segunda-feira, 19 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 20

A NAU ENTRE O MAR E O CÉU



Eu lembro...


Foi um ruído de algo que se arrastava, estranho, eu reconhecia nele a cuia de boca emborcada. deixei em pouco a colher  suspensa no ar,  examinando atento os ruídos subseqüentes, mas, restava-me um silêncio longo e imutável. descansei a colher ainda cheia de volta ao prato e me aproximei da porta, que da mesa distava não mais que seis passos.

Mamãe?

Nenhuma resposta.

Está com algum problema? Silêncio ainda.

Eu podia, dali, sentir o cheiro da uriza, e o perfume dos óleos de banho que ela costumava usar.

Depois que forcei a porta e entrei, dei com a imagem dela, sentada na tina, elegante, com a mão direita apoiada sobre a cuia e a cabeça descansando no vazio. Nunca eu lhe havia visto tão intimamente, mal pude levantar o rosto, pois ainda resistia em mim um respeito absurdo por aquela nudez... mas a situação era completamente outra, e toda moral fugia-me aos poucos e tanto quanto meu sangue. Sentei-me ao seu lado e lhe completei o banho, enxuguei seus cabelos, cuidei dela ou do que dela era o corpo como quem cuida de um bem precioso além da conta. Ao carregá-la percebi sua leveza com um dó de um filho que não teve tempo suficiente para viver ao seu lado, de modo que saber tudo, de sua velhice, fosse tão natural...

Deitei-lhe, ali, no chão da sala de visitas mesmo, apoiando sua cabeça sobre uns tecidos que achei.

Eu não sabia mais o que fazer.




Lembranças realmente doem. Reviver é sempre assim, como massagear um baque antigo que não se curou de fato.

Devo terminar aqui minhas memórias. A mão na escrita já treme demais  e sei que ainda hoje, aquela que nasceu comigo virá me visitar. Muitas vezes chamei-lhe de amante, outras de mãe ou irmã. Hoje ela será minha filha, e nestes últimos dias dei-lhe o nome de Maricéu. Ela finalmente me levará em si para o sossego. Navegante solitária que é de um grande barco em velas, ela não só me trouxe o vento como nele mesmo e por ele navega.

Ela vai me procurar no lugar que construí a ela. E tudo enfim será essa dúvida eterna e maravilhosa que indaga quem fomos, onde estamos, quem somos agora e o que porventura seremos. E onde estaremos?

Guardo somente em mim estes últimos verbos. Como quem guarda o segredo cósmico que a tudo desvela. Antevejo a nau de Maricéu, aquela que vem me buscar.

Um comentário: