sábado, 3 de novembro de 2012

301

.
.
.
.
.
VERÍDICA OU QUASE




lembrar do momento mágico em que empurrei aquela porta de alumínio, com toda a permissividade de uma poesia necessária, é como lembrar de meu próprio nascimento em sentido inverso.

Minha vida estava seguindo uma direção contrária, levando-me ao começo, quando eu nem tinha nome, quando talvez eu já pertencesse sem saber àquele lugar escuro em estado de feto.

Eu sempre soube que conseguiria.  Retornar ao lugar de onde viemos. Voltar ao pó, ao Éden antigo, ao útero protetor da mãe. Essa sensação pueril, de que aquele lugar era pra onde o tempo me conduziu por toda minha vida, forçava-me a um riso que não se desfazia.

havia  uma pequena escada, que nos tempos decorrentes tornou-se o lugar onde costumávamos conversar. A escada da dialética, foi assim que a batizamos. Sentados nos degraus dela, ficávamos a discutir dos mais sérios aos mais bizarros assuntos. Ela era uma espécie de limbo divertido onde gargalhávamos, chorávamos, trocávamos injúrias e juras de amor num estágio último antes de entrar no palco.

Vencendo a escada da dialética, com seus degraus revestidos de mármore barato, bastava que abríssemos uma cortina cortaluzes, empurrássemos uma porta de vidro e lá estava ela,  a escuridão da caixa cênica. 

Era como se desde um único movimento do corpo, depois de alguns míseros passos, a realidade mundana passasse a nos ser apenas uma matéria prima, incompleta em formas lá fora, infinitamente mutante  e excessivamente inteira do lado de dentro.

Fiquei completamente tomado  por uma felicidade pueril. Falando como um religioso falaria, eu estava cheio de graça, sem a sarça e seu fogo, porém, ainda assim, diante de um deus que me transformava.

Um rapaz ficou ao meu lado, fingindo ser ranzinza. Usava óculos afeminados e um chapéu panamá, estava com as mãos sujas de graxa e parecia muito irritado. Tinha uma voz fina, estridente, apesar de ter em tamanho o porte largo e avantajado de um homem que por convenção teria que falar grave. Ele gesticulava, pedia-me cuidado, com sua voz de velha. Era antipático e ao mesmo tempo divertido. Parecia ter também nascido naquele lugar. era um irmão que não pude ter conhecido nessas curvas.

.
-Puxa vida... que coisa mais fantástica! – eu disse mais como quem fala sozinho, maravilhado com as dimensões do urdimento. Sei que o rapaz resmungou algo, não me importava, não lembro mais o que ele disse e talvez nem o quis ouvir. Não consigo lembrar nada além daquela escuridão viva e cósmica da caixa italiana, que me envolveu e me acolheu, como um pai que reencontra o filho pródigo.

Que bons momentos.


.
.
.
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário