segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

ANO PAR (nota pessoal)

Tenho assistido ao "menina de ouro" somente até a metade. Somente até o ponto em que lhe é desferido um golpe sujo. Do resto não faço questão. Prefiro degustar do riso de Hilary(?), que é um sorriso de dentes grandes sob olhos acesos e vivos.

O resto do filme não me importa mais...

Tenho admirado o evangelho somente até o monte das oliveiras. O resto me parece um exagero, uma chantagem demasiadamente humana.

Não é que eu não me importe com o sofrimento alheio e, certamente eu não me importo mais. Na maioria das vezes, oportunamente sofremos para uma plateia pouco atenta. A solução, quase sempre, é aumentar a intensidade sonora dos gemidos. É... melhor confessar logo e assumir que só me atinge o sofrimento de quem amo. Por vezes quem amo nem sabe que sofre, ou se sabe, disfarça, anuvia. Por isso a utilidade desse sofrimento que desempenhamos de um modo medíocre, parece só caber a nós mesmos. Não é meu papel incentivar ninguém a assumir suas dores. Quem sabe até eu mesmo seja um experiente disfarçante das minhas. Ou quem sabe as dores dos outros, ocultas ou aparentes, sejam as dores decerto em mim.

Mas não estou aqui para falar de sofrimentos. se fosse para isso, de que importaria dizer que só assisto ao fantástico filme de Klint Eastwood pela metade?

Nem estou aqui para expor minha suspeita de que jamais existiu um homem exangue que ressuscitou de uma cruz.  Nem sei porque estou aqui, de que me importa estar certo que ele esteve ali?

Talvez eu devesse falar apenas do belo sorriso de Hilary Swank. Mas isso também seria algo pela metade.

Anos pares nunca me são anos bons. É... é uma superstição pessoal, já que nasci em 1970.

Pois bem... 

Neste ano, vou desmontar esta minha lenda, transformá-la em piada. Um último golpe ao início do calvário. Farei em minha vida o que faço ao evangelho, lhe cortarei pela metade. Basta-me o  que me é bom. E o que me é bom eu mesmo julgo.

Que seja este enfim, um bom ano. Um bom ano par, mesmo que por inteiro.








domingo, 5 de janeiro de 2014

REVISITA A 2010

Passamos quase o dia inteiro pintando o ícone que por apenas alguns minutos ficaria ao centro do palco, seis minutos pra ser mais preciso. O ícone, pequena bandeira de algodão, se manteria ali, subiria em seguida, revelaria algo que tentaria não revelar o que não deveria ser revelado. De pois a tentativa de não revelação desapareceria. O que surgiria não seria a verdade, seria um fato.Fiquei pensando que tudo isso é muito inútil. Inútil como mágica, que sabemos ser truque e ainda assim admiramos. Envergonha-me um pouco essas traquitanas.

Oito horas de trabalho, tratando com esmero os detalhes, tudo isso por seis minutos. O mais importante estaria ali por trás, cantando palavras nem sempre com alguma lógica.

Fazemos muitas coisas assim, muito tempo de dedicação por pouco tempo de manifestação. Essa relatividade temporal é mesmo o que seu nome diz. Posso me indagar e preparar um index de coisas que me tomam dedicação por muito tempo, coisas que sei na veiculação não viverão mais que um piscar de olhos. Mas vem de meus antepassados essa paciência de mutá. Ficar a noite inteira quieto esperando a caça passear sob o umarizal. Quantos nacos de tempo dura um apertar de gatilho?

Coisas que possuem vida de libélula.
Porém...

coisas com apetite de libélula.
...
Uma de nossas conversas nos levou a indagar a sei lá quem:

A quem eu envergonho com minhas atitudes?

Na mente deles como ficarei depois de minha passagem por aqui? Se essa pergunta tira teu sono é sinal que há um zahirishta dos grandes dentro do teu juízo.

Serei considerado um bom sujeito ou o pior que por aqui manteve os pés? Quando eu sair o que resmungarão? “ai vai um bom homem”, ou “como vai tão tarde esse pequeno Raskolnikov” ?

