O filho da réstia
Eu tinha o domínio do sol, nas tardes sobre o assoalho limpo e encerado, enquanto no meu nada pra fazer eu esperava que aquela tranquilidade dos fins de dia nunca chegasse a um fim?
Certamente, eu dominava a réstia do sol, estampada no chão onde se espalhavam brinquedos inventados, ela me mostrava, em silêncio, todo o movimento do universo.
Quando a réstia ficava dourada eu sabia, os mangueirais poderiam me exibir um ouro nas folhas; eu não tinha tanta coisa a dizer sobre a beleza de tudo, muito menos sobre as possibilidades que só as janelas pareciam me mostrar, mas o sol me dizia isso tudo, com sua luz.
Muitas coisas eu poderia fazer nessas horas. Eu poderia esperar meu pai que me trazia vez ou outra um doce ou uma distração qualquer; eu poderia brincar na areia ao redor do velho castanheiro; eu poderia me sentar no banco, diante da escola de alfabetização, sozinho, conferindo os poucos carros que passavam sobre a avenida principal. Muitas coisas tão menos belas que o rosto do sol rastejando no chão...
Eu lembro de uma solidão pueril que eu sentia,como se esperasse algo que irrompesse de uma esquina distante: um disco voador; uma nave gigantesca a cair sobre a terra; um cometa vermelho; um milagre qualquer, maravilha maior que todas as maravilhas com as quais os meus olhos já estavam acostumados.
Eu sem saber já enxergava o meu futuro.
Sentadinho e quieto, eu enxergava o meu futuro...
Um rosto se revelaria nas réstia se eu me deixasse a entender seus planos. pequeno sol, era assim que eu a chamava, mudava de caminho quando mudavam as estações.
Todas as janelas através das quais eu fugi das inúmeras salas de minha vida também me revelavam o rosto de minha fortuna distante.
É como se toda janela implorasse pelas asas que não temos, não ousamos ter.
Não há nenhum novo segredo nessas palavras que digo. Sinto apenas que o tempo passa.
Na minha infância eu não entendia a réstia como um sinal do passar do tempo.
Eu via o seu rosto na réstia e nem sabia que era seu rosto que eu via. Ela não envelhecia nunca, ela revelava as nuvens que se aventuravam a passar por debaixo do sol. Já o seu rosto envelhece e passa, mesmo que o sorriso fique pra sempre quase o mesmo, com um quase mesmo brilho de luz solar.
Eu entendi que lhe amo quando ao seu lado eu me vi de novo naquele assoalho limpo, num final de tarde, brincando com o sinal de luz que o sol ao atravessar uma brecha no telhado, imprimia nas tábuas de ipê.
Eu entendi que lhe amo quando ao me deixar em minha tão característica solidão pueril de infância, que cresceu comigo, a sua essência,desde aqueles tempos já me era o colo que eu imaginava.
Hoje entendo o que escrevia no chão o sol.
Quando penso em você, eu entendo a linguagem do sol, do mesmo modo que eu entendia, nas tardes de meus poucos anos de vida.
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