segunda-feira, 5 de novembro de 2012

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VERÍDICA OU QUASE

Tão alto...

Se uma porca cair lá de cima pode fazer um estrago bem grande. E quem seria o Zé Mané que levaria uma porca lá pra cima, Verdade, quem seria o Zé Mané. Teria que ser um Zé Mané bem forte. É mesmo, a escada é longa. Quantos metros de altura tem essa caixa. Quase uns vinte. Eu estava falando de uma porca de parafuso. Mas peraí, a porca não foi levada, ela estava lá e o Zé tropeçou nela. Vinte metros. Ah, se for porca de parafuso não tem graça e nem precisava ter falado. É, como aqui é um teatro o mérito maior seria uma porca mesmo, parida de preferência, com tetas inchadas de leite e tudo. Que horror! Uma porca profana. Porca Profana? Não seria uma vaca profana? Verdade, mas eu disse porca então é porca. Se uma porca caísse lá de cima faria um estrago... E porque estamos falando de porcas? É que um dia desses um alicate despencou lá de cima e por pouco não acertou a bonequinha ali. Que não tinha nada que estar no palco sabendo que tinha gente na grelha. Ninguém tinha me avisado. Bastava um pouco de sensibilidade pra saber que tinha gente lá. É tão alto que se uma porca de parafuso cair...

Vozes dizendo coisas sem sentido.
Vozes dentro de seus universos.

Escuridão. No começo tu ficas a intuir que nunca estás em tua casa. É como amar estar num cinema sem que nele esteja rolando nenhum filme, diante da tela branca, sem pipoca e sem os peitinhos de uma namoradinha casta. Com o passar dos dias o teatro vai se transformando em tua casa. Tua casa, o vácuo sideral torna-se tua casa, torna-se físico o teu subconsciente, é como se desse pra apalpar o subconsciente. Sem espetáculo o teatro é um sono sem sonho, mas a gente sabe, um bom sono mesmo sem sonho é bom. Um astronauta mil anos sem terra, é assim o navegante solitário do teatro. Um feto que brota no espaço e nem espernega nem chora, nem carece, no espaço não há espaço para esse medo de ficar sozinho no vazio. 

Fui aprendendo que o vazio é bom. Do mesmo modo que eu havia aprendido  essa mesma coisa depois que nasci, o vazio assusta no começo mas é bom; todos sabem que um feto pode sentir tudo, menos que está solto no vazio, ele se assusta, pois passa apertado pelas paredes da barriga da mãe por nove meses e depois é jogado nesse oco, onde seus braços ficam livres, dá medo. O teatro mesmo sem espetáculo, o palco deserto, as cadeiras isentas de plateia, também amedronta no início. Mas, que melhor lugar poderia existir para a mente sem limites, para a alma sem limites, para o tempo limitado entre o abrir e fechar do pano?

Ontem vi uma mulher nua se aquecendo...

Fazendo com a boca uns ruídos estranhos. Lá fora todo o resto do planeta. Entre uma coxia e outra, um universo imprevisível. Visível se assim for o desejo de quem domina a força e a direção da luz, ardente se ardente for o corpo de quem domina as forças da estática e do movimento. Ruidoso, se assim for a forma que encontrou o dominador dos sons. Pequeno ou amplo se assim deseja o dominador das coisas que podem ser tocadas, que delimitam o espaço onde corre o tempo do que se diz.

Eu?

Não. Pelo menos por agora não. Quando penso em dançar, meu amigo, não me faça dançar diante de ninguém! Mil toneladas de ferro me aprisionam à terra, uma armadura de aço envolve meu corpo.

Dançar? Ainda não meu amigo. Ainda não.

Ela estava nua ali, a atriz da alma imoral, sobre o assoalho escurecido por nogueira. Ainda cheguei a pensar no cheiro de sua vagina. Eu tinha a impressão de que atrizes tinham vaginas inodoras e bocas sem hálito. Eu ainda via um corpo do jeito que me ensinaram o que é um corpo. Eu ainda não via um corpo como mera massa sem forma.

E se um corpo caísse lá de cima?

Se um corpo caísse lá de cima? Ah, que grande desafio cenotécnico. Existe essa possibilidade de fazer que o corpo seja representado por uma outra coisa, uma porca prenha, uma porca sem parafuso, uma pena por exemplo. Uma grande pena de avestruz se precipitando lá do alto, transformada em centro do universo pela luz de um elipso, demorando cerca de vinte segundos para alcançar o chão, com um réquiem majestoso compondo a trilha... ora, vinte segundos no tempo teatral pode do lado de fora ser um tempo tão longo; pode até ser a eternidade. 

Sim, seria um grande desafio cenotécnico. Cair no teatro pode também ser belo se a queda for bem representada.

Teve momentos em que fiquei sozinho dentro da caixa escura.

Depois que resolvi me converter ao fosso, tornou-se comum que no palco eu me encontrasse por muito tempo. Porém, sozinho sozinho... eu fiquei poucas vezes. Mas eu não conseguia me manter concentrado quando ficava sozinho. Sei que lá eu poderia fazer qualquer coisa, até mesmo ficar nu, como a atriz da alma imoral. Mas era impossível de me concentrar. Os pecados dos mundanos sempre me chegavam com suas vozes insuportáveis. Uma frenagem de um ônibus, buzinas de homens apressados, o vozerio dos perdidos, minhas paixões por quem não merecia ser alvo de paixões... e eu me pegava pensando no Bodelé, meu cachorro que rápido mudava de comportamento; ia em segundos do seu latido antiladrão à cópula instintiva com a perna do ladrão.

Eu tinha a impressão que jamais conseguiria vencer a caixa italiana, pois ela precisava de mim do modo como eu não me entendia nem conhecia. Fiquei com essa impressão por um longo tempo, até que me surgiu a oportunidade de fazer o cenário do Mágico de Oz. Ora ora ora... a possibilidade de ser criador, o dominador do espaço. Preencher o escuro vazio cósmico do palco com formas encontradas por mim? Fantastisch!

Imagine um garimpeiro. Imagine o ouro bruto em pepitas que ele retira da terra. Imagine uma gargantilha feita com esse ouro envolvendo o pescoço da mulher que ele escolheu para fazer parte do seu sempre.
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