"Aceite esta última dança, disse-lhe com as mãos em busca e os olhos fechados"...
A velha senhora acordava muito cedo e sentada no leito rezava baixinho. Eu ouvia os sibilos de seus lábios, os esses chiados e as bilabiais explosivas, que se defrontavam com a vibração quase felina da glote. sua lingua materna era a língua com a qual ela me ralhava. Mas era em português que me amava. Nas dificuldades noturnas, quando em febre eu me achava, ela, envolvida num cheiro de alho e andiroba, aproximava-se de mim num germânico sutil, carinhoso, e me ninava nominando-me konstantin. e quando me chamava assim, por um outro nome, era por querer, num ardil tão singelo, driblar as minhas dores de corpo e a insônia, para que não me encontrassem mais, seu niedreger Zerafin, o menino que saltou de suas entranhas num passado que nunca fui capaz de ver a face, por ela, descrita.
Depois das rezas ela se levantava e ia ao poço. a lenta paciência somava-se ao cuidado quase metabólico que tinha com tal tarefa. ela respeitava o poço, não deixava que o balde lhe ferisse as paredes, e nem se enchesse tanto vindo na subida a derramar da água que escolheu. De pouco em pouco abastecia as vasilhas da cozinha e as tinas do local de banho. catava folhas de uriza e hortelã e as apertava para que liberassem na água bom cheiro. Fazia assim com todas as outras porções que seriam usadas ao longo do dia nas ablações*. ela por fim se banhava e depois do banho, seus cabelos molhados, algumas folhas grudadas á pele, sua brancura umedecida, e seu aspecto de extrema vitalidade preenchia a manhã.
e era assim que eu ao ouvir o som da colher nas paredes do bule, e o cheiro incendiante de café que exalava num triunfo a todos os outros odores matinais, era motivado a levantar dali, da cama que não mais me deveria ser útil e esperar que ela me servisse os pães amanteigados, trazidos pelo padeiro do Américo, arrumados na mesma cesta, sobre a mesma toalha de algodão florida, sobre a mesma mesa de cerejeira, na mesma sala de jantar onde o piso ainda mantinha o brilho da terebintina e a limpeza de um lar pequenoburguês dos idos de setenta.
"está melhor?"
ela me indagou. eu apenas sorri pra ela, e ela, cismo, entendeu o que meu sorriso queria dizer.
*visto que tudo o que no corpo se acumula em abrigo,passa do corpo a ser parte, extraída em banhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário