quinta-feira, 18 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 10

a menina da montanha

Li, a menina de cabelos dourados e traços  orientais, ao redor do circo, lembrava-me o modo como eu era, quando criança.  O olhar da infância, ao que sempre me pareceu, é um olhar de busca, ou um tipo peculiar de olhar,   e quase o mesmo que sempre escapa de um fugitivo amedrontado, como que sempre em busca daquele que o capturou. todos os homens quando se tornam reféns ou muito velhos, parecem-me mais inocentes do que veramente o são. Na infância, suponho que sejamos todos assim, inocentes e reféns de um lugar que nos quer moldar, adocicar nossos corpos e aprisionar em costumes as nossas mais primitivas bondades.

Como quem fugia, Li, ao redor do circo buscava uma passagem nas cercas, mas não encontrava. Antrofazia crescia em sonhos, e como os sonhos são peculiaridades de todos os seres humanos... Antrofazia para muitos, era um lugar de sonhos. Li desejava que seu olhar encontrasse as verdades por detrás das cortinas cerradas, por sob o palco, onde as aberturas e fendas secretas revelam e desvelam o poder dos ilusionistas.

Até que em certo dia eu a descobri escondida ainda do lado de fora, nos pés da montanha, a espreitar o banho dos elefantes. Não percebeu minha aproximação, e assim, vi de muito perto os seus ombros, seus antebraços, parte de sua nuca, que mostrava o desenho de um sol vermelho, e...  seus cabelos, finos, lisos, douradíssimos. Ela ria baixinho, como se estivesse a assistir algo que lhe transmitia um prazer delicado, que mesmo na sua pretensa solidão carecia de ser demonstrado ao mundo, por risos contentes, como os de alguém que, num momento de sorte, consegue enxergar as mãos de algum deus a manipular o nascimento das estrelas, ou mesmo as mãos humanas escondidas do titereiro, que empresta vida aos seus títeres.

Vi também de muito perto as suas sapatilhas, deixadas ao lado de uma rocha. Delicadamente bordadas com o mesmo magnífico sol vermelho de sua nuca, sendo que a da direita ainda estava com seu bordado por acabar, como se a tarefa da bordadeira não se  pudesse ter chegado ao final. Senti uma energia materna naqueles bordados, e no cuidado sutil com as cores das linhas. As sapatilhas de pano ali, deixadas a esperar a liberdade ligeira da menina que olhava o banho dos elefantes, que ria baixinho...

Um grande amor por ela me surgiu naquele exato instante, e petrificou-me.

Nem preciso dizer o tamanho do susto que tomou ao me ver ali a observá-la, a destruir seus segredos...

Não pude gritar-lhe qualquer coisa  quando fugiu a correr descalça, subindo por entre as pedras. Fiquei a pensar que no alto daquela montanha estaria o lugar perfeito para uma menina assim habitar.

Muitos dias se passaram, e as sapatilhas de pano da menina da montanha ficaram a esperar por ela, guardadas por mim, com cuidado, ao lado de meus bonecos,  debaixo de minha coleção de selos e sobre a caixa na qual eu guardava o meu puzzle incompleto de cinco mil peças.

desde aqueles dias até agora, quando já nem vivo, Li não sai de meus pensamentos. e  em todos os dias quando vejo o sol, não há como não sentir ainda a presença intocada daquele amor pela simples existência de alguém.

...

cansado de esperar, depois de algumas luas, resolvi subir a montanha num dia em que era um belo dia de outono na província de Shaanxi.








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