidade.

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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

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Prometer um voo é um modo intenso de dizer: "eu te amo".



Planejar uma travessia a uma ilha erma é um modo secreto de dizer: "quero ficar sozinho com você, é meu sonho de agora, meu desejo"...

Se o leve toque dos dedos te provoca um orgasmo, sem esse pudor cristalizado, isso quer dizer: "tenho a honra de te levar ao êxtase, de mostrar que teu corpo é apenas a prova que o universo em sua infinitude planejou algo do qual insisto em crer que faço parte".


Não me admito, porém,  fazer parte do seu passado; de suas lembranças doloridas ou contentes, e suas fábulas doces ou grotescas; nem da alegria chamuscada de suas conquistas mundanas, ou das decepções passageiras. Tenho o vício vagabundo de viver o agora, agora criatura! neste exato momento!

Relembrar e viver num passado, sem clarão de luna ou intensos solares, mata-me, arranca de mim a vida. Se quiser chegar-me de novo, eu te diria como diria ao pródigo: "Venha carregando o presente e eu lhe amarei como sempre".

Nunca duvide de minhas verdades. Verdades são indubitáveis, frutificam na fé e na conduta. Não me culpe nem me tente ao erro. O erro está em minha intimidade por ser MEU erro.

Errarei sempre com o prazer de quem erra a medida de um tempero, mas que ainda assim engole o alimento pois sabe que o que importa é a vida. Porém jamais, depois que tiver a permissão de me olhar fundo nos olhos, descarte a fé que eu tenho na vida e nas verdades que a sustentam em mim. Não confiar nisso é o mesmo que não me amar; é assim que entendo.

Hoje, nestes últimos dias de novembro, dias de apogeu lunar, mostra-se a mim o mundo...  novamente amplo demais, sem um tranquilo porto, revestido de vícios e argumentos mundanos. E minhas ilhas distantes, algumas já mortas, em mortes que eu vi, são agora um fantasma noturno de um possível náufrago.

Nem carecia de tanto para pintar a cara de minha tristeza, que agora ostento como a mensagem orgulhosa de um fracasso. Sempre sustento que a tristeza é quando a alma já não suporta estar em um corpo.

E a alma se perde, como a alma de um violino velho jogado ao canto de uma casa antiga...



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terça-feira, 27 de novembro de 2012

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É como se a mera suspeita se tornasse uma hidra.

Um pequeno tombo pode ser o tombo do primeiro dominó da filá.

O que está sentindo? Ele indagará? Dói quando respiro, responderei.


Sim é uma pequena dose de aventura atravessar a cidade comigo na pequena 125. Ela não tem o costume de agarrar minha cintura; mas faz isso vez ou outra como se me presenteasse. Se eu tivesse um ultraleve, voaríamos até o litoral

Dói quando respiro. Um anti inflamatório vai ajudar.
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domingo, 25 de novembro de 2012

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Ontem lagrimei como uma adolescente diante da falta e das fotos

Ontem foi um dia no qual senti essa sensação de imortalidade que  mesmo o mais moribundo rio  sabe. Senti  isso de ter certeza que nunca serei mais longa que o tempo


O tempo sempre vence, diriam os sábios da antiga e rica Antiópia
O tempo sempre vence, diriam os grandes faraós do Egito

Mas todos esses caras  tinham as respostas, as certezas. Eu não as tenho, nem as quero. Espero ansiosa pelo que já se foi

Na superfície nada resta de rastro  do grande navio

Mas em mim...  sou puramente rastro
Sou pegada
E o tempo mesmo sendo vento, vez em quando chuva e tremores
Nunca me apaga da estrada

Porque a estrada sabe

A estrada guarda, a estrada leva

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domingo, 18 de novembro de 2012

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VERÍDICA OU QUASE

sonhei que a menina de Velasques saia do famoso quadro e me balançava ao leito. eu me acordava a esfregar os olhos e a não acreditar na cena. 





quietinha, sem o olhar amargo que mantinha na pintura ela sentou-se à beira da cama e me indicou um lugar onde havia silencio. além da janela.





sim, resmunguei, agora lembro, é a janela de um tempo outro, no qual eu estava em corpo de criança. através da janela eu me vi a estar sentado na calçada, mantinha o queixo apoiado nas mãos, igual a quem está perdido em pensamentos. 


todos a mim estavam em silêncio, como num filme em lenta câmera e sem som. eu a assistir o mundo como quem está numa sala escura e tranquila.



senti-me feliz ao me ver em criança. eu encontrava um brinquedo perdido. meu playmobyl de capacete vermelho...


corra mais menino! eu queria dizer a mim mesmo. não fique assim tão quieto.





mas eu em criança observava os formatos escondidos das coisas. admirava-os. e pensava na possibilidade de dizê-los.


a única possibilidade era o silêncio.


meu pai costumava me presentear com elefantes de açucar. meus irmãos me caçoavam por meu cabelo. as outras crianças se assustavam com meu modo de dizer as coisas. era a década de setenta. um silêncio tomava conta de todos. mas todos não se aquietavam por não gostarem de permanecer calados.


se me surgisse naqueles dias, me surgiria como o som doce proveniente do triangulo estridente do vendedor de cavaco chinês. ou quem sabe me fosse a sensação que sempre tive ao observar o imenso castanheiro ao lado da escola de alfabetização.


sempre esteve ao meu lado. houve um tempo em que foi uma bola de borracha que caiu em meu quintal. noutro instante foi a bonequinha de miçangas que comprei para presentear Heloise. surgiu-ME um dia como as meigas sapatilhas de Li, que me beijava a se esconder do temporal.


o semblante é mutante. não há semblante. o amor é livre como o semblante no qual ele habita. aprendi isso quando os olhos de D se fecharam e nunca mais se abriram. aprendi que aquilo que ela foi passou a habitar muito do que eu era e sou.


o menino calado do sonho estava em silêncio...




a menina de Velasques me foi uma loucura.nela sempre vi uma vontade de ser criança de verdade. e no meu sonho lembrei que naquela idade encontrava nos olhos desta menina pictórica uma luz que nunca entendi e ainda nem sei como explicar...





olho pela janela e me distraio a me observar. sou muito pequeno, falo a rir de mim mesmo. e meu cabelo é mesmo engraçado! a menina de Velasques então passa a rir comigo. toco as mãos dela. é a minha Taubelleine de quando eu tinha cinco anos de idade...


silencio. meu caro menino, sem presente de natal, sentado na calçada. o brinquedo era o mundo com suas pedras em formato de coisas, eram as latas de leite que se transformavam em carrinhos cheios de areia. era o meu pai feliz da vida por encher a pobre árvore do jardim de lâmpadas muito quentes e coloridas...


silêncio...


acordei do sonho apenas com as sensações de entendê-lo.



as várias facetas do meu anjo, que sei não ser anjo, sempre acabam por me deixar no peito uma tranquila sensação de alegria.






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VERÍDICA OU QUASE


então veio mesmo e ao me ver se jogou em abraços sobre mim. senti o mesmo cheiro de roupa limpa. senti seus mamilos, apertei suas coxas, rápido excitei-me. dessa vez não havia livros em minhas mãos, então pude lhe tocar os cabelos a nuca e o colo. respirou fundo e se apertou ainda mais ao que eu lhe dava, e nessa posição que era uma luta ao que nos separava nos mantivemos por muitos segundos.



riu-se do fato de eu estar a usar tênis. eu, na OUTRA época só usava sandálias, reclamou-se da ausência dos cabelos cacheados que sempre me marcaram, eu os havia cortado. deteve-se a se admirar do que eu disse, que ela era contagiante e que vinha de mim, uma alegria talvez, ou uma sensação de que tudo estava bem quando ela aparecia. 






o espetáculo sem música se parecia comigo, sim, parecia com o que criei para que os outros, através de mim, rissem de si mesmos. ela me olhava através da meialuz e me puxava para que eu ficasse por ali ao seu lado, sentindo seu corpo. usava um nariz de palhaço, de plástico, vermelho, e um chapéu côco. usava meias listradas que subiam até os joelhos. estava linda, radiante.

do resto não sei. só sei que admirei seu colo alvo muito mais do que deveria e lhe pude sentir muito mais completa, como se a feminilidade a estivesse preenchendo dia a dia ainda mais...

deixei-me a observá-la sem pudor. rindo de mim disse-me depois que percebia meus olhos brilhando por conta das sobras de luz dos refletores, deu um risinho engraçado depois disso. disse-me que nunca esqueceu “daquele tudo”... mesmo muito distante carregava aquilo estampado na pele. "ainda nos falta a viagem de mochila por aí", sussurrou-me. "não pense que vai sumir sem fazer isso".

já nem era necessário dizer nada sobre sentimento algum...


era óbvio. amo a existência dessa criatura refrescante...


surgiu-me como uma última página de uma longa estória...

salvou-me naquela noite com sua liberdade infantil e atrevida. nada mais pude ver além dela. nada mais pude ouvir além do que me dizia...


na escada lateral, a famosa escada da dialética cheia de uma escuridão travessa, ela  me abraçou...

abraço louco de filha, irmã, amante, estranha da fila do ônibus...

mistura de paixão fraternal e adâmica com incesto permitido. sentimentos de gente doida.

nada precisava ser dito. voar seria  mínimo. quatro horas nas quais me senti novamente livre, como quem vive deve se sentir...


quatro horas.

refrescante... ao meu lado, diante do espetáculo da cidade das coisas mal feitas.





uma das existências mais belas, meigas e pacificadoras que experimentei.


capaz de me fazer descumprir os ritos que sempre cumpro...

capaz de me fazer cortar caminhos que nunca corto...

capaz de me limpar a alma


capaz de me limpar a alma até mesmo de mim.
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VERÍDICA OU QUASE


(relembrando Minzy)




"hoje me diverti com a voz de uma menina que recitara uma poesia infantil...









pensei nas inúmeras carteiras de cigarro, drogas e garrafas de absinto que a civilização ocidental consumiu para produzir estas mais bizarras noites...


ora, ora. a pequena figura de pele branca nem sabia que estava em meio aos lobos...




pensei: deve estar com o coração também cheio de mentiras. deve estar a ponto de se desmanchar...



na voz nenhuma revolta, apenas um nervosismo. nunca fui filho durante uma primavera. nem sei o que há com as primaveras e os filhos, até isso de fingir que sei me impuseram, mas aquela noite me deu esses sinais...


...



estranho como apertou os olhos e ficou a cantarolar a canção ridícula que inventei. o rosto se tornava vermelho. eu não conseguia deixar de notar a rebeldia límpida de suas roupas. sempre imagino sujos os revolucionários. usava uma jardineira desmedida... transmitia uma simplicidade que jamais se tornaria algo nem perto da pobreza.



estou num ambiente seguro. muitos jovens posso vislumbrar daqui. estão alegres saracoteiam, contam vantagens, citam os mais absurdos filósofos da face da terra. divirto-me mas os respeito, não ultrapasso o limite. não devo importuná-los... apenas me disfarçar no mais sutil observador, capaz de se tornar tão quieto a ponto de nele pousarem os pássaros.



quem sabe os dias passem de modo relampejante...



quem sabe eu nem perceba diferença no tamanho de pirilampo.



quem sabe eu não encontre felicidade aqui... quem sabe eu possa até gargalhar, sim, até gargalhar como quem está de fato curado, me tornando assim um palhaço e não mais um gárgula.



se isso ocorrer o tempo não será meu algoz e logo estarei livre daquilo que o mundo me ornou.



e que terrível ornamento! ando com uma etiqueta laranja aos olhos de todos. a quem penso que engano. quem de perto me olhar poderá logo me ver em frangalhos. necessário então uma proteção extrema, um escafandro que porventura deverei achar no lixo.

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depois dessa abastada festa resolvo não mais me subverter
melhor quem sabe me aquietar em casa e supor a existência de um café quente.




posso supor também a existência ,que agora só imagino, da moça de outrora...

a mesma que em temporais dos mais absurdos me segurou a testa...



eu em devaneio e cirroses, em dores de cabeça e efeitos colaterais dos medicamentos...



ela mesmo assim em sorrisos. a me ministrar comprimidos,




sempre os medicamentos, como se viver aqui na babilônia só deles dependesse.




mas devo antes de mais nada, antes do descanso, me sacrificar entre os cybers cafés e tentar digitar algumas palavras, como num jogo de mostra esconde, mas é tanta a demora, a velocidade é tão baixa, que a música que escolhi como tema para minha viagem nunca se completa e por causa dos urros dos meninos que jogam sua divertidas guerras sem sangue, devo me concentrar de modo desgastante. suspeito: são a nova geração do mundo, fazem guerra sem sangue, beijos sem paixão, despedidas sem melancolia. são criaturas para as quais os antepassados prepararam este reino.



outra coisa que me devo propor é não mais iniciar com queixas as minhas escrivinhações. é bom pensar que apesar das enzimas, devo me forçar um pouco ainda a encontrar a beleza nesses momentos iniciais.




devo pensar na beleza de Minzy a trafegar pelos corredores pululados da mais ignorante sapiência... isso sim me poderia fazer até sorrir.




devo lembrar do início de tarde em que sobre o gramado construímos algo parecido ao enredo de um filme de baixo orçamento? patético demais.




minhas pequenas amnésias momentâneas.... uma multidão que sempre fomos de criaturas neste mundo louco.



minhas doces amnésias no qual me esqueço que não devo me dar ao luxo de supor esquecer. como se isso eu pudesse. como se isso não fosse o que sou.



sim... agora a música baixou completamente. o novo mundo aos poucos vai surgindo. creio que ninguém poderia entender o que suspeito existir entre a tarde e a noite de um animal que habita na soleira da porta...



e quem poderia ser o tal animal? quem?




talvez seja cedo demais para entrar em metáforas que nem eu mesmo entendo, talvez eu deva dizer que apenas sinto uma puta ansiedade. como não dar vexame aqui... vejam só... mal comecei a girar no globo da morte e já beijo a lona.



"mas será para um bem maior"...



essa voz de paciência eu costumava ouvir além dos telefonemas. uma voz que teria o poder de me salvar. veja só, minha Penélope, estou aqui ao mastro, atado a me amedrontar sob a suspeita dos cantos das sereias. temo o mar por não saber nadar. temo o salto por não ter um ìcaro inverso dentro do peito. temo o cantar destas malditas denaides por não ter o peito devidamente forte para suportá-las.




mas devo ainda tentar forçar minha mente para um momento novo. o momento em que resolvi amar a possibilidade da existência de uma possibilidade.



o momento em que resolvi amar Minzy.



a potência feminina que veio do nada, sem nada oferecer, apenas para o meu sutil deleite de não poder querer desejá-la. pois desejá-la seria perdê-la assim como costumo perder tudo o que acomodo neste mesmo caminho.




e sobre isso nem sei que falo. diante disso tudo sinto-me mal imunizado qual um velho infectado. recebo algumas baforadas do vento. para Minzy construí um mundo diverso... haverá quem sabe um pé que me empurre pelo vale...



que bela imagem surrealista do velho da cadeira da queda e da menina que jamais verte lágrima alguma de peso ou de dor na consciência pois nem existe consciência...



nem uma mísera consciência... o que existe é a comédia desta bufonice toda!




a paixão do velho só é uma paixão pelo personagem nascido de sua insônia.



mas não durma, não durma pois vai acordar.



e como todo mundo diverso me enlevo ao poder de inventar moinhos e ventos...



imagino-me novamente...








no mais refugiado covil está um outro que para não mais se deter ante a imagem da mulher os cabelos e a janela resolve se deitar aos pés de Minzy, resolve torná-la neste entretempo o seu refúgio...


como a esperança vã dos marujos a cem anos distantes da terra". 

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sábado, 17 de novembro de 2012

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VERÍDICA OU QUASE




ontem eu não conseguiria dormir, mesmo com muito sono eu continuaria aceso.