Temo meu senso de justiça. Temo-o injusto. Muitas vezes lembro de sermões que ouvi de meu pai e me indago se sou mesmo o que prometi diante dele ser a mim mesmo. Justiça é o que mais pregava o tal velho sem palavra alguma, apenas com o trabalho de mudar o lenho em coisa útil. “Equilíbrio não é ter segurança em andar de pontacabeça ou com um pé só. Ser equilibrado é ser justo”.

Nem equilibrado e nem justo. Não sei se uso as mesmas medidas pra uma coisa ou outra.

Porra pai. Foi mal. Acho que te envergonho um pouco.
...
Para um quebracabeça espalhado pela casa é a casa que está em desordem. O que a casa pensa a respeito deste quebracabeça?
...
Obrigado. Sim, é pra você. Obrigado. Olhando de um jeito diazomático percebi seu traço, que eu disse melhor que o meu. Foram mais de sete horas de trabalho. No começo dos rabiscos dos labirintos cheguei a achar que aquilo não seria possível. Em certo instante até pedi coragem, alegando que a coragem é um dos principais atributos da arte. Risível. Você nesses instante demonstrava uma técnica que tornaria tudo mais fácil.
Obrigado.

...

tenho orgulho de trabalhar no teatro ao lado de algumas pessoas que amam o teatro. Pessoas que sabem ali ser um local a ser honrado, por reconhecerem que não há uma tradição qualquer em jogo, que essa transmissão vem de nossos antepassados tanto quanto uma religião. E se não reconhecem isso por conta do tamanho de seu repertório cognitivo, o fazem por bom caráter e boa formação moral.

Não me envergonho de no mesmo lugar trafegar ao meu lado indivíduos dominados por força inversa. Apenas apiedo-me dessa impossibilidade que possuem, como os que não são agraciados pela fortuna de um milagre muito simples tal como abrir os olhos e enxergar o dia. A eles o que me vem como sensação é a mesma que me toma diante de mendigos que vagam pela cidade a carregar trapos e lixos segurando-os como se fossem tesouros metafisicos.
...
O subjuntivo é uma casa onde tudo é possível.
...
“-quem é amanhã aqui?
-amanhã?
-sim.
-amanhã é ninguém”.

Fantástico esse diálogo de corredores e coxias.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A ressurreição

2

Então o menino da casa sob o castanheiro voltou trazendo trinta crianças da vila. Entre elas havia um homem adulto de pele morena que nos parecia mais ansioso que os pequenos.

Era tudo muito mais tranquilo que nas profecias. Longe, a cantiga das cigarras; o vozerio soturno e as risadas dos jovens. Ouvi os sinos do campanário velho e as trombetas do velho Adamastor, que gostava de anunciar a todos que o sol havia finalmente se posto.

“E então, preparado pra viver seus últimos anos?”

“Meus últimos anos?”

“Pra um homem que encontrei quase morto, viver mais alguns anos deve ser muito perto de um milagre”.

Olhei pra ela bem no fundo dos olhos. Cerrou os dentes e sorriu somente com os lábios. Alguma coisa naquilo me levava aos tempos do velho circo. Eu podia até ouvir os risos da plateia. No ar de minhas nostalgias, sobrara o cheiro acre de vinhos derramados e espumantes azedos do Café Imaginário.  Mas nada era como aquele momento, presente e precioso. As lembranças eram tristes, distantes.

“Não sou sua pequena senhora das profecias ou dos seu sonhos”, ela disse.

O presente era um doce, um merecimento, um apaziguamento. 

Mas olhando bem, observando seu vestido branco ao vento e seus pés descalços sobre sabugos de trigo, ninguém poderia me convencer de que ela fosse algo diferente do que sonhei pra mim.

“Olhe pra esses pequeninos. Tem muita coisa minha neles. Não poderíamos ganhar olhos mais puros e atentos, nem corações mais ternos e sinceros”...

“Você é muito chato com toda essa poesia”...

“Eu sei...  falta pouco pra que eu nem precise falar que estou  a ponto de...”


“Cale a boca e assuma seu papel”.

Ouvimos o badalar de um sino muito próximo. No mesmo instante uma revoada de papagaios atravessou o céu. 

"Se você pudesse entender o que vejo, deixaria de falar tanta bobagem". Com essa resposta atravessada a noite caiu e pela primeira vez as cortinas se abriram diante de olhos infantis e incautos.

AOS OLHOS DE KLEINE FRAU. A RESSURREIÇÃO


“Acorde pequeno Serafin”. Eu sabia que lá fora o dia estava claro e em mim aquele sono incontrolável depois da noite em que deitei sobre a sua pele macia como seda, e sua carne quente. Da pouca luz que entrava, o que me dava o momento, eram os desenhos de folhas de acanto, pinceladas nas colchas finas que embrulhavam sua nudez. Pouca luz aqui dentro e uma cidade enlouquecida lá fora.

“Acorde”.Talvez não tenha nada lá fora além do sossego e, realizando meu velho sonho, depois de ter ao leito a que me trouxe à luz, não senti uma grande necessidade de abrir janela alguma. Mas era preciso. Fizemos algumas mudanças neste lugar.  Deixei, certo dia,nas mãos do menino apressado, aquele mesmo que outrora consertava o telhado da casa sob o castanheiro, um convite. “Um convite de quê, senhor?”.

Tão pequeno... nem se importava com o tamanho da força que tinha.

“Traga os outros pequenos que encontrar. Todos os que moram além do trigal...”

“Não  mora ninguém além do trigal”, ele respondeu querendo voltar ao trabalho cruel que executava. Eu lhe segurei a mão. Ele me voltou um olhar melancólico. “Tem sim”, eu lhe disse. A criança então deixou que os cacos de telha caíssem de suas mãos e deu um sorriso.

Descobri seu segredo... você esteve em mim o tempo todo. Uma pequena criança tentando consertar o mundo. Um pequeno anjo que tinha em mim a sua prisão. Minha alma. Alma de meu Bennario.

“Já faz muito tempo que o último ouriço quebrou o telhado”.Falou-me com um certo tédio.

“Sim...muito tempo... O castanheiro já não existe mais”. Quando falei isso, seus olhinhos se arregalaram. 

Alegria e dor? Seria possível as duas energias ali ao mesmo tempo, diante de mim, no brilho dos olhos daquele menino? “Um inverno muito longo e frio o ressecou, e isso mesmo já faz muito tempo”.

Então ele caminhou até a porta e a empurrou, deu uma última olhada no pedaço de papel, “eu irei”, disse num sorriso sutil, “pode ter certeza”. O dia lá fora estava claro em pura luz. Sobre a casa, o castanheiro sem vida ainda se erguia, ressecado e sem vida. Ele protegeu os olhos do sol e mediu aquele gigante, razão de sua vida, de sua dedicação. Deu uma última olhada a mim e correu na direção das montanhas. “Diga que a ama”,ele gritou ao longe, “diga isso!”...

“É você que está aí?”. Sim. Ela acordara. Sua nudez coberta pelas sombras.Mas dali eu podia quase ver e entender seu rosto.

Já faz tempo...

Minha alma que se espalhara. Colar de mil contas que um dia se rompeu. Todas as minhas pérolas estão aqui agora. As mil pérolas. Meu sossego. “Diga que a ama”, eu ouvi a voz do menino dentro de mim novamente. Sorri. “Por que sorri?...Ela me perguntou, estava perto da porta.


“Amo você”, eu disse, não eram palavras novas ou cheias de segredo. Ela saiu para o alpendre. A luz do dia clareou seu rosto e a sala.  Um dia lindo, o rosto como o dia. No horizonte o sol, na areia da praia um pequeno bote sem remos. “Quem seria o louco que imaginaria um lugar assim?” Ela fez essa pergunta sem me olhar; quando virou-me o rosto trouxe-me junto, o sorriso mais belo que sua vida me deu.