sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

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engraçado isso de conferirem os dias e darem um nome para essa contagem.

alguém escolheu essa arrumação dos dias e muitos outros seguiram essa determinação. bem, mas não contesto isso. não sou um contestador inveterado.

nesses dias que se passaram, os quais chamaram de 2010, aconteceram muitas coisas. poderia eu dar uma declaração mais lógica e idiota? é claro que aconteceram muitas coisas.

encontrei um abrigo em 2010. eu não estava tão mal, nem doente, nem caindo pelas tabelas. mas eu encontrei um abrigo. encontrei quem não me trouxe dúvidas. nem me deu certezas, mas não me trouxe dúvidas. além do mais, não perseguiu a minha alma, nem empurrou meu equilíbrio. dessa energia eu não quis me afastar. dessa energia quis me tornar parte. nesse abrigo, fiquei a descobrir o nome que é o nome das mais simples arquiteturas. talvez de minha boca, desconfiada de mim mesmo, nada pudesse sair que não fosse o resultado de algo que no passado me cortou alguma pele.

mas ali, guardado, fui esperando o dia de levantar a cara e seguir, como seguem os viajantes.


preciso me apequenear, eu dizia a mim mesmo. não por ser grande, mas por um dia supor que não era pequeno.

graças a deus que não acredito mais nesse deus tolo, eu dizia a mim mesmo. nem nos espíritos perdidos, nem nas almas penadas, nem em seja lá o que for que necessite dessas metafísicas tão pouco poéticas.

nem no diabo, nem nos anjos. ora o que não inventaram os homens para conseguirem dizer o que sentem!

não era esse deus que agia como um demônio atormentando a mente de quem eu amava?

não eram os anjos da bondade que tiravam o sono e enchiam de culpa alguns justos que conheci?

que pervertido é aquele que apreende algo que era da natureza e se diz o dono disso quando o demonstra aos outros. conheci muitos pervertidos assim. eu mesmo fui um destes em muitas horas. eu mesmo me senti melhor que os outros apenas por saber aprisionar as cores entre os meus garranchos.

sim, 2010 foi um amontoado bom de dias. e dentro dessa nomenclatura tola depositamos o vácuo de nossos movimentos.

2011 é ainda apenas um nome. nada vai mudar. tudo vai continuar. os bons continuarão bons e os maus se manterão sendo assim. cada qual melhorando apenas seu modo de dizer as coisas e suas maneiras de fugir da óbvia morte. talvez consigam mais conforto. mas um coisa insiste em ser a unica que está vestida em certezas: o tempo encurta para cada vivente quando ele nomeia o que passou como passado.


há quem não mudará. e o peso dessas criaturas continuará sendo o mesmo.

mas eu sei quem merece minha admiração...

e minha gratidão...

e meu amor...


se isso não basta, então nada merece.

mas é essa uma hipótese que não ocorre, pelo menos aqui, nessa casa onde moram algumas certezas e muitos projetos.


vou chamar essa casa de 2011. só pra parecer normal.


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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

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ontem havia somente, comigo, uma única fonte de água limpa. a solução para que a água não turvasse era me deixar envolver por ela lentamente, em doses homeopáticas.

foi uma homeopatia que me deixou curado. da noite pro dia as camisetas passaram a se colorir.

dividir assim o mundo em locus diferenciados por cada passo é como viver dormindo e acordando o tempo todo. agora eu acordo por aqui. ontem mesmo atravessei uma ponte altíssima e desci numa velocidade muito alta para os pedais. do meu lado esquerdo havia o mar. na volta, o pozidon que esteve distante por quase dois anos me acompanha, imenso... quando ele se volta para o meu lado direito, percebo que já estou voltando. O mar muda der lado, mas é sempre o mesmo mar. cogito por causa dessas sensações a idéia fantástica de no próximo ano atravessar o país sobre pedais.

não posso envelhecer sem uma aventura assim. uma celebração da vida que com certeza causaria muitas mudanças.

reitero o comentário que fiz a respeito da limpeza total de minha mente. minha mente está limpa. nenhuma espera, nenhuma necessidade urgente. o que me causa desconforto é a volta para a convivência entre ladrões. e digo como andam dizendo por aí: Belém é uma cidade que te deixa muito inseguro, com muito medo... que triste.

mas essa relação não é de todo ruim. há caprichos que levam à distrações. e há verdades muito tênues que podem ser a causa de minha insistência em viver de modo simples. mas o que seria viver de modo simples? essa pergunta me é corriqueira, como uma ordem que inconscientemente direciona os impulsos mais lógicos de minhas demandas.

preciso dizer que o que Belém precisa é de um mar. lamento que para isso não haveria governante capaz. os governantes desse lugar onde Belém mora mal conseguem governar o tremor das próprias pernas. Imagina só se poderiam ser capazes de um milagre!


mas tudo bem. é comum desejar o inalcansável. se houvesse mar em Belém, eu me queixaria por outras coisas. Ou quem sabe insistiria ainda mais no absurdo que é uma cidade com tantos ladrões, onde tu não podes nem ao menos pedalar sem compromisso num final de tarde qualquer.

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

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dedico esta postagem à saudade que sinto.

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dedico esta publicação à saudade.

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dedico esta publicação à saudade.

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tenho pedalado com muita tranquilidade. ainda não há o clima de verão. o janeiro é bem mais carregado desse clima de praias e aventuras, ainda assim se pode ver pessoas chegando à cidade com um espírito ansioso por aventuras e divertimentos. saio de bicicleta em busca da ciclovia principal que me leva até a orla. o único problema é que os motoristas daqui são afoitos demasiado, e numa cidade em que a relação carro/pessoa é de quase um pra um, cria-se um desenho de tráfego onde não se beneficia o pedestre, muito menos o ciclista. As faixas de trânsito são mal posicionadas e os caras correm muito, sem precisão. é uma cidade pequena e organizada. a velocidade é algo que beira a burrice e causa mortes.

Aísha tem me acompanhado nas aventuras e isso tem causado algo bom em mim. ela é cheia de uma doçura que automaticamente tira qualquer nuvem negra da cabeça. é uma tranquilidade, uma pureza de alma e uma candura que dão essa certeza de que tudo o que fazemos, nós criaturas comuns, é quase inútil, e de que a vida é muito mais simples e descomplicada.

estou apaixonado por ela.

sinto-me saudável. fico pensando na imagem de uma cara que, depois de se rastejar na lama e por isso ter o corpo recoberto de lesmas e sanguessugas, toma um banho e se sente limpo.

pelo excesso de experiências e uma certa ansiedade pelo movimento, não consigo me aprofundar nestes escritos. o dia está lá fora. a vida está lá fora.

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

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olhando bem dentro dos olhos dela eu vejo que viverei ainda muito mais do que penso.

algo me diz o tempo todo uma certeza

não estou sozinho onde quer que esteja.




Aísha

cresceu muito até que eu chegasse...

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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

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atravessar quase um continente?

não. as distâncias sempre se mostram bem menores que as vontades.

um abraço de pirilampo...

pra isso um continente atravessado é missão pequena.
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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

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Exnort 8

"acha que perco tempo tentando convencer os outros que"...

único ponto não consumido pelo fogo

o coração da antiga cidade dos circos era um lugar muito simples, com mecanismos muito simples, que um dia, quem sabe, serviram também à navegação. Puxando cordas de um sistema de roldanas, panos pendurados em astes longilíneas de madeira desciam ou subiam. eram tecidos grandes nos quais coisas estavam pintadas. da cidade antiga, os panos eram a memória. as pinturas revelavam os sonhos de outrora, os contos, as coisas que provocavam os risos e os aplausos... os planos resplandeciam e revigoravam a esperança de um único homem que se dedicava àquelas ruínas. e cuidava delas como se cuidasse de sua pele.

Delatória já o encontrara há muito tempo, quando estivera totalmente cega. nessa lembrança, mistura de sonho e realidade, ele era como um pai que cuida de um filho adoecido. o tempo passou e a menina apesar dos vinte e um anos ainda era a criança encontrada. no seu sonho era um encontro contente, com brincadeiras com o vento, papel de seda voadores, fios e com os sons do vento nas orelhas.

o homem ainda agora vive entre o que sobrou do lugar que sempre foi sua egrégora.

"e hoje é o dia da estréia!"

"acha que perco tempo tentando convencer os outros que"...

não, amigo. disse a menina. não perde tempo algum. a sabedoria seria uma maldição se não abençoasse o sábio. pois bem. merda! era o que diriam os outros. mas esse tempo desse teatro que se incendiou terminou. das cinzas ressurge o imortal e diante das pinturas antigas em panos de velas um homem que viu toda a cidade em chamas não será mais o que um dia foi. é um ator?
não, não mais se chamará assim quem toma tais atitudes. seria um profeta? não, tampouco um profeta poderia existir num lugar onde o poderoso Deus se tornou um mercador de atitudes fáceis e frívolas. o homem sozinho diante da platéia é apenas um de nós.

é por isso que quando as cortinas rotas se abrem os velhos senhores e senhoras aplaudem. um de nós, falando para todos nós. um de nós nos fazendo ver coisas que até então não viamos...

sua primeira frase ressou pela sala:

"Nasci palhaço...

mas... fugi do circo"...



bravo!


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EXNORT 7

Delatoria tornou-se quase cega por completo quando a cidade ardeu. exatamente, por alguns dias após o grande incêndio, a menina esteve mergulhada numa escuridão absoluta. com o tempo recuperou uma pequena parte de sua visão. via o mundo como se olhasse através de um furo numa parede. no entanto, essa partícula visual era tão poderosa, que delatoria enxergava no que via e via na pequena porção que enxergava as verdades mais profundas, que nunca, olho humano algum poderia supor que existissem.

Delatoria via por completo a imagem que o quebracabeça de cinco mil peças formaria...

numa cidade destruída o que poderia ser precioso ao ponto de servir como pingente, e ser levado ao pescoço com orgulho?

a Verdade, diria eu. O que Delatoria carregava, era uma verdade. e qual ouro mais precioso? e qual tesouro mais mortífero? quem poderia encontrá-la facilmente sem se dar ao tempo de escavar como louco?

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que maldição é a sabedoria quando não traz nenhum alento ao sábio.

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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

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no atelier há momentos de querer desistir. a movimentação física, em determinados momentos leva a uma vontade de deixar os trabalhos pelo caminho. para criaturas que moram naquilo que fazem, a fuga nem sempre é possível. caramujo! carrega teu refúgio nas costas. e aonde quer que você vá, estará sempre no lugar de onde saiu. cansaço físico portanto não é um salvo conduto para a desistência.

hoje levei um baile das cores.
levar um baile das cores é como se diz: as tintas e suas misturas nunca me obedeciam. o truque da luz era simples. refratadas, as cores se comportavam de um modo. diante da luz e da oxigenação, de outro. depois de pinceladas, escureciam. depois de compostas, se confundiam com as que deitavam ao lado. e só depois de borrar a superfície é que eu percebia, que não era por minha conta, o acerto.

ontem, não havia inspiração. a inspiração só me aparece depois de muitas horas de tentativas.

as formas, apesar de não esquálidas, se embruteciam.

e quando, por força do hábito, sou levado a titerear meu violino novo às proximades de meu trabalho com cores, percebo que as tonalidades são mesmo muito antes visuais que auditivas.


numa multidão de ocres, marrons, vermelhos aprofundados de preto, o verde me fez falta. acontece sempre uma coisa esquisita nessa relação entre tons de terra. se para acompanhá-los escolhes o vermelho, a dramaticidade dessa sequência é de uma harmonia bélica. se caso escolhes o verde, a harmonia é mais selvagem, menos humanóide. acho que foi por isso que senti falta do verde naquela composição. o mais engraçado é que para ter o verde, eu não poderia, de maneira alguma, dispensar ou colocar de lado o vermelho. a força dessa cor no verde, causaria um marrom tão obtuso que a vista não reconheceria o que enxergaria como uma mistura, e sim, como um tom.


quase trinta horas de trabalho por cinco ou seis minutos de cena.

o teatro é como um namoro. muito tempo de corte, para alguns segundo de um prazer fulgás.


e eu dizia: mesmo que seja tão pouco, desejo que o que eu faço tome para si o foco.

pois o que faço me é mesmo como eu mesmo, em cena, diante de uma cortina partida e de olhares atentos aos riscos e às formas nas quais me debrucei como um louco.



se pensa que me entende apenas tentando. nem tente.

se acha que pode entender o mundo apenas observando o mundo, nem perca tempo...



as costas doem. mas não há sofrimento. aquele que sofre para fazer o que ama não pode amar. aquele que se queixa daquilo que diz ser sua própria vida, seria melhor que não estivesse em vida.



para quem serve o que faço? devo mesmo me indagar se o que faço é útil? não seria essa uma pequena filosofia do fracasso?



talvez a arte não seja para responder

talvez nem para indagar

talvez nem para ter um nome



vou dormir hoje talvez pensando na ausência do verde. mas posso me conformar ao perceber que os olhos espectadores verão sim o verde. verão sua presença na sua ausência.


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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

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as peças que se perderam se infiltraram na terra?
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EXNORT 6

E se todas as peças forem iguais? ele pensou ensimesmado.

de que adiantaria a busca?

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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010


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quando ela me encontrou eu estava febril. por um tempo bem longo muita coisa que forma os prédios antigos da cidade velha e até mesmo forma os prédios modernos da cidade tumultuada me chamavam atenção. desde pequeno quem é que não mede a altura dos arranhecéus ou imagina com vida as estátuas de indias seminuas que povoam as praças?

se eu tivesse cem gramas de força eu daria a ela de presente

se eu tivesse uma tonelada de força sobrehumana eu daria a ela de presente


a lição de babel não é a culpa pelo enrolar das línguas humanas. a lição de babel diz que o homem é capaz de desejar tocar os céus. o homem nunca tocará os céus? claro que tocará! um dia, quando isso acontecer quero estar sob um umbral bem resistente para que eu não me importe se o mundo todo desabar.

se eu tivesse que levá-la ao meu imaginário quase morto, ela reconstruiria a cidade de seus escombros. e era uma cidade tão magníficamente destruída...

eu pediria a ela: reconstrua a minha bela Antrofazia...

reconstrua tudo como se não reconstruísse. reconstrua como se criasse. como sendo deusa em papel e cola confeccionasse um boneco para alegrar as noites de seu filho.

se eu tivesse força alguma eu mentiria a dizer que daria a ela todas as grandes forças universais que habitam em mim.

e seria poético a dizer que minhas forças são as que dela a mim se projetam

como um planeta e seu sol.
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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

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EXNORT 5

Ouvindo Fritz kreisler o homem de tapaolho ainda sente forças, depois de cinquenta anos para se meter na árdua tarefa de manter escondido numa caixa de asbesto a figura dividida num quebracabeça de cinco mil peças?

não. ele já morre. e agora ao olhar para seus esforços passados sente-se um tolo que sustenta um segredo sobre o esconderijo de algo que tampouco conhece. adoecido e sem forças, numa última tentativa, tenta remontar algumas peças. é tarde, se aqui lobos costumassem vagar, ouviria-se seus uivos ao longe, no desvario absurdo da casa... e da noite.

é tarde, aos olhos do velho homem que se fecham sem que ele tenha pelo menos vislumbrado parte pequena sequer da figura que as milhares de peças unidas revelariam.

herdeiro descuidado do espólio do avô, Exnort deixa com o tempo que pela casa se espalhe o quebracabeça de cinco mil peças...

para o quebracabeça espalhado pela casa, seria a casa que estaria em perfeita desordem, despedaçada em cinco mil compartimentos, jogada ao fundo imensurável do vazio e do acaso.

certa vez, assustou-se com um acontecimento bem simples. Delatoria apareceu de manhã com uma das pequenas peças penduradas ao pescoço, dizendo que a encontrara perto da janela. A pequena achou-a tão bela, de cores tão vibrantes que não viu problema em usá-la como pingente. Exnort sentiu-se como jamais antes se sentira. um arrependimento, um desalento descuidado, uma vontade de lamentar pelo impossível que seria reencontar o todo que foi perdido, unificar as partes celulares de um corpo muito mais extenso de algo cuja fisionomia seria impossível de descrever sem ver por inteiro, revelando através de um único olhar toda sua graça e seu milagre.

mas era já tão tarde.

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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

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o filme que assisto, por estes dias é A ORIGEM.

trata-se de viagens ininterruptas através dos sonhos. bem, como aqui não é um blog de resenhas, vão se catar quem pensa que vou falar algo sobre o filme. mas posso dizer que já o assisto por alguns dias. há em mim esse hábito de tratar dos filmes como trato dos livros. assisto-os até que nada do que digam passe mais em branco. assisto-os ao ponto de ligar cada frase, cada gesto dos personagens ao contexto geral até que nada mais resista a ser entendido.

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havia um homem de tapaolho que morava no sótão e vigiava uma caixa onde se aguardava um quebracabeças de cinco mil peças.

ele no decorrer desse tempo jamais teve a miserável ambição de remontar aquela figura em pedaços.

só foi ter tal idéia quando a morte alcançou-lhe a garganta. seu corpo estremecia enquanto suas mãos não encontravam as peças que se encaixavam para formare a grande figura que aliviaria seu arrependimento.

"deve nem estar completo". disse o homem segundos antes de morrer.

desde esse dia, as peças do quebracabeça se espalharam pela casa e nunca mais revelaram a imagem que ocultavam.

no pescoço de delatoria havia uma dessas peças. "pertencia ao meu avô", ela dizia





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contrariando o que agora, neste tempo em que vivemos, é natural, escrevo sem consultar o oráculo google. reúno livros ao meu redor, atravanco-me entre muitos fios que ligam equipamentos a outros equipamentos. há um vento resultante do ventilador que me sopra ininterruptamente e o bondoso Bodelé se deita aos pés da cadeira onde estou sentado. esse é o ambiente onde inicio esta tentativa de escrita de hoje, assim, sem saber para onde ir, fico escrevendo como se escrever fosse tão fácil quanto respirar. escrevendo como toca um Maxim Vangerov. escrevendo como lutava Yp Man. escrevendo como se escrever fosse simples como viver.

tenho ao meu lado direito um livro no prêmio Nobel J.M.G. Le Clézio, a biografia de duas pessoas: Dieguito Rivera, o terror das mulheres e Frieda Kahlo, a bela feia mulher de bigode e tendêcias autodestrutivas. é um livro virgem, que ainda não desfolhei. comprei-o na Fox por quarenta. na sub orelha há um trecho que nomeia os dois de "um casal indestrutível" e tal. mas como já disse, ainda nada li dos escritos de Le Clézio e creio que não será este o mote desta publicação. creio ainda que jamais lerei tal livro e nem sei por qual motivo o trouxe pra casa.

...

o que ouço? Romanza 1 para violino e orquestra em G maior. é uma boa fuga dos vizinhos que ouvem em alta intensidade: "eu acho que me apaixonei. amor bandido amor bandido!"

mas falar mal das músicas de meus vizinhos elegendo um herói musical alemão contemporâneo ao genial Goethe não seria um motivo para esta publicação. seria sim pedante demais, tanto quanto o próprio Friedrich.

do lugar onde escrevo posso ver um pedaço do céu através da janela. é tranquilo, isolado e agora inalcansável. além de mim, só há duas criaturas que podem circular por aqui, e uma delas é o incansável companheiro Bodelé. demorei para restabelecer a ordem no lugar depois que a casa foi invadida por ladrões. mas agora aqui, este lugar parece-me estar com minha fisionomia, minhas idiossincrasias, minhas manias e hábitos em cada canto e em cada parede, de novo. não sei o quanto isso é bom. não sei o quanto é bom nos tornarmos um indivíduo isolado e cheio de pequenas peças que nos formam.

comprei alguns dinossauros de plástico e os coloquei no parapeito. contra eles há soldados também de plástico que os combatem ferozmente numa luta que nunca cessa pois tais coisas, tais formas diminutas foram pensadas para representar sem cerrar uma ferocidade estática e gratuita.

são dezoito horas.
nenhuma idéia passa por minha cabeça, e tudo que escrevo é vazio...


não vazio de quem na véspera passou por fatos inesquecíveis

é um vazio mesmo de tédio.

não há um grande desafio para minha mente...


devo esperar que um desejo repentino surja em mim e me faça querer realizar uma coisinha impossível. hoje no atelier fazemos uma estrutura de um vaso que se parece a um gineceu (rs).

nada muito desafiador
nada que me deixe indignado com minhas míseras incapacidades.

nada que movimente minha arrogância e a faça brilhar.

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terça-feira, 30 de novembro de 2010

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tédio
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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

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EXNORT


1


Coragem é palavra que soa estranha, como se não tivesse uma outra que lhe impusesse uma oposição de significado e por isso quando dita vibra sozinha como uma existência compacta. Não consigo imaginar aquele que tem medo, como a ser o mesmo que não possui coragem. Muito menos a palavra covarde poderia se aproximar sendo de um significado inverso à coragem.

Nos últimos tempos algo me mostrou o que seria sentir medo. Mostrou-me o que seria tornar-me covarde e, o que porventura por outro lado poderia ser visto como coragem.

Imagino, para contar esta estória um braço estendido como de quem pede ajuda para levantar algo ou simplesmente o distende para dar socorro a quem está ou finge estar caído. vejo-me também a estar num lugar seguro, protegido da chuva e envolvido com planosvazios ... Mas ... devo tirar a narrativa na primeira pessoa e dar um nome ao meu eu personagem. Vou chamá-lo por agora apenas de O HOMEM.

o homem passava pela estrada em caminhada lenta quando viu deitada ao largo a criatura ferida, envolvida de panos, que parecia estar morrendo. Seria essa a visão cinematográfica da cena? Na verdade era apenas um par de olhos negros que cruzou o caminho e atravessou a estrada movimentada sem olhar para os lados. No quase suicídio eram os olhos mais tristes que o homem já havia visto. Ele de seu lugar seguro, sobre suas pernas, não conseguia tirar aqueles olhos de si mesmo.

Certo do dia depois do resgate, com a ponta dos dedos, tocou a pele daquele corpo onde aqueles olhos eram parte. A mão trêmula do homem se estendeu ao encontro da pele fria e quase totalmente fria. Eis a imagem deste pedaço de narrativa: a mão estendida e trêmula do homem. E, na imaginação de uma criança de cinco anos que assistia escondida ao filme, outras mãos se agarraram às mãos dele. Uma estranha felicidade tomou seu dia... e isso é como um segundo capitulo. a criança sentia um nervosismo, como se mesmo a ver coisas bobas, entendesse aquelas imagens como tudo o que no mundo era proibido.

Nessa movimentação de imagens em parafuso enxergo um pote de água do rio por onde se mete a mão do sedento para se servir da água com gosto de barro. Sinto o gosto daquele líquido e é como se a vida lentamente escorresse por esta garganta que me trouxe. Com as mãos na cintura o homem se estanca na frente de um rio e escolhe um lugar para adotar como sendo o lugar de sua história. Ele decidiu dar a quem lhe estendeu o braço outrora na estrada, um espaço muito grande dentro de sua alma...

Ele nem sabia quem era aquela criatura que nem em forma se acomodava.

Ele apenas a acolheu como criança que acolhe um pássaro encontrado no quintal.

É assim que começa esse terceiro capitulo.

O dia era um dia de outubro. Não se sabe se de tarde ou de manhã...

Elejamos para a narrativa alguns animais

Elejamos algumas músicas...

A moldura agora de cada si mesmo formaria a fisionomia maior da multidão? se é que cabe nessa estória algo além de apenas dois seres humanos... que caiba também tudo o que é canino, domesticado e mortífero.

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EXNORT

2


o homem, apesar de todo o cuidado que tomou, teve que se deparar com a triste constatação da quase morte daquela criatura. era tão pequena, impalpável e tão indefesa. os olhos permaneciam abertos e a posição de seu corpo se projetava para a saída da casa, como se a única idéia que lhe formava fosse a de simplesmente ganhar o mundo mesmo já sem quase movimento.

entristecido, guardou os olhos nas sombras das pálpebras de uma mulher que encontrara pela estrada, assim não morreriam de fome. o corpo todo dessa mulher era um corpo em demasia para a sutileza daqueles olhos. ali, depositado no corpo o olhar não criou vida. a criatura a qual o homem salvou realmente estava em estado profundo de morte e espera.

por sete dias ele tentou lhe encher de oxigênio, mas nada vivenciava o olhar. carregava consigo essa criatura inerte para todos os lugares por onde andava, na esperança infantil de que novamente a vida ali, em estdao de retina ressurgisse para o pó e as mil estradas.

foi então que soube da existência de um mágico extrangeiro que tinha o poder de devolver vida aos que já mortos viviam. o homem bateu à porta do mágico e implorou por sua ajuda. o mágico, educado e cheio de cortesia com um um toque de suas mãos fez com que a criatura se recriasse em vida dentro do corpo de uma outra mulher. o mágico disse que boa parte da pureza daquele olhar cairia no sorriso da jovem, como uvas negras que brotam no tronco de um cajueiro. fez também com que a inocência das retinas tristes banhassem o colo e os seios da mulher, como um sol matinal que ilumina o giral bem cedinho. e assim, parte a parte, a criatura que era somente um olhar passou a habitar um corpo inteiro de uma mulher.


o mágico batizou aquela criatura de Delatoria. e ao homem que até então era somente homem, o mágico deu o nome de Exnort.


EXNORT

3

A construção destes personagens tão fora do ordinário poderia levar um leitor a crer que estivesse sobre o texto de um lunático. Acreditar na independência das particulas que formam o que é maior é uma saída possível pro descontente com as pequenas respostas da conformidade do olhar no todo. Por desconfiar agora, depois de velho, que o todo é um acordo simples e imposto por alguns sobre outros...

Como ruminar, resmungar somente?

Olhar livre no espaço do vazio.

Os olhos livres do vácuo na face, foras de órbita em 360 graus.

O abraço sem os braços, por isso de corpo inteiro.

O desejo físico sem um corpo, por isso apenas desejo.

Existências dependentes de outras existências agora liberadas pela construção imaginária de um ser quase lunático... que liberado das limitações do físico mergulha num coma sem volta.


4

O quebra cabeça espalhado foi acomodado numa caixa de sapatos e deixado no sótão. O cara com um tapa-olho e um matamoscas era o vigia da caixa. Por cinquenta anos ele não tinha a motivação para reconstruir o corpo fragmentado...

Só o olhar escapou e achou num quarto de hora o motivo para erguer uma grande paixão.

Exnort fez um acordo consigo mesmo. Ele viveria aquilo.

Exnort fez um apelo a si mesmo: ele viveria aquilo.




sábado, 20 de novembro de 2010

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não totalmente descansado e não totalmente com vontade de descansar. por conta dessas duas coisas, não totalmente consciente.
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

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depois que um humano nasce ele não permanece em corpo, jamais, o mesmo. mudança e humanidade são palavras quase mesmas.

quem pode confiar na moral de quem não cumpre seus horários?

(a frase não era indagativa e não era bem assim, mas não é minha, mas me serve como luva de esbofetear)

devo a mim mesmo uma autocrítica. e devo escrever o que penso, como sempre fiz. que fiquem registradas minhas falas. mas ando cansado um pouco. vou deixar isso se acalmar e vou dizer coisas a respeito destes últimos dias. não posso poupar o orgulho de ninguém...


não sou arrogante. sou consciente, de fato, das minhas inúmeras capacidades. a humildade em mim seria uma farsa. e farsa só é boa no palco, entre o levantar e cair do pano.
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domingo, 14 de novembro de 2010

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agora o que foi criado já se constrói no palco...

em breve tudo já não será parte de mim.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

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a visualização do mundo imaginário e cenográfico o qual construímos até agora está por quase tudo completa. por enquanto cena e corpos estão trafegando sem locus. esquisito isso, é como o deus dos judeus deve ter visto sua obra no final do quinto dia.

perdi-me um pouco nos cromatismos e, sinceramente, ainda estou longe de estar agradado com o acabamento que espero de mim mesmo. está obra não caminha sozinha depois de concluída. entre as artes, o teatro nunca se vê concluído. miscelania em movimento, ciranda interminável de mudanças.

devo dizer aqui que me encontro apaziguado e até um pouco pacífico. não por querer, mas por cansaço e foco definido demais. as eleições passaram e nenhum vitupério de minha boca. o que acontece comigo?

ainda bem que passou, aquilo que reinará até final de dezembro...

o que virá será melhor só no começo, eu sei. mas que seja de causar distração e até um pouco de esperança.

a moça que anda ao meu lado é oficialmente a minha assistente em tres universos. se algo me acometer por estes dias, ela assumirá meu lugar nos cenários. sei que ela conhece o que faço quase melhor que eu mesmo. um belo encontro esse...

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domingo, 7 de novembro de 2010

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ela não desenhou motivo algum antes que começasse a bordar no tecido branco. talvez tivesse desistido por se achar enfraquecida com o passar desses mil anos.

viu a última vez que ela gargalhou?

não. em todos esses anos nunca assisti uma cena como essa. diga-me, o que eu poderia fazer para mantê-la aqui?

entendo que é com sua materia prima que construí todas as outras que surgiram em minha vida, surgiram depois dela.

não há nada que você possa fazer, meu caro. milhões de vezes respiramos nesta vida. milhões de vezes esquecemos que respiramos. poucas vezes lembramos que um dia deixaremos de respirar.

encosto a boca nos seus olhos de sono. beijo suas pálpebras como se beijasse a porta de entrada de uma cidade imensa. toco toda a extensão de sua pele. e mesmo assim não a possuo. e mesmo assim não domino seu trânsito.

quando seu sono já não resiste ao ruído do invasor, ela abre os olhos e mostra os dentes. surge do seu mundo dos sonhos a sorrir quando me enxerga. seus braços me trancafiam e assim me vejo quase obrigado a adormecer com ela, ou a fingir que a manhã não veio e a noite persiste.

acordada, ela me observa a criar mundos. fantástica, me empresta suas mãos para escolher as tintas...

milhões de cores vindo destas que são tudo...

milhões de mundos vindo deste no qual respiramos juntos.

respiramos juntos.
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"voar é cair...



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sábado, 6 de novembro de 2010

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SÁBADO, 28 DE MARÇO DE 2009

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impressiona-me ainda o modo como tratam das suas coisas, as mesmas que lhes deveriam ser as mais bem tratadas e com esmero. o trabalho, por exemplo, tratam-no como algo ao qual estão somente por obrigação atrelados, como quem planta uma árvore não pela vida, pela doçura e pela sombra e sim somente pelo lucro de seus frutos. não executam sua obra com o desprendimento e disciplina comum aos homens sérios, fazem-no meramente por conta dos grilhões que julgam os aprisionar a esta obrigação facilmente suportável, aplicam-se sempre mais aos resultados que aos processos. neste ponto posso me surpreender bem mais com as formigas e com toda sorte de insetos que só sobrevivam em grupo.

admiram-se tanto de suas materialidades conquistadas, que pouco lhes sobra tempo para num exame mais apurado, descobrir, ou mesmo se assumir, como um ser humano consistente, de intelecto firme e de personalidade definita e resoluta. isso de modo algum me parece que lhes importe.nas conversas, se perdem a falar de si mesmos. nas ações, nada demonstram do que dizem com tanta veemência. são uma contradição ambulante. uma contradição preguiçosa e sem vigília. tementes por vaiodoso capricho. fingidamente humildes, mesquinhadamente bondosos.

nos momentos em que se defendem, enunciam que ainda estão por aprender, que ainda estão a lapidar o espírito e a mente e que por isso, os desvios de seu caráter são perdoáveis e merecem transigência por conta ainda de suas vidas novas.

os que se juntam a estes não são deles em nada diversos. são na essência a mesma mácula que lhes facilmente se anexa e lhes perdoa. neste caso, o perdoar é o mesmo que não permitir que o acerto se faça, pois ama-se o erro no outro como se o pudesse absorver a si mesmo, e o tal erro rende bem mais frutos deliciosos apesar de efêmeros, bem mais deliciosos a estes, que a ventura de ser admirado pelo reconhecido espituosismo e pela retidão de caráter. o pedir de perdão do vilão pequeno não está carregado do arrependimento, está sim carregado de vaidade e temor de assumir sua condição incompleta de indivíduo torpe, ainda assim sabedor de que jamais será capaz de mudar, pois as miúdas vilanias das quais participa jã são parte indivisível de sua essência. e esta mesma miúda vilania é o fetiche principal ao que ao vilão se adapta.


por isso, não acredite por inteiro naquele que ama o vilão. quem admite facilmente os pequenos desvios intermináveis de seu caráter nada pode fazer em reação ao desvio maior que este apresentar. a impotência inicial acaba por se transformar em cumplicidade e dependência. e isso pode nos esclarecer as loucuras que frequentemente assistimos nos noticiários.

tenho tentado encontrar aqui um vilão em condições clássicas, mas estes que vejo ainda estão em lenta formação, no risível momento até então em que ainda enganam suas namoradinhas, praticam pequenos e recônditos atos traquinas, atiram pedras nos telhados das velhinhas viúvas, dizem coisas na presença de uns que não podem ser ditas na presença de outros, disseminam mentirinhas, seduzem para abandonar, realizam para se afirmar, praticam estes pequenos atos que me fazem admitir que não os devo meter nestas páginas por serem até mesmo nas vilezas, demasiadamente poucos de si mesmos.

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(republico o que escrevi em 2009 para ser lido de um outro modo, através de uma outra recepção)

ÀS 07:46

SEXTA-FEIRA, 8 DE MAIO DE 2009

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não há como fugir ou se esconder?

ao longe eles se movimentam. uma manada de antílopes a toda velocidade
levam para o céu as nuvens de pó da savana.

contrária e muitas vezes se confundindo com a luz do sol ela caminha na mesma direção. posso ouví-la... passos firmes. posso ouví-la do mesmo modo.

antílopes a fugir das garras dos leões...


seu vestido é folhado
está de joelhos a brincar com meninas de pano

olhá-la é como sentir uma brisa me lavar a cara... como esses ventos que movimentam folhas secas nas calçadas... e parecem que correm de nós.

o corpo cheio de desejo seria um reflexo da alma. e eu que entendo bem de saudade...
devo também bem entender de desejos dos corpos, o mesmo desejo do púncaro ser xícara. um desejo de satisfazer o anseio de não sentir essa ausência.

cuido...

respiro o mesmo ar

retenho detalhes. decifro na silhueta das sombras na parede os movimentos de uma dança que precisa de música...

ou nem precisa de música.



estão mais perto. Antílopes em Antrofazia... buscam os restos da cidade para fugir das garras dos leões?

correm pra cá...

aqui não há mais caçadores. o que é belo aos olhos é o que está vivo.

o que é belo ao coração é o que nem se sabe se está vivo?

já eles chegam a pisar no que sobrou da cidade...


e quem sabe eu assistirei juntamente com a menina do balanço essas cenas de fome, fuga, vida e morte.

e vejam só.... cá estão a correr sobre as cinzas

linda imagem! A cidade vira uma nuvem e toma o céu.


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no sonho, ela sentou-se à borda do palco e balançava as pernas. mais próximo a ela estava um violão e segurando-o, um jovem de uns vinte ou um poucomais. ao fundo uma percussão. eles tinham tomado o devido cuidado para que a percussão não agredisse o timbre sutil das cordas. o contrabaixo, acústico, imenso era executado por uma mulher muito magra. à direita um flautista e do outro lado um trio de instrumentos de arco, sendo que o mais grave era uma viola sob os cuidados de um homem barbudo.

sua canção atravessava a sala. a sala era um total silêncio de platéia. era como se ela cantasse de ouvido em ouvido. como se sua música pudesse alcançar alma por alma. uma de cada vez e todas ao mesmo tempo. por não haver interfaces, não havia mentira. a intensidade era aquela em que os artífices buscavam para cada instrumento que faziam. era uma intensidade absoluta e pacifica. nenhum instrumento era ridicularizado. a nenhum deles se dizia: tua voz é fraca e precisas de ajuda para seres melhor ouvido. o que poderia ser melhor do que aquilo que estes objetos proporcionavam por si mesmos aos ouvidos que os ouviam atentos?

em certo momento a moça que cantava fixou em mim o olhar e como esquecer da canção e do que dizia..

"Nobre rapaz. de longe da estação. os trens são canções noturnas"...

nada havia entre eu e a voz que vinha de uma outra garganta.

"se te disseram para ouvir... o que antes era o caos no caos
meu bom rapaz
o universo é o fim do fim".

andar descalço seria uma idéia boa. para alguns, chorar era um caminho melhor. se de cada um em cada um, que ali estava a ouvir como eu ouvia no instante da canção eu olhasse, veria mil mundos difíceis e de muralhas imensas sendo nus e livres de tanta coisa que aprisiona.

era um teatro pequeno, iluminado por luzes de fogo brando.

era um lugar sem tanta pressa onde habitava a euterpe desaparecida de tudo o que agora nos chega aos tímpanos.

celebração. foi essa a palavra com a qual despertei.

celebração. a música em seu estado mágico e divino, trazida suavemente pelas mãos de deus.
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quem daqueles que conheces defende uma ideia?

quantos apenas seguem um fluxo como se levados de bubuia?

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hoje, através da janela do ônibus, vi um homem que trafegava pela calçada. sua imagem me ficou como a imagem de quem tinha uma tatuagem no pescoço. a tatuagem era o seu passado. o passado tatuado em seu pescoço.

ele cumprimentou uns operários que se aglomeravam ao redor de um carro de lanches. seu cumprimento era amigável e gesticulado. um sorriso sutil permanecia em seu rosto. o verde da tinta da tatuagem era bem próximo do verde que tingia sua roupa. o sol não estava tão quente, nem o trânsito estava irritante. afastou-se o ônibus daquele lugar onde estivera parado, assim fiquei me repetindo a frase que me levaria a não esquecer a visão que mantinha em si a cara da manhã de hoje: o homem com a tatuagem no pescoço... o homem com a tatuagem...

ou era a tatuagem com um homem?

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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

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cores. uma busca constante. tons, semitons.

por vezes é bom usar as cores dominantes. por outras vezes é melhor usá-las numa diluição aquosa.

por agora, no trabalho... no trabalho no qual me envolvo neste instante, acabo por misturar, abuso da visão meio sem responsabilidade. é interessante enganar os olhos alheios. no atelier minha ânsia é por enganar meus próprios olhos. gostaria de não ver o que vejo do modo como vejo, só por um pequeno instante. gostaria de limpar meus dedos das tintas, de fugir dessa tentativa vã...


mas como?

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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

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Libertei hoje o meu trabalho dessa sensações de busca.

meu olhar está voltado para a coisa que está sendo feita. não há energia que torne isso ruidoso. ainda bem que não.

como eu já disse: katablemata é um artifício cenográfico, feito para esconder cenas surpreendentes. katablematas se forem frágeis, podem ser facilmente derrubadas pelos ventos. no caso desta, seu defeito é a transparência do tecido usado, o qual revela que as melhores cenas estão posteriores ao ato no procênio.

reencontrei a viagem ao reencontrar uma janela pela qual me detive a olhar o mundo. no atelier se perde e se reencontra isso de viajar sempre. é como se tu estivesses num navio e esse navio fosse muito pouco, por dentro, parecido a um navio. com o passar das horas tu só relembras que estás a atravessar um oceano quando sem querer teu olhar encontra uma janela por onde se pode ver a imensidão do mar.

um cara vestido de branco me disse: "segundo me consta, não haverá tempestades". boa viagem! Uma me ouve com seus rubis nos olhos. Boa viagem! a pequena pirilampo se alegra na estação de embarque, ela, que já está se trnsformando em mulher. dessa vez não há pranto nem despedida. boa viagem. a moça dos meus dias divide comigo os momentos em que crio mundos, e essa cenografia é muito ampla e confeccionada em chumbo e papel.

pode-se virar essa página? disse um cara que estava ao meu lado e lia comigo ao mesmo tempo o jornal de espera. posso sim, eu disse. virei a página. ao longe um zumbido grave como o de um pesado besouro. o navio é uma cidade flutuante. penso em respirar de modo dramático, mas penso em também não respirar. eu ri nesse instante quando lembrei: dançar no mundo real é mais difícil. mas tudo é dança. atravessei o salao inteiro de minha mocidade. estendi as mãos e trouxe ao corpo um outro. naquela noite foi o exato ponto onde percebi um novo mesmo mundo depois de um longo giro.

os estilhaços de ânsia grudados ao reboco do cais estão sendo levados pela água?

a reposta talvez esteja com o timoneiro, mas ele tão pouco vive pelo cais.

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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

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atravessei a madrugada buscando algo que parecia inútil. a busca pelo inútil, milagrosamente, me levou a uma descoberta. depois da descoberta veio uma idéia que não é dessas que nos persegue tanto para tomar forma. fiquei contente e mesmo com sono fiquei contente.

e mesmo com sono não dormi até por volta das quatro. e de quando dormi nem me lembro.

moça costuma me telefonar para saber como estou, se já comi, se já tomei banho, se estou cansado... mas por volta das quatro! quem me ligaria numa hora dessas?

quando volto das ruas, volto cansado. logo percebo que minha fala aqui é inútil. observo as formas e insisto em modificá-las. o filme fala sozinho na sala. "chora menina chora, chora porque não tem ninguém". penso no dia que virá daqui a pouco. penso também na infidelidade. uma palavra tornada estúpida por moços cegos de ânsia por si mesmos. e então a palavra surge somente no momento em que o conceito que ela esconde se quebra diante dos fatos. a fidelidade é muito próxima do compromisso. os compromissos inalcansáveis são loucuras cristãs inventadas para entristecer os homens e torná-los sedentos por uma salvação.

há formas que não se pode modificar.

contente. mesmo cheio de uma piedade juvenil malvada. contente por ter a graça de ter razão. por não cair na tentação da contradição.

contente por ter chegado aos quarenta ainda cheio de sonhos e vontades.

devo isso à paciência e à espera, coisas que nem sabia existir em minha horta. com essas armas impalpáveis atravessei este ano. ah, o ano anterior foi tão cheio de tristezas. e este é tão cheio de alegrias. não há pulga que possa me fazer perder o sono, nem gigante algum que me faça nostálgico dos tempos em que eu já quase nem acreditava, que o que sei fazer era ao mesmo tempo o que poderia sempre me salvar.
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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

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Ontem eu tive que ficar do tamanho de um inseto. Transmutado assim, passei a construir minha casa. Pouco depois tive que me chegar um pouco, para desanuviar, nos anos sessenta. Amanhã terei que construir uma casa onde dois caras ficarão metidos numa conversa suspeita e também um céu furta cor para outros caras que se reunirão numa noite de quarta a dever, com seus instrumentos devidamente amplificados dominados e até ridicularizados, tocar o que chamam de jazz.

Aqui dentro de Tehlema os cenários surgem dos textos. Por muito tempo as palavras vão se transformando nas coisas que até então estavam presas dentro delas.

Não assitimos a cenas que ajudamos a construir. O espetáculo de um cenógrafo é em seu atelier. Sua ação se desenvolve em boa parte ali, entre coisas disformes vindas do que é liso é retilíneo.

Enquanto construo cenários tenho a mente num outro mundo. Pouco sei de tudo que há aqui. Habito um outro mundo e dele portanto tudo, quase tudo sei. Fantástico e simples é onde estou, como eu já sabia desde criança.

No outro mundo há tudo o que construí desde que aprendi a lingua dos homens. Homem é esse estágio em que andamos em pé e assumimos uma inteligência só considerada milagrosa por nos mesmos. Nesse estágio, que dura pouco, aprendemos uma possibilidade absurda, que diz ser o mundo passivo de ser dividido e segmentado.

As cores estão sendo distribuídas nas superfícies mascaradas com tinta latéx, lixa e canetas hidrocolor. Estou satisfeito com os resultados.

Na vida real eis que se reaproximam os ogros que muito quis manter afastados. Talvez a lição agora seja outra. Talvez ao invés de dizer “milagre!” ou “tolo!”, minha consciência rugiria a me dizer “estou livre!” ."deixem esses tolos ogros se aproximarem".

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Ontem eu tive que ficar do tamanho de um inseto. Transmutado assim, passei a construir minha casa. Pouco depois tive que me chegar um pouco, para desanuviar, nos anos sessenta. Amanhã terei que construir uma casa onde dois caras ficarão metidos numa conversa suspeita e também um céu furta cor para outros caras que se reunirão numa noite de quarta a dever, com seus instrumentos devidamente amplificados dominados e até ridicularizados, tocar o que chamam de jazz.

Aqui dentro de Tehlema os cenários surgem dos textos. Por muito tempo as palavras vão se transformando nas coisas que até então estavam presas dentro delas.

Não assitimos a cenas que ajudamos a construir. O espetáculo de um cenógrafo é em seu atelier. Sua ação se desenvolve em boa parte ali, entre coisas disformes vindas do que é liso é retilíneo.

Enquanto construo cenários tenho a mente num outro mundo. Pouco sei de tudo que há aqui. Habito um outro mundo e dele portanto tudo, quase tudo sei. Fantástico e simples é onde estou, como eu já sabia desde criança.

No outro mundo há tudo o que construí desde que aprendi a lingua dos homens. Homem é esse estágio em que andamos em pé e assumimos uma inteligência só considerada milagrosa por nos mesmos. Nesse estágio, que dura pouco, aprendemos uma possibilidade absurda, que diz ser o mundo passivo de ser dividido e segmentado.

As cores estão sendo distribuídas nas superfícies mascaradas com tinta latéx, lixa e canetas hidrocolor. Estou satisfeito com os resultados.

Na vida real eis que se reaproximam os ogros que muito quis manter afastados. Talvez a lição agora seja outra. Talvez ao invés de dizer “milagre!” ou “tolo!”, minha consciência rugiria a me dizer “estou livre!” .

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domingo, 17 de outubro de 2010

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eu não poderia dizer o tempo todo algo sobre a falta de tempo. isso seria me desmentir.

porém, passar o dia esperando a hora do descanso é não deixar sobrar tempo para que me perturbem.
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eu não poderia dizer o tempo todo algo sobre a falta de tempo. isso seria me desmentir.

porém, passar o dia esperando a hora do descanso é não deixar sobrar tempo para que me perturbem

segunda-feira, 20 de setembro de 2010



TEMPOVAZIORAL
VAZIORAL
QUINTA-FEIRA, 14 DE MAIO DE 2009
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A CRIANÇA CEGA
Fico em muito tempo a caminhar na busca por sombra
Percebo-me, escuto os rumores de meu corpo, sinto-me exaurido, desconfio que já não possuo muitas das habilidades que costumava exibir um dia desses, quando eu tinha a suposição de que minha juventude seria sempre jovem. Mas vejam só, ela já está envelhecida. Percebo que por mais que eu faça o máximo em minhas competências, como tocar meu bennário diante das pessoas com a velocidade costumeira, não me vejo satisfeito.
Me aquieto sob o que restou de uma marquise, reconheço nela e nos aspectos arruinados que sua proteção me oferece os restos do velho da rua de minhas paixões. Estou decerto na casa dos bons tempos, pois não é sempre assim que denominamos a casa dos tempos vencidos?
há sim algo quase sanguíneo a mim sobre o calçamento. Pedaço de meus passos de menino eu posso perceber por ali, as distâncias se mostram menores, a altura dos postes de iluminação, a grandiosidade das árvores um dia vivas, a angulação da ladeira que leva à casa de janelas de vidros coloridos... tudo parece menor, de tal modo como se eu tivesse crescido, virado um gigante.
A paisagem não é muito boa de se apreciar, é cinza e de efeito contrário aos meus rumores estéticos. Para evitar o desolamento sutil de minha visão é melhor fechar os olhos e descansar o espírito. Mas no início do descanso sou levado a despertar.
-como era esta cidade? Acredita que sempre foi meu sonho poder ver ela por inteiro?
Uma voz que me surge repentinamente. É um timbre de cores tímidas. Voz embargada como que posterior a uma emoção ou a um ataque de timidez.
Ao meu lado percebo de onde ela vem... e de quem ela surge. No timbre se pode ouvir a alma. Alma de benário...
É uma criança, segura um novelo de lã e está de pé com o rosto projetado para frente, tenta entender o ambiente através da brisa que sopra. Ouve-se os movimentos executados por cordas. Sim... posso ouvir isso, foi só o que fiz por toda a vida. Os solfejos substituíram em parte, durante o tempo que estou aqui, esse meu anseio de produzir música. Eu poderia tocar qualquer instrumento que quisesse, mas eles foram impedidos de chegar até mim. Então eu solfejava as melodias que a natureza me mostrava... ouço um movimento de cordas por saber que aquela presença daquela voz eram a presença e a voz que esperei, esperei sempre.
-o que há com você? – indago por notar que ela aperta os olhos. Mais um pequeno fruto da esquipatia? Ou mais um farishta descido com galhos verdevida pra me dar o sentido da espera?
Ela silencia.
-como é que aparece assim do nada depois do que aconteceu?- continuo.
Ela vira o rosto em minha direção e sorri, como se pudesse me enxergar.
- como era esta cidade? Me responda... como era no modo que você via?
Sim, ela podia me enxergar.
-ah. Apesar de ser fruto de tudo o que me forma, é engraçado. ..Eu não sei dizer como era.
Você é assim de nascença?
-não nasci.
Longo silêncio. o novelo tem sua ponta amarrada em algum lugar ao longe. Essa visão desse cuidado que ela tem com a coisa que lhe guia me faz sentir uma doce compaixão. Perco-me um pouco a imaginar onde estaria amarrada a outra extremidade do novelo. Onde seria o ponto de origem de sua vinda?
Para que não ficássemos mais em silêncio resolvo dizer qualquer coisa.
-desisti de continuar a construir a cidade. Senti um cansaço. Tristeza... sinto muito. Desejei destruir o modo pelo qual Antrofazia estava se formando a partir de mim. Percebo que estava a ver tudo de modo errado
Ela ainda continua parada por um instante. Em seguida levanta-se com certa dificuldade, parece faminta, mesmo assim se mostra sorridente.
-eu não entendo... Do que está falando? Você... você fala de um jeito esquisito. Fala como se esperasse. Ainda espera alguma coisa?
Mania de tomar as crianças como adultas, como capazes de entender o que sempre digo. Se fosse em outro momento desse dileminha, eu até poderia supor que esta criatura está presa ao caminho de suas descobertas. E deixa de me entender não porque sou superior. Acontece pelo inverso. Não me compreende porque não digo coisa com coisa. A simplicidade de sua sabedoria é imensa diante do que balbucio. “Fale-me da cidade”, ela me pede com uma certeza de que eu não negaria. Algo nela me lembra o que em mim não possui forma ou nome.
Pirilampo. Pirilampo. Ó devo não pensar nela porque isso me lança numa nostalgia terrível! Devo pensar numa resposta, não posso deixar o silêncio persistir. E por qual motivo fico achando que é uma criança. Não, não é uma criança. Não é.
-era uma cidade de circos e aplausos- Digo isso assim do nada. Ela ouve a direcionar pra mim o ouvido direito. Aperta o novelo entre as mãos. O novelo é o caminho portátil que carrega onde quer que vá?. Quem deu isso a ela? quem plantou nela esse desejo de ter tudo sob controle? E por qual motivo ainda sou assim? Pra que indagar? Pra que respostas?
-e o que eram os circos? O que eram aplausos?- ela indaga.
-ah, eu não sei dizer. Eu trabalhava no circo... mas não sei dizer o que aquilo era. Eu gostaria de não falar sobre isso, muitas coisas me aconteceram por lá. Preciso respirar um pouco. Estou cansado. Estou também arrependido. Olha só... arrependido? Falei isso? Não, arrependido não...
Onde se amarra a outra ponta do fio ariadiano?
Onde?

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- por que carrega esse fio?
- o fio? Ah sim... o fio é o meu caminho. Está ao alcance do meu tato.
-e onde está amarrado?
-no começo. No começo onde estava acumulado tudo isso.
-e onde é o começo de tudo isso?
-no exato local onde o fio foi amarrado. Num olhar. Tudo começou com um olhar.

-sei. Está tudo na sua mente... Agora é você que me coloca nas mãos a segurança da busca. Eu sempre tive essa impressão...
-qual?
-a de que seria sempre alguém que traria a mim as saídas possíveis.


-aprendi a fazer uma coisa. Mas preciso que me ajude. Procure por um recipiente , como se fosse um copo ou uma concha. Faça um furo no fundo do recipiente e me traga.

-aqui está.


-ande... estique o fio o quanto puder. Agora coloque o recipiente aqui. Espere, ajudo você. Está ouvindo? Estique ainda mais o fio. Está ouvindo? Coloque o recipiente no ouvido.
-sim... estou ouvindo um ruído.

O que é?
Acho que vozes. Sim, são vozes. Sim... são vozes.
-você as pode ouvir... mas estão em outra dimensão.
-Sim, posso reconhecer... a voz das coisas... ouço o ruído da vassoura de Dirce a deslizar pelo piso de madeira da casa dos risos proibidos. Ela era muito doente. A velha senhora se queixava que ela usava a doença como desculpa para não fazer nada. Então ela se levantava trôpega e varria a casa de um jeito lento, fazendo cara de dor. Lembro bem do ruído daquela vassoura. Pelas sonoridades posso dizer exatamente por onde ela varre.
-e por onde ela varre agora?
-agora? Agora está na sala. Era uma sala ampla com tábuas entremeadas... amarelas e pretas..
-essas coisas entristecem você?
-...
-ouça agora. Que som é esse?
-não sei.
-e esse?
-também não sei. Não quero mais ouvir nada. Me desculpe...
A criança cega então dá um brado e puxa o fio com muita velocidade. Lá adiante, como uma criatura que surge das profundezas a pipa ganha altura e se confunde com as nuvens.
Voar é cair, meu caro, é como procurar um pouso nas altas vergas.
-lembra das palavras que diz, Serafin?
-lembro da fisionomia delas...
-este fio leva à saída. E a saída é o início.
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Perceba a voz que surge desse acordo sintático, assim a ilusão criada na semântica imprecisa dos nomes se acabará.
Ouvir a ilusão é ter nos sonhos a audição dos cervos
Ouvir assim o que digo é saber o que não se quer. Cantar o que não se suporta ouvir.
A cidade queimou por si mesma porque antes de sua estrutura de amianto, ferro e lona, existiam corações que já em muito ardiam...
Ardiam nessa vaidosa febre.
O fogo é positivo em sua essência porque é divino.
O fogo é negativo em sua essência porque é divino..
O fogo é divino porque transforma. “Não faça fogo por hoje”, disse a voz de Deus vindo da boca de Elijael. “moço que apascenta ovelhas e que no dia passa a maquinar o movimento das coisas, te peço, hoje não deves fazer fogo. Porque se ardes algo, transformas. E se transformas isto naquilo e este naquele outro, estás a deter em ti um pouco dos braços de Deus”.

... e hoje é um dia santo. Não erga coisas que possam arder sem que possas apagar.

A pipa tremula no céu que já possui a cor do fim do dia. Eu pouco falei aqui dessas horas em que o sol encontra o que encobrirá a seus raios. Pouco falei a respeito do que chamam de ocaso. Lembro que nesta cidade agora vazia, um dia, fiquei a cismar a respeito das cores das nuvens durante essas horas. Havia alguém ao meu lado que dava nome às cores que surgiam no céu, estávamos entre canhões, diante do rio. O sol lançava seus raios e banhava o mezanino de nuvens. Lilás cor do ar... vermelho cor dos olhos... azul que do verde faz parte...amarelo como o manto de Hélio...
E eu amava muito mais que as cores aqueles olhos que enxergavam aquelas cores.


A criança colocou o novelo em minhas mãos e disse que me daria a honra.
Soltei a linha até que o novelo todo se desfizesse. E soltei...
_estava muito alta? Indagou a criatura que flutuava ao meu redor.
-sim, ainda está muito alta e os ventos lá de cima estão lentos... e ela está brilhando. Brilhando enquanto cai. Hoje em dia eu já nem acredito que se possa cair. O que acontece é que o centro da terra nos chama. Voar seria negar esse chamado.
-então voar é negar o chamado da terra?
-não. Voar é decidir pelo pouso, suponho. Não pode ver... o fio vai se arrastando por sobre a superfície de Antrofazia. Voar é uma atitude muito corajosa. Do mesmo modo, se deixar cair também o é.
-ninguém para resgatar o vôo?
-ninguém.
-e isso é triste?
-não sei. Mas... me desculpe... essa imagem é a mesma que me nomeia.
-sente falta de tudo...
-não sei...
-sente sim. E isso não é ruim... menino. Sim... menino. Coração verde, imaturo.
A criança vai se afastando até que desaparece. Permaneço sentado sob a marquise do velho teatro, observando o passado estancado nas cinzas do que ardeu e se transformou.
Torço pra que mudem o cenário, que desçam novas panadas e rotundas, que se acendam os elipsos, que uma luz me procure aqui no centro do palco para que ilumine o monólogo silencioso que me cabe agora até que os panos se encontrem...
Como um piscar de olhos...
Um lento piscar de olhos
Dentro do qual cabe o universo de uma farsa, de uma comédia e de uma tragédia...

As ruinas do teatro vazio preenchem minha alma, é hora de plantar as sementes de novo. Onde já se viu uma cidade sem panacéias? Antes dela partir, deixou em minhas mãos um pequeno pacote. Dentro dele há o que poderia reconstruir qualquer coisa, e no universo delas reconstruiria a mim mesmo.
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ÀS 06:14
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE MAIO DE 2009
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do ponto onde estivera por séculos soterrado ao todo que só agora se faz aparente o forte de pedra resistiu, bravo soldado, bravo constructo. ainda se projeta para a foz do rio, mira o oceano como se esperasse o ataque ainda das naus de outros reinos...

um pouco de lágrima no olho esquerdo como se uma luz forte me mostrasse o que nunca vi. um quase choro ao saber que da cidade toda aquele lugar se manteve o único e o mesmo, ou quase o mesmo em sua essência de olhar movimento silêncio.

e junto à silhueta da construção, abrigo de canhões em ferro, está o ocaso, o mesmo em nome e nunca o mesmo nunca... ocaso, isso que busquei por hoje, como se eu tivesse feito um acordo de amigo com o sol... "vá lá amigo, faça pra mim uma cena onde as luzes se apagam".

não choveu de tarde. um respeito divino ao meu desejo ou uma sorte que há tempos não se tinha nestas terras?

e se eu fechasse os olhos poderia ver o carlitos e a colombina a correr ao redor das casas velhas... contando as onze janelas e desejando se meter num barco de viagem para longe... eles teriam um esconderijo nos chalés coloniais onde montariam bonecos coloridos e músicas ...

tempos de espera em estátua de sal. casais assim já estavam naquilo que se tinha como cenário desde que aqui nasceu o primeiro homem e a primeira mulher. o resto era a tolice dos que muito falam. ah a tolice de falar demais!

entristeceu-me a imagem do casario que desaba. arquitetou-se planos relacionados a esses sobrados da ladeira. um deles era morar nos quartos de aluguel para se ter o privilégio de ver o pôr do sol todo santo dia. "queria apenas uma janela para isso, apenas uma jenela. lembro que indaguei a um menino que se mostrou na varanda se havia quartos disponíveis.





os canhões não cospem mais fogo nem pólvora. são como moradores aposentados nas calçadas centro histórico. poderiam dizer coisas explosivas, mas estão calados como esqueletos e não metem mais medo em ninguém. não mentem mais, estão sem forças, não amedrontam, estão deitados, são dragões enfraquecidos...vencidos, descartados.

no revolver de nuvens encontro novamente as cores. "eu nem gostava dessa cor"...

as mandalas repetiam um tom subconsciente que flutuou sem querer nesse universo de ações? o que significa observar os movimentos?

são resquícios mágicos?

e eu que pensei ser o único que poderia usar das cores de minhas camisetas como elementos de comunicação secretos, compreendidos só por mim mesmo.

é mais fácil e sem necessidade de palavras a observância do rio.o rio fluido de tudo o que é. do agora. das coisas que são outras coisas o tempo todo.


fui cedo

algo realmente me fazia falta.


não resisti ficar até que o sol me desse a ilusão completa de seu desaparecimento... espetáculo diário que esquecemos por nossa falta de exercício de respeito cósmico.

sussurrou algo como: "se eu não estivesse aqui me manifestaria de um outro jeito. agora me manifesto sempre como quem não sou por inteiro"...

observar os movimentos. mistério tão difícil quanto ter a capacidade de observar o flanar das árvores, do mesmo modo como eu costumava fazer em infância.

sento um pouco na escada de ferro. o que busco?

levanto... sento mais adiante onde seria fácil o ralho de vigilantes armados.

ora... a felina ainda está por ali e parece coberta... descobri o seu segredo, descobri o lugar pelo qual ela alcança uma saída nas marés cheias. dará a luz nas ruínas de Antrofazia a novas criaturas? brotantes das cinzas, mistura de gato e peixe. é o que somos todos. quem resistiu ao fogo da mudança merece monumentos na nova cidade que se reconstrói. seres esquisitos que um dia serão deuses de alguma coisa.

não há mais a sorveteria. e se não há.... não mais haverá...e assim os doces em pasta e degelo ficarão só na memória derretendo a saciar um prazer irmão da sede.

as garças ainda pousam sobre a corda. mas não há navio algum. quem ancoraria agora neste porto de cidade alguma?

saio de lá com uma das mãos na frente e outra não...

o chafariz ainda funciona e é de perto deles que me lembro que algo eu deveria dizer ao vento...

não carece...

tudo ele sabe, inclusive mover moinhos, fazer meus olhos lagrimarem com grãos de areia, advinhar a saudade nos ausentes, decifrar os movimentos.

bela história!

ó que bela história!

será assim o grito dos que estavam a assistir o tempo todo isso que até agora foi escrito?



aqui não se busca os aplausos. aqui se busca o que não se espera...

mergulhar no rio é ser fonte e foz ao mesmo tempo.

"dance comigo...
flutue
dance comigo antes que eu parta
antes que eu suma
antes que ontem seja meu nome"

voz do vento.


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ÀS 15:06
DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2009
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se houver um esforço mínimo, como esse que fazemos a carregar pedras, ne certa terei como reconstruir o que antes habitava no que foram as cinzas...

quase nem acredito que as cinzas foram cidade.

e aceito dizer que me canmso de estar por aqui a procurar pequenas relíquias:

a melhor delas foi um sapato dos tempos de escola...


e a foto de uma namoradinha que até nem sei mais o nome.


estado estranho esse de esperar a volta da companhia que surge e desaparece de relance sempre.


têm sido assim meus dias.

Tehlema está ao longe...



tédio pequeno e movimentado como um caos.


mas tem sido tranquilo.

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ÀS 15:29
SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2009
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a ilusão alucinogenada das nuves em profusão no céu causou um certo desconforto físico e um sono profundo....

amanheci tonto ainda...

e me mantive preocupado com esse estado súbito. o resto da manhã passei a verificar o comportamento de meu próprio corpo. se eu fosse levado a desenhar isso, eu caricaturizaria a cena:

eu afastado de meu corpo a escutar-me o coração.
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ÀS 07:46
SEXTA-FEIRA, 8 DE MAIO DE 2009
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não há como fugir ou se esconder?

ao longe eles se movimentam. uma manada de antílopes a toda velocidade
levam para o céu as nuvens de pó da savana.

contrária e muitas vezes se confundindo com a luz do sol ela caminha na mesma direção. posso ouví-la... passos firmes. posso ouví-la do mesmo modo.

antílopes a fugir das garras dos leões...


seu vestido é folhado
está de joelhos a brincar com meninas de pano

olhá-la é como sentir uma brisa me lavar a cara... como esses ventos que movimentam folhas secas nas calçadas... e parecem que correm de nós.

o corpo cheio de desejo seria um reflexo da alma. e eu que entendo bem de saudade...
devo também bem entender de desejos dos corpos, o mesmo desejo do púncaro ser xícara. um desejo de satisfazer o anseio de não sentir essa ausência.

cuido...

respiro o mesmo ar

retenho detalhes. decifro na silhueta das sombras na parede os movimentos de uma dança que precisa de música...

ou nem precisa de música.



estão mais perto. Antílopes em Antrofazia... buscam os restos da cidade para fugir das garras dos leões?

correm pra cá...

aqui não há mais caçadores. o que é belo aos olhos é o que está vivo.

o que é belo ao coração é o que nem se sabe se está vivo?

já eles chegam a pisar no que sobrou da cidade...


e quem sabe eu assistirei juntamente com a menina do balanço essas cenas de fome, fuga, vida e morte.

e vejam só.... cá estão a correr sobre as cinzas

linda imagem! A cidade vira uma nuvem e toma o céu.

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ÀS 07:11
SEGUNDA-FEIRA, 4 DE MAIO DE 2009
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lamentei a cidade no estado que estava. se ao meu lado estivessem os que ao que parece se foram, na certa diriam coisas sobre sua surpresa de me ver chorando. e quem sabe por me amarem tanto os que ficaram, acabariam por sentir que aprisionavam neles aquilo que eu desejo solto.

me colocariam numa carruagem e me levariam ao lugar onde eu pudesse ouvir a voz que me curaria. olhariam por mim como um jardineiro olha por seu jardim.

seria como um baile de carnaval entre eu e os meus quinhentos e trinta personagens tosqueados pela espera, bêbados de tanto respirar a delícia daquele dia, que não seria nem a mínima parte de todas as outras delícias que viriam... eu de carlitos a procurar as tres colombinas de minha história, desconfiado de meus próprios sonhos, suspeitando finalmente que se tratava sempre de meros e belos sonhos...

eu reencontraria a menina que nunca se deixou mostrar por inteira
eu reencontraria a outra que brinca com o fogo que transforma
eu reencontraria com aquela que ama o som dos gornes e se escondia pelas sombras...

os cenários viriam de súbito em contrapeso. eu reconstruiria a cidade com papéis colados e vontade de viver pra sempre nessa eternidade entre o abrir e o fechar do pano, entre o subir e o descer da cortina francesa.

eu dançaria com elas e entre elas e nunca mais acordaria pois a felicidade não me assustaria com a sua verdade sem fantasia. as serpentinas cairiam pelo salão e eu nem lembraria das horas em que deveria ritualizar minha obrigação de continuar vivo...

digo agora que o giravento gira.....

ele que por tanto tempo ficou parado ao fundo, diante do ciclorama, agora gira como se tivesse vida própria... no palco desse compartimento os corpos se movimentam.

o nome disso é dança, diria um velho senhor para sua neta.

o nome disso é alegria, diria Dirce ao filho reaparecido

o nome disso é juventude, diria a velha senhora aos seus milhares de filhos.

o nome disso é inominável.
porto desancorado.
pipas levadas ao vento,

é o labirinto que se abre
é o molho de chaves nas mãos do prisioneiro

é o passarinho que canta agora para a alvorada
é o mergulhador que se liberta de seu escafandro e se deixa flutuar...

são as sementes que germinam, flores que florescem...

mundo que roda, vida que segue viva...


sem muros agora entre o desejo e a cidade que um dia foi impenetrável. é o fogo a essência formadora do vento. é o vento o elemento que move o moinho, é moinho que tira da terra a água para hidratar o trigo. é do trigo que o pão se transforma em carne que não sangra...

a praia está tomada por pegadas de tudo o que fui

todos os passos que dei na superfície da terra..

o barquinho ancorado se lança ao mar, a outros mares

o vinho e a noite esperam mais nossas almas que nossos corpos

esperam mais o que desejamos que o que temos.

esperam beijos alegres e nunca mais tristes.





percebo agora que não mais estou a ponto de acordar - meu desespero maior...

agora o que há é sem volta pois é sem fim...


ela é tudo

e se aproxima...

revela seu rosto por inteiro


e me encho de sua imagem...






meu olhar se prende. o mistério dos meus sonhos se revela, rosa com milhares de pétalas. mulher que amparo e se mostra em mil fisionomias.


por que? eu indago.

"eu estava caindo e você me segurou"...


e eu então respondo:
mas como? nunca percebeu que eu caia também?

opostos míticos

voar é cair

voar é cair






a missão de tudo é em tudo ser o oposto do que é.

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ÀS 11:30
SÁBADO, 2 DE MAIO DE 2009
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aceitou a dança no quase que é dia.respirou de fato como se de nascer acabasse
sorriu sem postura pelas ruas da vila e correu de vestido como sem fantasia

lavou o rosto na poça da esquina

cantou um pedaço da música que ouvira na boca do florista

parou pra pensar na vida profana
tanto que dormiu tão cansada que quase morria

uniu as mãos para aquecer o corpo na noite
no apreço do tempo se encolhe ao ponto do choro
esqueceu que a voz é um soluço entendido
mas não que a vontade é um cochilo sob açoite


um cochilo
depois do vinho.

e o despertar é sempre esse mesmo desejo de viver aquilo de novo.

solo de trompete
uma cortina ao vento
e a alegria desmedida
que as estações revelam

e que as estações soterram.
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ÀS 15:05
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conte os dedos.. não aponte pra nada pra nada
solte seus braços e se deixe cair...
asa delta na superfície de areia

estão todos ...
tomados no desejo de sorrir no final da fita
a respirar fundo e a se sentir mais fortes
a escancarar as folhas das portas e dos alpendres

veja, senhora...

nenhum jardim como antes tivemos
nehuma ciranda como antes brincamos
nenhum olhar tão cheio de amor a atravessar as vidraças...

mas ainda assim encontrei seu colar após o baile
seu núimero e iniciais num lenço
e já faz tanto tempo
e já faz tanto tanto


tanto tempo já se disse passar.



abra os braços sob o umbral
como se um cego enxergasse por um segundo a beleza do dia

passe o resto das tres horas encolhido
menino de novo a ver o nome a surgir entre os alfarrábios
com uma dedicatória singela
onde o que não se diz é bem maior que o resto de tudo o que se escreve.

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contam os passos para não ter que correr a lugar algum
andam em círculos imitando a destreza dos peões
e são mais livres que sementes nas cheias

na bela noite se percebe a lua nova
ÀS 14:41
SEXTA-FEIRA, 1 DE MAIO DE 2009
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RETORNO AOS ESPAÇOS EM BRANCO


onde nada foi escrito e assim muito permaneceu obscuro.

as sapatilhas de Li

o cão de rua

a segunda parte da narrativa do náufrago

retorno aos espaços em branco. é claro que se está muito perto do fim disto. a viagem se mostra exausta e já marcou sua hora de acabar.

dedico o último capítulo à extrema beleza.

dedico este fim ao início.

e a navegação pelo universo feminino encontra nova ilha...

Serafin reencontra Li.

reencontra não o que perdeu

reencontra aquela. dentro dos conceitos e das cientificidades mostradas como nuas em pelo. reencontra aquela que esteve ali antes do sono posterior ao impacto.

impacto?

o que foi o impacto?

anterior ao fim de Antrofazia é preciso narrar a busca pelo justo.
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ÀS 09:39
QUINTA-FEIRA, 30 DE ABRIL DE 2009
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Em espera...

Não mais por mais que alguns minutos. Ah, dou-me conta que ainda há pouco se consumiu em fogo uma tentativa minha, uma imaginação formulada desde os tempos do castanheiro da infância. Mas não devo continuar a me prender nessas imagens...


Estou sobre um deserto cinza.


Confesso que não me sinto orgulhoso por esse fim inesperado. Mas daqui tenho o direito de chegar ao lugar tranquilo do equilíbrio e das respostas...

A resposta foi dada. Teria coragem de sacrificar algo que ama pelo que acredita?

Sim.

Cá estou. Descido do deserto e com as teclas sob meu julgamento...


E o primeiro passo para isso é imaginar e acreditar que da cidade restaram apenas as crianças... e no meio delas e sendo parte delas está pirilampo, com seu sorriso que em mim também se constrói.

Faço um esforço para abrir as grandes portas de entrada. Quando dentro das muralhas percebo que nada mais resta e ao mesmo tempo tudo lá está...

Devo então buscar as crianças...

Mas onde estão...

“borboletas dentro de mim”, disse a menina das sapatilhas...


disse isso antes que eu de propósito deixasse benário ao fogo.


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ÀS 08:15
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recomeçar

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ÀS 07:58
TERÇA-FEIRA, 28 DE ABRIL DE 2009
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o pensamento colateral se uniu ao seu par. e do fogo de um dos circos se alastrou sobre a cidade o início do fim do último espetáculo. mas com fogo? uns gritavam. teria mesmo que ser assim com fogo?

as colombinas em suas plumas corriam não em busca de água

os músicos não se preocupavam com seus instrumentos

os atores não perdiam tempo a mirar nas vitrines das galerias o desenho de suas fisionomias...


relicários, armários embutidos, especiarias vindas da India...


receptáculos de aço que um dia serviram de elevador...

bacias parabólicas acumulando água da última chuva...


coletivos ainda carregados do que um dia chamaram de gente.


fisionomias.

cachorros tosados a vagar famintos, sandálias de couro curtido de crianças de seis anos...


a cidade ardeu do centro. as chamas tomavam o rumo das muralhas. em vão tentavam lhes escalar as alturas ou lhe abrir as grandes portas. os que estavam do lado de fora, estranhamente naquela noite não imploraram para entrar...

bonecas de porcelana. quatrocentos mil objetos inúteis...

afastaram-se o mais que puderam. nenhum espetáculo de tal grandiosidade havia durante toda a vida lhes tomado assim...

assim....

animais de estimação num choro lamentoso...

um mendigo a gargalhar da própria desgraça...

a cidade ardia. algo como a origem do vento passou por minha cabeça. lembrei dos que amei... ainda estavam lá dentro. onde agora se debatiam onde?

então uma sensação de liberdade nova me atravancou... eu não sentia nada próximo da culpa.

a cidade se desenhava em reflexo nos meus olhos. a cidade era o fogo. nada havia de culpa pela felicidade que me tomava.

Antrofazia deixou de existir em carne. caiu em sua traição de si mesma. e ardeu como arde por dentro (...)

e no dia seguinte, no ainda fumegar das cinzas quando todos ainda dormiam pude me dar conta do que realmente eu via.


eu estava no meio de uma estrada...

no exato ponto onde os delírios começaram...
eu estava no meio da estrada...


entre o ir e vir.

na minha mão as sementes de outrora. viagem para outro jardim.

fim do último ato.

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ÀS 15:47
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fim do oráculo
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ÀS 15:33
SEGUNDA-FEIRA, 27 DE ABRIL DE 2009
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espírito e vontade.

eis o que é...
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ÀS 11:15
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organismo e necessidade.
assim são os vermes.
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ÀS 11:11
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e o melhor castigo a mim sob o julgo da velha senhora era limpar livro por livro da biblioteca.
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ÀS 10:51
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jericó.

um bom nome para lembrar o livro velho que meu pai costumava guardar com esmero...

os verbos derrubaram o muro?

possuem essa força devastadora?

ou os clarins são a substituição para o engodo?



tudo calmo...

todos parecem meninos que não dizem coisa com coisa.
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ÀS 10:37
QUARTA-FEIRA, 22 DE ABRIL DE 2009
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TEFNUT DELATORIATA

quemnestacriaturaexistaemtudosomentetristeOutudossomenteemfúriaOutudossomentemornoOutudossomenteparteOunadaAfinalesteehopontoda ...
d i v zzzz ãu
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Quebra cabeças em cinco mil peças espalhadas pela casa.
foi isso o que fizeram . Jogadas sobre os livros do primário. Escondidas sob a cristaleira que encerra bakarás falsos... peças de puzzles misturados a restos de comida... entre fotos antigas... imagens espalhadas como se espalham os humanos pelo globo; pela superfície do grão de areia; como se espalharam os ancestrais além do Éden depois do melhor pecado cometido, depois da pior atitude tomada.
Ah, um olhar frio e atento pode vasculhar uma casa e através da disposição dos objetos, desenhar os rostos dos que nela habitam. Pode-se até mesmo encontrar os resquícios dos que estão ausentes, dos que morreram, dos que passaram por ali e causaram um rebuliço, dos que nela moram sem permissão, dos que tentam a todo custo torná-la somente sua e expulsar os intrusos que bebem os vinhos e desarrumam as camas.
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E então?

Não sabia dos fios? Títere, tua casa é um cenário deste espetáculo, preparado por mãos que estão encarnadas nas tuas, visto por outros olhos que estão nos teus. O pudor diante de teu corpo nu é o pudor da moral alheia.

Se pensas que és o que pensas que és, causas riso na platéia livre, e a platéia não-livre também ri pra não parecer tola. É assim que são falsos os aplausos nesta cidade. Diz-se por aqui aqui que o que é de valor é o que silencia a todos os ouvintes.
Boneco sem semblante e manipulado, último nó da pirâmide dos fios. Acima de ti há um titereiro que por sua vez é comandado por outro, e este por outro, e assim, numa cadeia interminável, é que se constrói o castelo de cartas, visível somente por olhos iniciados.
Olhos que assistem ao espetáculo e o aceitam como ilusão dos fados.
Pirâmide dos fios. Uma sucessão de ratos de Pavlov. Famintos e por isso manipulados.

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foi assim que o desejo pelos braços veio antes dos braços
O desejo pelas mãos veio posterior
E anterior a esses desejos e aos outros mais veio o de possuir, manipular.
“se uma coisa se segue a outra, aquela foi provavelmente causada por esta”.
Post hoc, ergo propter hoc.
“Os sentimentos ocorrem no momento exato para funcionarem como causas do comportamento” (?).
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As luzes revelaram os fios do títere.
“o pensamento é apenas uma fala sub vocal”
Não pode haver verdade por acordo. Por isso a cidade é antes acordo que verdade
Por isso os acordes são antes acordo que verdade.
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Arquitetura vil. Descoberta tola de que tudo é resultado dos julgamentos internos ou não, quem sabe tudo seja fruto das ações e necessidades externas. Os olhos são janelas de vidros coloridos. Apenas um dos vidros é incolor e mostra a realidade do modo como ela é, mas este é inalcansável.
O comportamento é a carne do boneco e o resultado do desejo do titereiro.
Ele é o arquiteto que se diverte a mirar sua obra,que é o movimento, teme pela leoa que corre, pois ela é da natureza e a ela nenhum fio está atrelado. Faminta, ela poderia se alimentar das carnes possíveis. E nenhuma carne possível se chama ilusão.
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Uma estratégia vaga para chegar ao entendimento daquilo que sou como reflexo do que me rodeia,  é abandonar a procura e simplesmente fruir o que as pessoas fazem no rolar das horas. Entender os fios dos títeres a partir da atuação dos outros em suas vidas ensimesmadas e misteriosas. Então todos os seres se tornam portais.
Deve-se ter escrito em algum lugar que na superfície vítrea da bola de gude reflete-se todo o universo.
Isso me faz lembrar tristemente dos olhos humanos, que refletem e bebem um mundo pela metade.
Isso me faz pensar que na brincadeira ruidosa das crianças na rua, o choque entre duas bolas de gude representa um acordo cósmico. Disso também flui um surgimento de tantos outros universos, que somente a simplicidade de uma brincadeira infantil poderia comportar e doar ao observador atento e sedento por respostas.


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Mas como recusar o psicologismo? Como evitar de procurar por dentro do olhar encerrado os motivos que levaram a humanidade a criar Antrofazia, a cidade dos títeres? Como evitar a ação do lado obscuro da esfera ocular? Como se negar aos impulsos por acreditar que tudo aqui é comandado por uma egrégora de dimensões inalcansáveis, disfarçada em deuses, moralidades e sentimentos?

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O encontro de olhares é uma intersecção.
Mas é preciso agora, depois de tanta efusão poética das primeiras fases, libertar estes escritos da introspecção. E fazer isso é decerto árduo. Como não se referir ao pássaro noturno do porto sem compará-lo às características interiores do universo mental humano?
E como posso falar assim de universo mental humano sem me indagar se ele não é meramente um resultado dos valores positivos externos?
Paralelismo psico-físico. Eis uma questão que tenho a fundo. É possível viver assim? Seria possível um humano viver assim? Digo um humano dentro dos padrões de Antrofazia.
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“o estruturalismo e o desenvolvimentismo não nos dizem por que os costumes são obedecidos, porque as pessoas julgam de certa maneira ou apresentam certas atitudes ou traços de caráter, ou por que línguas diferentes possuem traços diferentes. Nem o tempo, nem a idade podem ser manipulados; só podemos esperar que uma pessoa ou uma cultura atravessem um determinado período de desenvolvimento”
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Em ninguém habita essa totalidade que o indivíduo supõe ter no que se supõe ser. Os indivíduos de Antrofazia estão sempre em plena construção de uma arquitetura que prioriza a estética em lugar da função natural. É desde muito verdes que o titereiro os atrela em atitudes comandadas somente por seus fios. A primeira motivação é a imitação. E o que se vai imitar senão aquilo que já se mostra arquitetado? E esse é o motivo de muitas vezes as decisões de um indivíduo estarem muito mais relacionadas ao uso comum que à sua própria vontade. Algum velho rabino inventou de dizer que a totalidade sempre é o fim. E foi ele mesmo que na terça-feira passada afirmou que o fim é uma tola fantasia. Foi expulso da sinagoga por dizer que a história escrita e estudada é o que resulta das penas dominantes a conduzir as mãos do escriba. A totalidade é então um baile de fevereiro. Ou um deserto quieto. Como se existisse algo quieto.
A totalidade, nessa imagem, é duna, deserto...
Provável que nem sempre a deusa leoa maquine todo tempo , assim, em sua fúria controlada como que tatuada pelo seu corpo infantil, ela se perde de vez em quando no vago precioso e uterino deserto inquieto da natureza livre. Sedenta, procura por água. Faminta, procura por comida. Deita-se se exausta... vive se viva,

Infantilmente madura. Seu corpo físico é o que ela é por dentro.

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Encontra tranqüilidade no que no outro provoca? Essa então é a condição para qual surgiu o que somos?
Resposta difícil. Difícil conclusão. Repete-se: o fim é uma vaga idéia. A ouvir a música que não cala, senta-se de costas para a janela e se mantém num olhar duro ao rumo da parede. Não à parede, entenda, ao rumo da parede. O caminho sempre o caminho sempre... A distância entre dois pontos a ser uma imagem, imagem de um Deus, um sonho de quem supõe ir por se ver nisso demasiado pequeno. Gigante que habita o grão de areia. O grão de areia levado pela tempestade. A vida de um humano. O planeta terra. O universo inteiro. Onde está a parte tua que é livre do tempo? Onde está a música primeira que veio na tua alma? Onde ela está livre dessa cadeia formada pela idéia do tempo?
Mas que há com a parede? O que há com o olhar nesta tarde de domingo? E os risos de ontem? E os olhos úmidos de ontem? E os timbres do dia que chamamos ontem?

Ora, aqui as paredes são uma aberração. Os gritos verbais de Deus, vindos do exército de vozes, derruba o muro de Jericó. Mas que deus? Que verbos?
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Olhar estancado no rumo. Corpo que não se movimenta. O mantra se alonga e o olhar é consoante, como o rosto de Gayatri. Caminho, caminho, caminho. O mantra se repete e a cada vez disso se faz outro. Espécie de corda estendida e esticada que vibra. Caminho, caminho, caminho. Os pés espalmados no chão. As mãos posicionadas sustentam toda a atmosfera. Corda que vibra ao vento. Corda que ressoa ao vento. Som audível somente aos ouvidos livres.
Advento da tranqüilidade numa manhã de domingo.
Nada somente em fúria
Nada somente morno
Nada somente em parte, pois que em parte somente flutua no deserto de cada dia que um dia abrigou o coração colérico e agora vibra na pacífica Tehllemah.

Olhar colérico de quem observa outros humanos em dança, música e verbo, e dentro de tal olhar não se sente o mesmo que um deles por não estar a lhes repetir os mesmo movimentos. Apenas observa, como se ainda fosse a felina que desbravava as dunas ao redor do divino rio.
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No tempo em que o grande e fulgurante Re fazia de Bigge, a cidade bela do Nilo, sua casa, ela, sua filha Tefnut vagava pelo deserto metamorfoseada em leoa. Era bela, rosnava aos ventos, seu olhar era fogo, tão poderoso quanto o fogo proveniente do temperamento do pai. Seu hálito ardia a tudo o que ao redor estivesse.

Tefnut tinha um coração colérico...
Colérico assim como são em repouso os corações dos que correm livres por não se sentirem livres.
Re ansiava pela volta de sua filha. Não suportava dela a saudade. Mesmo com tantos poderes era ingênua aos olhos do pai; por certo os perigos rondavam as terras do Egito, terras que ela não conhecia tão bem por nunca antes ter se aventurado por tão longe...
“ É preciso Tefnut aqui... seu olhar, seu hálito e seu coração por certo amedrontariam os inimigos mais ferozes”, resmungou a si mesmo Re. “Não podemos permiti-la a vagar só a descobrir a extensão de seus poderes... “
Shu e thot, a pedido do rei sol Re, transformaram-se em símios e rumaram para Núbia ao encontro da bela deusa...

Tefnut, convencida por seus amigos volta ao pai na forma de uma linda mulher. Para acalmar seu coração colérico os súditos nunca deixam de lhe executar as mais belas melodias... melodias que nunca cessam...

Todos sabiam que sem a música feita para distrair Tefnut voltaria a correr pelos desertos, envolvida de seu hálito, olhar e coração de fogo e cólera em liberdade. A música se tornou a prisão da deusa. Nas noites de luar ela em profundo silêncio mirava o infinito e sentia desejo de que tudo silenciasse e assim por dentro da imensidão arenosa pudesse voltar a correr, como quem busca a certeza da própria essência. A levantar gãos de areia e com isso criar novas possibilidades de novos mundos.

Mas a música não silenciava. Dia e noite não silenciava.

Aquilo que ela ouvia era a prisão.



Para o quebra cabeças espalhado pela casa é a casa que está despedaçada. Para a totalidade, a casa de seu nome é o olho que a enxerga. E para o ontem, os risos e todas as outras coisas de agora foram sempre os risos e todas as outras coisas de agora, escondidas no quem sabe. E amanhã não haverá risos e nem todas as outras coisas, pois o amanhã ainda por enquanto é hoje. o ainda é a palavra que revela o algo quando este se apaga para a ignorância de quem não enxerga através das coisas. E as coisas foram, são e serão indivisíveis pela totalidade inimaginável do tempo...
Para ajudar na complicação intelectual desse enigma, o professor de latim deu sua contribuição: “todas as ações do presente são incompletas”.
E se as coisas são assim, então são indizíveis em sua essência, são indefinidas em sua totalidade?


Tempo sem ritmo. Melodia infinita.
Silêncio como liberdade é música! Seria o grito do eremita.

Antrofazia se degenera no que dizem sua ascensão. È preciso dizer que tal ascensão é sua capacidade de tornar seus indivíduos quase intocáveis, enclausurados ou em coisas, ou em cadeias morais moldadas por circunstancialismos. Suas criaturas criaram uma inteligência que não mais habita o corpo, que é trazida a eles por equipamentos que lhes imita as funções primordiais, e que são alimentados por cargas elétricas geradas ou produzidas em outros campos, fato que preocupantemente promove o desgaste do que denominam recursos naturais. Como não dizer que a própria designação dessas coisas como recursos já é uma agressão?
Aprisionam o canto das cigarras não mais no momento em que o dia finda. Fazem isso como a se distrair, e levam o canto das cigarras apartados das cigarras para dentro de suas casas, para os locais onde desejam ir. Arrancaram das cigarras apenas o que delas lhes interessava. Não mais guardam no espírito a beleza das mímicas e das mímeses, armazenam essas coisas em objetos feitos para somente reproduzir. É uma afronta ao momento, pois colocaram o momento na palma de suas mãos e assim o desvencilharam do cosmos.
Milhões de envólucros como milhões de aberrações a devastar o equilíbrio da alma maior. São assim os que vivem em Antrofazia. Assim como descobriram que a chuva não é a lágrima de Deus, deveriam descobrir que na verdade são o mesmo que os ratos brancos do cientista?
Criaturas distraídas. Seduzidas pelo demônio. O mesmo que em serpente seduziu a ostentar a mesma maçã, numa época que dizia as mesmas coisas de agora, com menos designações, mas não com menos certeza.
Não há mais cavalos nem cavaleiros. A glória é a pequena conquista de objetos reluzentes. A glória é ser cada vez menos humano. Os titereiros assimilaram aquilo que representavam como a verdade. E foi desde disso que a brincadeira perdeu a graça.
O nariz de pinóquio deveria crescer na mesma proporção em que ele humano fosse a se tornar.
A honra é a filha da mentira e da possessão
Criadores de prisões.
Possuem agora o poder de estar um dentro do outro o tempo todo. Mas nada dizem além do que lhes foi designado ou permitido...

