quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 19

A SOLIDÃO


ah sim...  olhar através de uma janela, num fim de tarde enquanto crianças brincam em pátios e quintais, pode ser escolhido por milhares como a imagem que mais comunica a solidão.

no entanto, olho através da janela com essa boba alegria de ainda sentir vontade de ser mais feliz e por mais dias vivo ser ma mais vivo do que fui. mesmo que eu saiba que amanhã possa ser o dia cósmico de minha partida, vivo ainda mais por cada respiração que respiro.

olho através da janela e considero isso o maior presente que todo o universo conspirou a mim.

por vezes, por muitas vezes, deposito uma nostalgia na palma de minha mão e a acaricio como se reencontrasse sobre ela as mãos  de minha mãe. essa sensação me deita lágrimas nos olhos e por isso eu me deixo num choro calmo, lento, um tanto prazeroso.  nunca parei para medir o tamanho do perdão que nos demos. nenhuma religião poderia ensinar-nos a construir o perdão que pulsava em nós dois ao mesmo tempo. quando eu a abracei, senti como se abraçasse novamente a minha nascença, e eu já nem era tão novo, mas renascia dela por uma segunda vez.

mas devo guardar essas sensações para daqui a pouco. por agora, creio, que devo confessar que depois do surto de descrença em tudo que apavorou a terceira década, encontrei uma existência cândida que me deu ao início de todas as outras vontades. sentou-se uma vez ao meu lado num coletivo quente e abafado, numa tarde chuvosa, depois de um dia exaustivo e cheio de pequenas e burlescas conspirações que não saiam dos planos de toda gente que laborava ao meu redor. ela me olhou sério, e riu. nunca fui muito dado aos risos, apesar de que os risos sempre foram os tijolos que carreguei enquanto estive em circos. eu voltei meu rosto para ela, e ela se fez séria, mas logo deixou que escapasse uma risadinha apertada entre os lábios.

aquilo me fez sorrir.

aquele gesto aparentemente inocente e traquina, me fez descansar,  e injetou analgesia em todos os meus ossos. ao me olhar nos vidros,  o meu reflexo mostrava o branco de minha máscara e a ponta vermelha de meu nariz. eu havia esquecido de retirar de meu rosto a maquiagem. de certa forma aquilo roubou o riso de outrora e me senti tocado por uma leve decepção. ela não me sorria nem ria de mim. ela ria e sorria somente do que estava entre eu e ela.

mas deixe estar que houve uma reviravolta. ela virou-se a mim e indagou meu nome. eu respondi e indaguei o mesmo dela. e foi assim que no restante do tempo em que o coletivo girou e girou pela cidade, nada mais de desconforto se passou a nós dois. e foi desde disso que me tornei a ter por ela um amor que mais era como uma peça de um quebracabeças que nunca se encaixa, mas que completa a figura.

vinha-me a indagação inevitável se ela seria ou não o vento, mas eu trancava entre os dentes a vontade de indagar e calava e calava...  e calar era um segredo que somente eu sabia.

a vendedora de pérolas trabalhava numa loja que ficava de frente para o mar...

ela, a vendedora de pérolas
  trabalhava numa loja de frente para o mar.

e eu, naqueles dias, fazia minhas carambelas natalinas, pois de algum modo... eu precisava continuar. na platéia, seu rosto era de uma luz tranquila. e foi a ela que dei de meu benário uma primeira melodia cheia de paixão juvenil. e foi ela, a primeira mulher... que conheci. a mulher que conheci inteira, em minha terceira década.

a velha senhora a amou como a uma filha. e ela retribuia esse afeto lendo nas noites de quinta trechos do livro do desassossego e poesias de Baudelaire. Foi  também ela que me trouxe um amigo, ao qual dei o nome de seu poeta preferido. Meu bom amigo Bodelé,  que nunca, enquanto vivo, me deixou ao longe.


e tudo isso me vem assim enquanto olho pela janela

enquanto olho através da janela.

penso em pérolas. pérolas preciosas que há muito já não são nem das ostras, nem de um mar...



não são minhas agora, e nem as ostento num colar ao redor de meu pescoço

mas  as detenho, belíssimas, entre minha garganta, minha alma e minha ligeira eternidade

Nenhum comentário:

Postar um comentário