segunda-feira, 29 de abril de 2013


O filho da réstia

Eu tinha o domínio do sol, nas tardes sobre o assoalho limpo e encerado, enquanto no meu nada pra fazer eu esperava que aquela tranquilidade dos fins de dia nunca chegasse a um fim?

Certamente, eu dominava a réstia do sol, estampada no chão onde se espalhavam brinquedos inventados, ela me mostrava, em silêncio, todo o movimento do universo.

Quando a réstia ficava dourada eu sabia, os mangueirais poderiam me exibir um ouro nas folhas; eu não tinha tanta coisa a dizer sobre a beleza de tudo, muito menos sobre as possibilidades que só as janelas pareciam me mostrar, mas o sol me dizia isso tudo, com sua luz.

Muitas coisas eu poderia fazer nessas horas. Eu poderia esperar meu pai que me trazia vez ou outra um doce ou uma distração qualquer; eu poderia brincar na areia ao redor do velho castanheiro; eu poderia me sentar no banco, diante da escola de alfabetização, sozinho, conferindo os poucos carros que passavam sobre a avenida principal. Muitas coisas tão menos belas que o rosto do sol rastejando no chão...

Eu lembro de uma solidão pueril que eu sentia,como se esperasse algo que irrompesse de uma esquina distante: um disco voador; uma nave gigantesca a cair sobre a terra; um cometa vermelho; um milagre qualquer, maravilha maior que todas as maravilhas com as quais os meus olhos já estavam acostumados. 

Eu sem saber já enxergava o meu futuro. 

Sentadinho e quieto, eu enxergava o meu futuro...

Um rosto se revelaria nas réstia se eu me deixasse a entender seus planos. pequeno sol, era assim que eu a chamava, mudava de caminho quando mudavam as estações.

Todas as janelas através das quais eu fugi das inúmeras salas de minha vida também me revelavam o rosto de minha fortuna distante. 

É como se toda janela implorasse pelas asas que não temos, não ousamos ter.

Não há nenhum novo segredo nessas palavras que digo. Sinto apenas que o tempo passa.

Na minha infância eu  não entendia a réstia como um sinal do passar do tempo.

Eu via o seu rosto na réstia e nem sabia que era seu rosto que eu via. Ela não envelhecia nunca, ela revelava as nuvens que se aventuravam a passar por debaixo do sol. Já o seu rosto envelhece e passa, mesmo que o sorriso fique pra sempre quase o mesmo, com um quase mesmo brilho de luz solar.

Eu entendi que lhe amo quando ao seu lado eu me vi de novo naquele assoalho limpo, num final de tarde, brincando com o sinal de luz que o sol ao atravessar uma brecha no telhado, imprimia nas tábuas de ipê.

Eu entendi que lhe amo quando ao me deixar em minha tão característica solidão pueril de infância, que cresceu comigo, a sua essência,desde aqueles tempos já me era o colo que eu imaginava.

Hoje entendo o que escrevia no chão o sol.

Quando penso em você, eu entendo a linguagem do sol, do mesmo modo que eu entendia, nas tardes de meus poucos anos de vida.

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domingo, 28 de abril de 2013

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Mas, longe destas criaturas, há os que tocam os ouvidos dos deuses com os seus cânticos.

São as raras criaturas da lira, que na alma da música constroem encantos.

Esta cidade carece de tais seres.

Esta cidade carece da música decifrada por essas criaturas.

Eles não são músicos. eles não aprisionam o infinito numa série de combinações finitas e mecânicas.

Há uma transcendência neles e no que fazem, que palavras, todas as palavras, seriam insuficientes para descrever.

Essa rara arte da música ainda resiste nos recônditos tranquilos, onde as multidões não alcançam.

Artistas assim, que tornam os sons do cosmo uma linguagem divina, como todos os outros artistas de qualquer outra arte, não se contentam com a mera distração.

Como a lira de David acalmava o rei feroz. O bom artista dos sons pode acalmar os ímpetos cruéis da humanidade.

Um dia encontrarei uma dessas criaturas.

nesse dia direi que ouvi música.
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Em outros escritos já me pronunciei sobre os bobos da corte, sobre o modo como eles mais parecem prostitutas do inferno, farejadoras de níquel.

Não devo ter me expressado bem quando disse que as quero longe de mim.

A arte, que essas criaturas dizem ostentar, parece-me doentia, obsedada e prisioneira de uma espécie feia de vaidade. E há bela vaidade? No que entendo a vaidade proporciona o sonho do belo. A arte faz isso também. Mas sustento que a vaidade deles é doentia e feia.

O meu rompimento com os músicos desta cidade  talvez não seja definitivo. Eu seria injusto de generalizar toda uma classe de músicos. O problema, muitas vezes, não é a presença de um determinado tipo de músico, que pode até ser de boa linhagem. O problema está em quem ele carrega ao lado, uns vermes postiços difíceis de aturar. são uma turma, para com a qual, com o passar de quatro anos, adquiri um certo nojo, uma certa intransigência.

Talvez um dia eu acorde e já não queira mais detestar essa corja. Temo esse dia. Se eu acordar assim, na certa estarei me vendendo a eles. E assim, que puto me tornarei.

Portanto deixo um recado indireto. Que mais vale como um soco direto ao estomago:

Senhores e senhoras, bobos da corte, mantenham-se longe de mim.
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"Nunca é alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer 
a si mesmo"

(N)


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sábado, 27 de abril de 2013

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Configura-se o descanso. depois de três meses ininterruptos, começam a surgir os esperados setes dias de profundo descanso.

As unhas estão manchadas de tinta; as mãos estão finas. nos sete dias talvez eu nem cuide de mim, apenas me jogue, permitindo o sono.

O grande privilégio disso?
O grande prêmio disso?


É singelo, apenas o poder de escolha, o poder dizer não.

O trabalho não é pela grana.O trabalho tem que ser querido. Eis o único privilégio da arte feita no atelier.

O que poderia nos tirar a delícia do descanso de sete dias?

Supomos que nada.

Mas só supomos.

Sete dias vão passar rápido. Rápido demais.

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quinta-feira, 25 de abril de 2013

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O atelier não de repente se tornou a minha vida paralela. Ontem me vi curtindo o cheiro do verniz aplicado às paredes que remetem o visitante ao final dos 1900. Encostei-me  num canto e ouvi as vozes daquela casa. Minha pele está espalhada por essa casa. Dias em que minha respiração quase falhou em alegria; dias em que me vi mergulhado na mais absoluta tristeza, tudo ali. Eu lembro bem... de quase tudo, cada marca deixada nas paredes em todas as vezes em que as portas mudaram de lugar.

O atelier é minha casa, o lugar onde mora meu mundo.

As tais paredes com cheiro de verniz naval agora dividem ambientes reais. Do lado esquerdo a construção das coisas, a realização dos projetos. Do lado direito a sutileza e a tranquilidade da pintura e da escultura. Nas salas anteriores,os ambientes destinados aos projetos e pesquisas, mais tranquilos, com cortinas cor de vinho e janelões que trazem para dentro as luzes do dia.

Poucas pessoas já estiveram nesta casa,só as pessoas que amo.

Sempre costumo dizer que essa casa reflete o meu estado de espírito.

Nunca estive tão tranquilo, tão perto de uma serenidade...

Quando eu era criança, tive que participar de uma dança na qual duas conchas feitas com ouriço de côco serviam como instrumentos de percussão. Meu pai, no dia da estreia desembrulhou diante de mim o artefato que ele mesmo preparara. Quando lembro dessa cena, sinto o cheiro de verniz que lustrava as cascas de côco.

As alegrias estão escondidas de nós, como numa brincadeira nos assustam quando se revelam. Elas estão todas interligadas,um colar de contas estimado que se partiu e se espalhou pelo sobrado.

Quando me sinto feliz em meu atelier é porque sei que entre suas paredes se movimentam as imagens das criaturas que me fazem carecer da vida, que me fazem sentir a vida preciosa, pois é vivo que sei: elas moram em mim.

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sábado, 20 de abril de 2013

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http://www.youtube.com/watch?v=sX7fd8uQles



Os olhos da noite não são implacáveis. a noite sente sono, adormece

Ainda de olhos secos busco  tintas, busco cores, protegido com o avental de bordas pretas que você me deu.

Em minhas mãos repousam os pincéis; estou olhando para o branco que espera meu gesto. Um gesto que lhe crie um mundo novo.

o infinito está a um passo de nós, menina. Buscamos a perfeição impossível...

Ah se fosse possível não seria pefeita


Eu luto contra as farpas que restam na peça

eu torno-me aliado da vontade de jogar meu corpo em lençóis de algodão...

Tela branca. Mundo oco e desperdiçado .


Lençóis limpos de algodão do Cairo. Então ouço o sol estralando as folhagens do passaredo

ele cavalga tão rápido

em vão penso que posso fugir do nascimento do dia novo




O dia sempre encontra os corpos escondidos.



Dentro da alma mora o enigma. Alma é essa força que move a carne
Amor é a força que movimenta a alma.


Como mantenho firme o costume de me comportar sendo idiota, tarde dessas até chorei pensamento em besteiras desse tipo.  Nessas horas o ancestral que mora em quem me quer bem se manifesta e me indaga o que em mim não é o mesmo que fora ontem. Tudo, tudo em mim não é o que foi ontem...

Tudo em mim nada seria sem o que fui ontem.




Esse sentimento se parece muito com um caminho que me lembro de minha infância. Um caminho úmido que levava a um rio estreito que tinha cheiro de lama. O outro nome desse caminho era: Quase o rio.

Esse sentimento me lembra o arranjo de flores do campo que enfeitava a mesa de centro da casa de uma velha tia minha. Eles chamavam aquelas flores secas e mortas de sempre-vivas-do-campo.

esse sentimento me lembra o cheiro do atelier de meu avô. Um orgulho brota em mim: Há algo de ancestral nessa minha contenda.



A noite perdeu o sono.

A noite perdeu o senso.



a noite perdeu meus olhos fechados, perdeu meus sonhos, os mais lindo sonhos que tive. a noite não me quis dormindo nela. E meu sono vai chegar, eu sei, junto com o sol que corre pelo passaredo.


A noite desembocou no dia. A noite se perdeu sem sono.

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sexta-feira, 19 de abril de 2013

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Num sorriso pirilampo é capaz de me devolver a tranquilidade. Por vezes pego-me a buscar seu rosto sorridente por saber que nessa imagem repousa a minha paz.

Nos meses de abril de todos esses treze anos tenho pensado nos detalhes daquela hora, em que ela num grito lancinante nascia para me dizer que minha vida ganhara outra vida.

como não ter o coração tomado por ela quando ela me sorri?
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quinta-feira, 11 de abril de 2013

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Ninguém morreu, estão todos vivos?

A lição é não rugir para quem dorme. O passo errado encontra o erro no caminhante. "Eu deveria ter mudado o rumo".

Ele não podia dormir naquela noite. Estivera perto demais de um corpo nu que não era o seu. Perto demais de estar dentro.

Sentiu-se excitado e na excitação pôde ter perdido muito de sua racionalidade. Perdendo a racionalidade perdia a candura de seus pensamentos; perdia sua vigília; afastava-se da criatura planejada que era.

Ela disse não e ele recuou, ruborizado,como um menino branco flagrado a cometer desaforos. 

Um buraco na vida se formaria se aquela noite  não fosse uma noite de duas criaturas.

no caminho de volta a tempestade de sensações aplacaria uma culpa. Não deveríamos habitar estes corpos. Deveríamos não precisar dessa embalagem. "Ora porra, somos mesmo uma merda de garrafa PET".

"Uma merda de uma garrafa PET!".

jogue-se líquida um pouco dentro de mim. Preencha-me um pouco até que eu vire lixo. Não rugir para quem dorme. essas frtases sem sentido ficavam pulsando no seu juízo.

Então ele abriu uma lata de coca. Ficou ali com a mão na cintura olhando para a cidade através da janela. Um pecado grave sempre é lembrado com uma expressão rotineira: Eu não deveria.

Então o telefone toca. Ela. A mesma voz insegura. "Tudo bem?" Ele indaga um pouco nervoso. "Sim", ela emite um som de quem está rindo. "Estou deitada já. Nossa noite foi estranha hoje, mas gostei". 

"Gostou?"

"A gente vai se ver amanhã?"

A mesma excitação percorre seu corpo. O mesmo ímpeto irracional de outrora.


a lata de coca está aberta sobre o parapeito. Latas de coca não são como garrafas PET.
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terça-feira, 9 de abril de 2013

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Vejam a maravilha que é o silêncio no atelier.

há dias estamos construindo algo e mal nos falamos. nossa conversa é com a linguagem de nossa arte. Nossas almas estão unidas em busca de um jeito de dizer que as flores do universo não são outras senão as mesmas de nossos quintais.

estamos juntos pois nos encontramos neste lugar que escolhemos. antes eu costumava dar um nome a estas paragens, agora sei que o atelier é simplesmente o atelier. é nossas gargantes acalmadas, nossos corpos em outro estágio. Passamos do primeiro momento, onde um calor nos impelia aos braços e aos gemidos. Neste momento, a plenitude ainda não foi alcançada, estamos ao meio da escalada, mas já de perto o cume se forma e a terra dos homens é a terra dos homens.

há heróis nessa vida torta.

há deuses quando a vida toma o rumo.

perseverar é um gesto que se guarda no coração do forte. 

Criadores de novos mundos. nem nada precisamos falar. temos um plano de ficar tranquilos, de nada um do outro possuirmos. talvez assim uma liberdade venha e se deite no colo de nossa alma. quando isso acontecer, saberei bem o que é salvação.

Então abrirei a boca entre sorrisos e direi em seus ouvidos, direi que sua existência me salvou.

Mas agora ela se dedica a dar forma a folhas longilíneas.Meu momento de reflexão a observá-la trabalhando dura o momento entre uma pincelada e outra. Logo volto ao mundo que estamos juntos criando. É nele que nossas vidas agora se sustentam. É com ele que faremos as crianças do mundo real sorrirem.
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segunda-feira, 8 de abril de 2013

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Uma doença súbita acautelou-me contra estes sujeitos. Os músicos destas terras são as más donzelas de um arranjo político que é programado para iludir.


Declaro inimiga esta turba desleal e vendável, usurpadora, corrupta. Algo deles me contaminou a tal ponto que nem sinto mais as pontas de meus dedos. Tão facilmente se vendem por ninharias... 


nenhuma alma vejo no que fazem estes pobres diabos. Se eu fosse rico, lhes pagaria um cachê triplo para que silenciassem.

Quero ouvir a música divina, eu diria.Não façam ruídos, seus ruídos incomodam o que é divino. seus ruídos sãos como os falsos gemidos de uma prostituta, que geme por níqueis raros.

Doravante, até que o ranço acabe e estes músicos libertem a música de suas almas obsedadas, cada um destes  mortosvivos será um inimigo. Antes que comam meu cérebro lhes cortarei as cabeças, ou simplesmente lhes  taparei meus ouvidos.

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domingo, 7 de abril de 2013

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Não me sobrou nenhum grito ao divino. nenhum pedido: "torne-me melhor".

Mil defeitos eu tenho. Mil erros cometi e cometo a cada instante. Em cada instante aprendo e esqueço, erro novamente, digo que não mereço a pena, digo que sou um pobre coitado e logo em seguida ergo o queixo e ostento a maior empáfia do mundo.

Mas quando estou dentro de um sorriso, sinto o amor de alguém que se jogou semente por aqui.

"Eu nunca fui santo. Nunca saberei o que é ser santo. Só quero um deus que me livre da hipocrisia. Que não me permita felicidade sabendo que outros poderiam estar condenados; que não me faça nunca eu me sentir eleito enquanto há outros tantos renegados".

deus me livre desse deus maldito.

deus me livre de si mesmo

Não quero nem saber de ser bom. Só quero viver bem..

Nem que viver seja somente respirar. Então que eu respire bem.
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