Eis o deserto habitado, que é estanque em seu movimento.
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Deixa-me em teus braços como quem se deixa em queda livre, porque é sem medo
Ouvi tua voz na noite em que dos trovões ouvi os tons...

E naqueles dias eu sei que boa parte de ti se assentou na mão que acolheu o meu riso
E no que senti quando o abraço deixou de ser somente o leito do corpo para ser a atmosfera da alma.


O que esperas de mim ao me dar a imagem dessa estrutura que poucos enxergam?
As pegadas da deusa leoa no deserto me lembram que no castelo ela se prende como humana ...
Mas continua felina.

o desejo foi o que plantou as asas no dorso da lagarta
E a luta pela vida na cópula indivisível de um verme é o mesmo dom divino que nos faz amar uns aos outros.

Misericórdia.
Grão de areia. Planeta e terra levada pelo sopro do mesmo vento que move os moinhos.
Misericórdia. Respeito pelo caminho das formigas.




quem nesta criatura exista em tudo não somente triste
Ou em tudo não somente em fúria
Ou em tudo não somente morno
Ou em tudo não somente parte
Ou em nada... Afinal este é o ponto da concórdia.
Este é o ponto da criação . explosão de tudo ao mesmo tempo
Duas células desenvolvidas habitam corpos separados e se atraem...
São em essência a gênese do organismo em substancia, para se atraírem mutuamente
das substancias desunidas foi que surgiu Antrofazia...
A cidade dos títeres.
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ÀS 06:18
TERÇA-FEIRA, 21 DE ABRIL DE 2009
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http://www.youtube.com/watch?v=d63COahIpVM
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ÀS 08:11
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aum bhur bhuvah svah tat savitur varenyan bhargo devasya dhimahi
dhiyo yo nah prachodayat...

devolva-me ao que do que me apartei por meu orgulho
visto que tudo o que sei daquilo que sou em nada é àquilo que é.

líquido espalhado pela terra
grão de areia inicial que se movimenta
vento na face...

vento na face...

devolva-me ao que do que me apartei por minha vaidade
visto que tudo que vejo daquilo que sou em nada é aquilo que é.

líquido espalhado pela terra
grão de semente inicial que se movimenta
vento na face...

vento na face...

devolva-me ao que do que me apartei por meus desejos
visto que tudo o que possuo daquilo que sou em nada é aquilo que é.

líquido espelhado pela terra
grão de semente inicial que se movimenta
vento na face...

vento na face...

devolva-me ao que do que me apartei por meus medos
visto que tudo o que temo daquilo que sou em nada é aquilo que é.

líquido espalhado pela terra
grão de semente inicial que se movimenta
vento na face...

vento na face...

flor coroada com milhares de pétalas.

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ÀS 07:48
SÁBADO, 18 DE ABRIL DE 2009
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palavra é aquilo que o coração exprime.aquilo que a outro coração algo exprime.e mesmo que da boca nada se articule... e ainda que nenhum gesto no corpo encontre molde, é na escuridão mesma dos olhos fechados que do que foi dito a verdade mais última se forma.


matéria prima dos sonhos.








matéria prima...



como primeira matéria.

única entre todas que existem.


tão pouco solitária quanto a contradição.
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ÀS 08:31
SEXTA-FEIRA, 17 DE ABRIL DE 2009
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qual o colhedor de flores que dessa tarefa sempre saiu ileso?
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ÀS 12:04
QUINTA-FEIRA, 16 DE ABRIL DE 2009
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uma cena?


pois bem...

eu estava muito triste quando cheguei e a encontrei dormindo.

ela abriu os olhos e me abraçou.




nada me indagou...

me encheu de beijos...


passou um tempo me olhando em silêncio e disse quase a mesma frase que resmunguei quando ela veio ao mundo:

"eu nem acredito ainda que você está aqui."


abraço de tres.

vida de tres almas livres...


liberdade


amor sem casulo



num contar de dias nas asas das coisas boas.
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ÀS 17:26
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nove anos.

nove anos.


não sei se é muito tempo.

tenho a impressão de ter perdido a conta justamente por ser minucioso nessa tarefa...


se alguém puder imaginar como se sente quem sente a falta que sinto...


dobro os joelhos e revelo o meu chapéu...

por ela me verto no mais simples

pois depois dela nada pode ser mais forte

a ponto de me vencer como intruso nessa casa de serena infãncia...



uma casa que ela construiu com as sobras do velho castanheiro.



ah... é ela a menina do balanço.


é ela que me indaga e ri de mim a consertar as telhas...


é ela pela metade


como tudo o que vejo pela metade...

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ÀS 17:22
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e quando a segurei pela primeira vez senti febre.

eu não conseguia tirar dela os meus olhos.

mistura estranha de obrigação e espontaneidade.


então a mãe estava ali debilitada pelo parto difícil...




ficou comigo o enredo de ser o primeiro a lhe dar o calor, a fazer com que o meu abraço imitasse o ventre perdido. fui mãe por alguns segundos depois da luz...



nunca deixei ser essa desconstrução depois disso.
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ÀS 17:19
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era um cavaleiro honrado que gritava por esse nome:

aísha! aísha!

gritava por saber que a quem ele nomeava poderia salvá-lo do lugar onde ele estava.

e onde estava era triste?

não, onde ele estava era sem ela.

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ÀS 17:16
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então vieram os dois sentimentos...

ansiedade por ganhar
medo de perder


um amor surgindo em forma de gente recém chegada
outro amor mais velho


o mesmo amor...


devo ter descoberto por esses dias que só os tolos nomeiam o amor. burocratas de deus.
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ÀS 12:14
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que dia acha melhor?

gosto do dia 17. parece soar bem. dezessete...

não acha? não soa bem?

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ÀS 12:14
QUARTA-FEIRA, 15 DE ABRIL DE 2009
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CARTA AO TEMPO

Sou o homem viajante do futuro
E tudo o que eu disser agora pode te assustar ou te provocar uma gargalhada.
Do futuro? Impossível! Dirás. Acha que pode saber o rumo que tomo e o destino ao qual chegarei?
Sim. Sou o homem do futuro e lá posso te ver como não te vê nenhum dos teus pares...
Eu sei. Encontrarás no poço da mansão estas páginas, num amanhã quem sabe onde ninguém nem mais reconhecerá esta nossa tão antiga escrita, guardadas em mídias tão antigas... estas páginas fechadas por muito tempo nos esqueletos iniciais dos códigos binários. Resmungará qualquer coisa com a boca esticada ao canto: desgraçado! Bem que tentou me abrir os olhos e eu só fazia espernegar e me debater. É. Vai compreender cada palavra com o espanto ... e tentará repetir o mesmo gesto aos que para ti só se debatem diante das verdades.

Mariposas no neon

Ah as músicas de ninar e os choros de artimanha para conquistar de volta o colo.
Ah a timidez de desejar na dança a existência do corpo amado e do ritmo tirano
Ah essas vontades de sempre ir e nunca querer ficar...

Vai chegar o tempo em que se ficará por cansaço e não por desvontade

Tempo de compreender cada palavra com espanto. Compreender o riso e o esquecimento. Compreender que o riso é uma denúncia ou uma cumplicidade. Compreender que o choro é sempre um pedido ou da fraqueza, ou da vaidade, ou do medo, ou de tudo que é humano.

desdém indisfarçado. Por que só entendo agora? Desgraçado! Sempre soube de minhas mentiras. Afinal é o homem do futuro. Conhece todos os passos que darei. Nada será surpresa. Nada será não decepcionante.

As cigarras não estouram o abdomem por tanto cantar
Os morcegos enxergam com os ouvidos. O caramujo tateia com os olhos. A cascavel vitupera com o seu chocalho. As presas do elefante são o mais alto grau do sorriso. Os falcões voam na distancia além alcance do olhar da presa.

Em tal dia o homem do futuro já me não será fisionomia. sombra do passado terei como sobrenome.

E terás como missão esta minha que agora te esfrego na cara...
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ÀS 12:49
SEGUNDA-FEIRA, 13 DE ABRIL DE 2009
percebo que me olha, mas não vê aquilo que em mim é divisível sob o sol da praia do sossego. desviou o olhar para minhas pegadas e com isso constatei que o que de mim lhe alcança são somente meus resquícios. enxerga em mim o início de um estuário. deve saber que depois dos pequenos montes entre o céu e a água, com o bote no qual eu vim sem remos, pode alcançar aquele mar repleto de adeuses, choros, tristezas e dores. na praia do sossego, ao lado da menina que não me enxerga, posso voltar a estar vivo, suspeitando que estar vivo seja de fato um respirar com a ajuda de aparelhos, com o fim necesário sempre ao alcance de meus dedos.






kleine Frau escreve palavras, de início não eram verbos a mim. mas eu me sentia neles, palavras de areia vento e onda, que pulsavam e morriam a cada avanço do mar.

no seu olhar - a única imagem que dela posso reter de fato na memória - enxergo um rosto combalido, a gravura de tudo o que sou, em preto e branco, nenhuma cor me daria beleza, nenhuma luz me faria resplandecer mais agora tal como essa que me supõe tão inerte. se um dia eu percebesse que ela realmente estaria a me enxergar, ah... cairia todo o meu reino, toda a minha babilônia seria louvada por estar destruída. "cuida do que me mostra". ela escreve. "o retorno é embaraço".
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ÀS 13:54
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Você ainda verá muitas coisas morrerem. a maioria delas não será de pessoas. aprenda isso. matarão coisas em você... e no dia seguinte passarão sorrindo a carregar pães quentes...



levianos habitam o céu.
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ÀS 13:49
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veio abrir o portão
silêncio matinal...

senti-me seguro. nenhum súcubo a me perseguir. demorou uma eternidade para que saísse detrás da grade.

um metro de distância e os batimentos cardiacos já eram audíveis do lugar onde eu me aquietava. o corpo, que por tanto esteve ao meu, se envolvia em meu redor... perfume... o mesmo perfume...

vamos nos sufocar assim.

estou aqui. estou aqui. está tudo bem agora. está tudo bem.

tenho que te olhar bem de perto. há quase tres dias que não durmo. atravessei o continente pra te encontrar.

onde está a menina? dorme ainda? dorme o anjinho que me cura quando se moivimenta em minhas lembranças. agora posso tocá-la? posso abraçá-la?


está deitada num sono profundo...


devo acordá-la?

ó Deus! como cresceu sem mim...


como não achar que toda essa distância durou apenas um segundo?
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ÀS 13:34
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seu olhar é uma elegia
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ÀS 13:30
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um homem maduro é um homem morto


é semente

envolvida de polpa que se desintegra
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ÀS 13:19
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o vento é simplesmente o vento
nenhuma divindade na mimese do ar em movimento
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ÀS 13:17
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não. por agora as janelas estão fechadas
e a curiosidade tempera o tamanho do que dentro se guarda.

habitam acolhidos da chuva o colo que não se nega

os lençóis que aquecem

e o coração esperançoso
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ÀS 13:13
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Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,

Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...

Alberto Caeiro
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ÀS 12:44
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O meu olhar é nitido como um girrassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando pra direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança, se ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
[AC]

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ÀS 12:43
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Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.

[AC]
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ÀS 12:42
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Despe meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é

[AC]

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ÀS 12:39
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vai ficar rabiscando nos muros da cidade os recados dislexicos que poderia dizer olhando nos olhos?

vai ficar a disfarçar a covardia de não ter a coragem dos passos com essas queixas de estar apegada á inércia de outros?

vai continuar dormindo até que o dia já se mostre cansado?

vai ficar caçando subterfúgios como quem caça bruxas entre céticos?

vai ficar fingindo sensibilidade enquanto carrega um coração egoísta e pesado?

vai engolir mel para esquecer o amargo que é se sentir assim?

vai passar a vida justificando atos pequenos?

vai continuar se escondendo dentro dessa moldura de um belo apodrecido?

vai ficar com o pé no agora e a cabeça no depois de amanhã?



veja-me aqui diante do mar. mergulho e já não sou o mesmo de ainda há pouco.


vai ficar pensando que perdi a confiança na humanidade?

nunca a perdi.

vai sonhar se sentar no trono da monarquia e esquecer seus propósitos?

vai permanecer com isso de dizer que as diferenças atraem tanto quanto as semelhanças desequilibram? quem foi que inventou isso?

vai se meter em gestos que desmentem o erro?

vai ainda supor que pode ter nas mãos as chaves?

acha que pode abrir alguma coisa com elas que não seja meramente palpável?

vai continuar a ver que com nossas escolhas ninguém além de nós perdemos?

muitos perdem com o pouco que somos.

o egoísta vive da queda de seus pares
alegra-se com o que julga estar destruído sem sua presença.


vai continuar a se apoderar desse imaginário e usá-lo contra a imaginação que o criou?

infame.

não percebe que ver palavras usadas assim é o mesmo que se ver em pedaços, espalhado pelos postes da cidade, como se estivesse a servir de exemplo?


até quando vai permanecer na ilusão de Antrofazia?


ai. não devo despertar a menina do sono.

ela é tão bela dormindo...


é tão bela dormindo...


tão bela adormecida..



depois de cem anos, despertada pelo príncipe, não será nem mais bela nem adormecida...


não será mais nada.



será expulsa dos contos de fada.

terá transformado o amor em repulsa

e o beijo desejado

na lembrança de um pecado.