Tres  da madrugada e eu continuava a zanzar pelos corredores. Não era a insônia dos preocupados, era a de quem não quer fechar os olhos. Fiquei procurando coisas de comer. Como nada encontrei resolvi assistir a um filme que tratava de orquídeas e insetos.




No filme havia um escritor que sofria. As caricaturas de escritores sempre são assim...
sofredores nem um pouco peripatéticos.
Escritores são sofredores sentados.

Isso me parece risível. Mas se é caricatura...


Olhei ao filme sem me importar com o enredo, me chamava a atenção as imagens das orquídeas a fazer amor com insetos. Dizia-se que cada inseto procurava em sua curta vida encontrar a sua orquídea, aquela que a ele fora designada para que polinizasse a terra. Bonito, isso em frase ficou em mim como uma boa melodia.



Mas eu não queria ficar quieto diante de uma máquina ruidosa, naquela época eu ainda insistia no romantismo de uma Olivetti, por isso, por estar cansado daquele bate bate, me levantei a zanzar novamente. Foi quando encontrei a velha senhora que me criou a me observar com muita preocupação; ela estava ali, viva ainda, com as mãos nas cadeiras. Eu a olhei e sorri como quem disfarça uma travessura. Justifiquei que estava tudo bem, que eu só tivera um dia agitado e nada mais. Contei-lhe que ouvi frases que ficaram registradas em mim mas que eu não sabia como explicá-las como algo marcante, pareciam simples mas me atingiam. Algumas eram boas, outras eram de me amargar o juízo. Mas eu não estava acordado por culpa das palavras do alheio, eu estava acordado por meu querer mesmo.

Quer um leite? Ela indagou. Eu aceitei. Era de madrugada e aquela mulher de oitenta e cinco ainda me acalantava como se eu fosse o bebê de outrora. Senti muito carinho por ela. Foi nisso que segui a recomendação de Belleine e lhe fiz um afago. Em seguida lhe pedi um abraço. Ela veio lentamente, perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim e me deixou abraçado a ela. Ficamos assim um tempo... é... ela tem o mesmo cheiro que ficou na minha saudade, roupas muito bem cuidadas, lavadas com uriza. Quando fui embora daquela casa e não mais voltei?




Eu me lembro de quando eu era criança e a senhora me deitava sobre suas pernas. Eu sei que se lembra. Sim, lembro também que foi um tempo muito difícil. Alimentar onze pessoas numa terra nova e estranha. Não foi fácil. É, com certeza não foi fácil.



Permanecemos muito tempo em silêncio. os galos faziam seu útil papel inútil.



Quer que eu faça um chá? Ontem eu fiquei preocupada com seu estado. Isso não deve lhe preocupar, estou muito bem agora...as dores passaram depois dos seus chás, é sério! Não precisa de chá não, vá dormir, vá.

É preciso que se cuide.

Eu sei. Vai ficar tudo bem, a dor física passa logo, é sempre assim.





Um peso magistral que me empurra para o centro da terra...

eu gostaria que o tempo voltasse...


leveza.

Kundera disse que os estados desse gênero podem revelar uma leveza insustentável. Eu estava ali abraçado à velha senhora, sentindo seu cheiro, sentindo vontade de chorar, sentindo vontade de ser criança novamente e ser feliz o dia inteiro, e ter medo dos escuros do quintal, e ficar ansioso nos finais de tarde a esperar o retorno de meu pai que a mim sempre trazia elefantes de açúcar derretidos levemente pelo calor de suas mãos vigorosas de pai.


O que desejar?

Dormir no colo da velha senhora e esperar, aos fingimentos de sono pesado, ser levado para a pequena rede que se esticava num dos cantos da palafita...

Sim... depois perder o sono e descobrir que fingir dormir é pior que estar acordado.






Coisas estão despertando em mim. A relembrança marca seu início.


Posso dizer agora que sei que a qualquer segundo devo reencontrar a perdida alma de meu bennário.

E será nesse mesmo instante que me tornarei novamente o que fui.
Aquilo que agora já não sou.

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