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ÀS 07:29
QUINTA-FEIRA, 9 DE ABRIL DE 2009
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TEHLLEMAH
A elegia chora o infinito e a natureza perdida de algo redentor. A elegia chora o ideal longínquo.
Porém, aqui não se espera, pois aqui é a casa da virtude e das vontades. E a casa das vontades é grande, com janelas que se abrem a todos os horizontes. Esta casa está quase sempre vazia, nela o primeiro anseio a surgir é dela sair em viagem. Esta casa é Tehllemah. Passa através dela o prodigioso vento criador trazendo os grãos das terras que ficam muito além do rio de cor laranja; muito além das terras do cavaleiro; muito além das muralhas sinuosas de antrofazia , cidade dos circos, dos aplausos, das luzes da ilusão; muito além do teatro onde pelas sombras se esgueira a mocinha do alaúde; muito além do labirinto onde ela se mostru perdida.
Aqui não não há elegias. Aqui restam os murmúrios esperançosos da criatura de mil faces, possuidora do poder de se confundir à multidão. Em Tehllema, sua multiplicidade de fisionomias se resume a uma só, e esta não é nenhuma das milhares que costumeiramente se vale para caminhar entre as hordas. No interior de tehllemah ele caminha seminu, envolvido de linho fino, seu olhar é sereno, sua voz pouco se ouve, ele se coloca ao alpendre e observa através das janelas. Ele está com sono mas nunca dorme.
Construiu tehllemah em dias difíceis, pouco tempo depois de chegar ao sossego.
Desejo de ficar só
argamassa que catalisou os tijolos desta casa.
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É a demanda por ela e não sua posse que constitui a essência da vida unifacial de Serafin. E foi assim que tudo se deu ao início... com o seu desejo por ela. Mas quem seria essa que despertou em criatura tão defectível esse interesse repentino?
Lembre da serpente do Éden
Lembre sempre da fome e da sede diante do fruto
Lembre da mulher nua e sem vaidade. Imagem perfeita da verdade,, sem adereços para seduzir os homens.
Penso na liberdade da necessidade das posses durante a aurora. Nesse tempo dividiam-se as descobertas, esquecendo-se delas em seguida. Sem aprisioná-las em signos, não era necessário usá-las como motivação ao poder (...)
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Para o bem desta estória ela foi batizada com nome de mulher. É certo que este nome esconde milhares de outros que significam outras milhares de coisas, como devem ser o nome de uma mulher, mas, não vale a pena perder aqui tempo com essas luzes vagas a respeito da escolha dos nomes e de suas posses.Ele a encontrou desprevenidamente pelos corredores, e mal se olharam no dia em que foram desvelados um ao outro...

visão sem surpresas de quem vê a face de deus em tudo o que vê.
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“Ela possui uma elegia nos olhos”. Foi isso o que disse primeiro, dentro de um sorriso enquanto mirava as paredes.
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CRIA E CRIADOR

O encontro com o universo do teatro foi tão proveitoso a Serafin, que já na primeira quinzena de agosto me deparei com uma cena que julguei ser um primeiro fruto de tudo isso em sua vida. Estava a andar pela casa usando meias brancas, anotando coisas num bloco de papel que pendurara ao pescoço, tagarelava sussurradamente imitando a fala dos bonecos que manipulava com o auxílio de fios. Fiquei bem quieta na escada e passei a observá-lo por uma brecha. Cena comovente, verdadeiramente comovente. Há dois anos que ele não se deixava criar mais nada, que não se deixava evadir do mundo ordenado e cheio de regras. Estivera tão triste após o impacto que apenas vivia e se mantinha vivo caminhando entre os pares de Antrofazia. Era um corpo apenas, um autômato regular e preciso, que carregava uma alma dispersa. Agora ele estava ali, a brincar de madrugada com títeres de papel.
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A iniciação de um homem costuma passar pelo sofrimento. As mudanças em um homem não são coisas repentinas e nem facilmente constatáveis. Os rituais de passagem são apenas figurações sociais de alguma coisa que acontece mais internamente. Em alguns homens isso nunca acontece. Acabam morrendo sem alcançar essa transformação. Estive ao lado de um homem assim, que partiu dessa pra melhor sem nunca ter alcançado o poder de ter vontade. Ele se contentava com míseros aplausos depois de terminada cada apresentação. Muitas vezes os aplausos não vinham. Chegava em casa sem nada dizer. Eu entendia os sinais e em seguida a eles, catava algumas moedas, comprava alguns peixes pequenos e os dividia entre os onze que éramos. O fracasso não era culpa dele, a dependência dos aplausos sim. Mas como viver sem isso em Antrofazia? Como arrancar aqui diante de todos a pele cômica para viver em total liberdade? Ah... que triste o nosso fim aqui nesta cidade de circos e palhaços tristes. Antes morávamos diante de um rio, nosso quintal era a floresta, riamos abençoados por Ele, comíamos abençoados por Ele, éramos Ele, do mesmo modo que ali todas as outras coisas eram. Aqui, todos acham que são o que são.
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Ele se arrasta em busca de pares. Anda entre os outros como se da existência deles não fizesse parte. Age maquinalmente. Obedece as regras. Prima pela exata realização dos formulários em seus horários. Vigia. Impede se o acesso não for permitido. Diz isso ser uma maneira muito eficiente e legal de se colocar contra a mentira daquilo que os outros são. “Mostro com a realização do que inventam aquilo de pobre e risível que eles representam”. Diverte-se com a falsa liberdade que apregoam em suas artes. Ri da estranheza que buscam na música. Ri do rigor técnico de suas execuções vazias de alma. Observa atônito o exagero dos atores embusteiros e quase não acredita nos absurdos que ouve das bocas de seus colegas de trabalho.
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MOINHOS

Era ela o seu único refúgio ali. Ele, filho da falta e da distância, a reconhecia e diante dela se sentia tranqüilo... do mesmo modo como quem se mostra sempre diante do belo: atônito, esperançoso... cheio de uma alegria refrescante, como se a diferença entre o real e o ideal não mais existisse.
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Se este lugar é tehllemah, que significa espera, aquele que aqui habita está vestido dessa energia ...
Esperança.
Energia de Serafin diante de Belleine.
Esperança.
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EM NOME DO AMOR MAIOR

Escolha o seu cordeiro predileto e o sacrifique em nome de sua fé. Assim serás forte e justo. No momento em que precisares sacrificar o que amas em nome do que acreditas, estarás pronto para receber o fogo em tua morada. Terás um Deus em tua casa e ele correrá através do sangue de tuas gerações.
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Compulsivamente o cão passou a morder o próprio rabo a tal ponto de adoecer gravemente e morrer.
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VERITAT

Talvez ela precise fazer com que alguém sofra em seu nome. Talvez ela precise se deparar com a existência de um alguém que tenha por ela um amor maior, que esteja disposto a cortar na própria carne, e que mesmo agredindo a si mesmo não a permita prisioneira do modo como está. Alguma coisa me diz que somente livre ela se mostrará por inteiro e sem medo.

mas outra coisa me diz que sua função aqui é essa: descobrir-se sendo nada do que nela ela mesma se faz.
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ÀS 17:41
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conseguiram

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ÀS 17:41
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vontade.

vontade...





vontade








de onde vem a força oposta e que vibra destrutivamente?



o que o fez adoecer?




se pensa que disso aqui não se sabe, engana-se...



tenho o poder de vislumbrar egregorias e nessa visão mergulho minha rala existência.
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ÀS 12:10
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cansaço

foi o que se experimentou durante a espera.

o mendigo também esperava enquanto rugia: "levianos não alcançam o céu".

e eu quase ri disso. mas estava distraído demais.




cinco ou seis anos de idade. o ônibus levava a velha senhora que olhava através da janela. usava um vestido de cetim preto.

ela se despedia de quem lhe deu a luz.

e eu ainda nem sabia direito o que era isso de ir sem se despedir.



é disso que recordo nesse entretempo, enquanto busco energias boas para mover os pedaços do que guardei com tanto cuidado.

"olho-me no espelho e sinto vergonha... nem beleza, nem ilusão alguma entre eu e o que se reflete. bastaria-me construir ilusão? ou será que todos me olham e riem por saber o que suponho de mim não se poder revelar?"


o mendigo resmunga

e agora? indago cheio de uma infância indizível.


nunca mais! responde Dirce. Você ainda verá muitas coisas morrerem. a maioria delas não será de pessoas. aprenda isso. matarão coisas em você... e no dia seguinte passarão sorrindo a carregar pães quentes...



levianos habitam o céu.


para quem não é sagrado o que se diz só resta essa fidelidade desconfiada e incompleta.

e deles vai florescer uma nação que herdará o que deles brotou.


quando o ônibus sumiu no fim da rua, o vento da tarde mudou de rumo e os meninos gritavam uns aos outros por conta do flamor maravilhoso de suas alegrias.

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ÀS 10:48
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consciência em paz...

néctar.

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ÀS 08:50
TERÇA-FEIRA, 7 DE ABRIL DE 2009
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"Sou livre a medida que controlo as condições que me controlam"
(B. F. Skinner)
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ÀS 16:35
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"Sou livre a medida que controlo as condições que me controlam"
(B. F. Skinner)
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ÀS 16:35
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"Sou livre a medida que controlo as condições que me controlam"
(B. F. Skinner)
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ÀS 16:35
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“Dêem-me uma dúzia de crianças sadias, bem constituídas e a espécie do mundo que preciso para as educar, e eu garanto que, tomando qualquer uma delas ao acaso, prepará-la-ei para se tornar num especialista que eu seleccione: um médico, um comerciante, um advogado e sim, até um pedinte ou ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações, tendências, aptidões, assim como da profissão e da raça dos seus ancestrais”.
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ÀS 16:29
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE ABRIL DE 2009
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tua ausência neste leito é a insônia
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ÀS 06:22
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teria coragem de ir sem se despedir?
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ÀS 06:20
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vestido vinho


vinha.

uvas ao meu alcance.

isso de ser eterno em sede é muito o que sou.
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ÀS 06:19
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parque da sementeira
planos nunca cumpridos: andar de pedalinho e se mirar na flor.

juras num ponto de espera. uma condução que não vinha, que não conduzia.

teria coragem para desancorar e acreditar que isso poderá ser pra sempre?

teria?

conduções que nunca serviam. o peito esvaziado...


impossibilidade de ficar, vontade de não ir embora.


muito diferenre de agora, em que desejo ir...


mas não posso não ficar.
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ÀS 06:14
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a imagem que representava o seu estado era a de folhas sépias presas na surpefície de um rio.


não se deixavam ir ao fundo
não se deixavam ir ao vento


apenas iam em correnteza...

já não eram mais folhas. já nem se sabe o que eram.
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ÀS 06:09
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então ela surge novamente. costuma aparecer depois de um ruído...


cá estou nela. qual lição me trará agora?

tristeza.

não há como atracar neste porto.
não há como navegar depois de avistá-lo.


a quem me queixar?

vai passar, esse dirá.
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ÀS 05:46
SÁBADO, 4 DE ABRIL DE 2009
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quantos anos, vinte?

estava debruçada ao balcão de bijouterias. eu subia as escadas que me conduziam. nem podia imaginar a possibilidade dela me dar uma geração, muito menos atenção.
talvez pouco me tenha olhado. confesso que naqueles dias eu estava no auge de minha loucura, era jovem e não me envergonhava de viver a minha imperiosa juventude. em mim tudo era disforme e significativamente exagerado. nela tudo era sutilmente natural...

não venha, eu queria dizer. há algo de maldoso no meu comportamento. há isso de ir embora também. ficar é sempre motivo de tristeza. e não quero ninguém triste. não quero ver você entristecer por culpa daquilo que sou.


beijo algum por mais de um mês. como assim? sem beijo?


sim...


mas há algo nele que me prende, que me deixa em paz. fala coisas que me deixam em paz... e fala assim tão naturalmente que sinto sono, muito sono.... de tão tranquila que fico quando me perco dentro do que me mostra.

afaste-se, é um louco. é um louco.


não. não sabem o que dele se pode ouvir. ver o mar assim é uma outra coisa.


olhos negros, pele branca, cabelos... ouro escuro...

corpo em escultura. bela de modos e alegria.


a paixão veio quando me senti não poder atravessar a ponte diária sobre o rio sem ela. tão cheia de coragem, que segurou minhas mãos e veio.... largou tudo o que tinha e veio...

coragem e paciência. atributos de quem é forte.

habitamos na morada escolhida. por agora sem paredes, porém firme a nos dar abrigo.


conhece a verdade do que sou. para ela nunca minto.

musa dos meus dias na terra...


deitei-me no seu colo. queda livre, linho confortável.


quantos anos..... vinte, vinte e um?

conheci-lhe ontem. para os meros seria muito tempo. estar sem ela é mover-me sozinho entre os lobos.


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ÀS 05:29
SEXTA-FEIRA, 3 DE ABRIL DE 2009
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“Dêem-me uma dúzia de crianças sadias, bem constituídas e a espécie do mundo que preciso para as educar, e eu garanto que, tomando qualquer uma delas ao acaso, prepará-la-ei para se tornar num especialista que eu seleccione: um médico, um comerciante, um advogado e sim, até um pedinte ou ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações, tendências, aptidões, assim como da profissão e da raça dos seus ancestrais”. [watson]
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ÀS 07:19
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consigo ver

só não consigo ainda tocar.



é só um caso de tempo


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ÀS 07:19
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a verdade está la fora...

se aquilo que ocultas não coincide ao que vives, vives uma mentira.

quem assim vive nunca diz a verdade. mesmo que jure, grite ou morra por ela.
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ÀS 07:19
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aqui não há gerânios...

não

não sei o que são gerânios. digo não saber assim como quem diz das formas, pois bem sei que gerânios são flores, ou não?

mas ainda assim falo de gerânios como se os soubesse...

sabendo que nada deles preciso saber...


falo assim a mim mesmo. minha mão direita está dentro dos cabelos dela e ela, fecha os olhos. e eu a observo simplesmente... por agora prefiro ela ao rio...


gerânios...

gerânios...


amar a existência dessas flores sem sabe-las. seria por isso que agora nesse exato momento penso e me bato com estas coisas. ela abre os olhos e indaga. no que pensa?
penso nisso gora, respondo. penso em flores que não conheço..... e fico pensando como seria se eu as tocasse. ela volta a fechar os olhos e sorri.

e você.... no que pensa... agora. indago. agora vc me faz pensar numa resposta. abre os olhos e me fixa. e qual seria a resposta? penso que não te conheço.

só pensei em você quando vi o anjo da Alexanderplatz...


qual relação eu teria com aquele anjo?


é um anjo feito de metal. e é quase de pedra. fiquei pensando como foi pra colocassem ele ali tão alto. e isso me levou a pensar em você a me explicar a estrutura em funcionamento das coisas... a tentar me mostrar que até o nosso modo de sentir o que sentimos é algo estruturado. tem razão... a liberdade está muito além disso tudo. eu não entendia... você falava e eu não entendia.


o semblante é transespaço... que palavras bonitas, quase um oráculo dito por aquele russo revolucionário... acredita que quase perdi a fé nisso? acredita que quase perdi a fé naquilo que meu titereiro me obrigou a ser?

Zerafin... niedrieger Zerafin... que lindo é isso de doçura, fragilidade e força. tão forte e tão sensível. como os ipês da serra onde morei...


olhos fechados que se abrem agora. fixa novamente o olhar no que represento e sorri, e ri e vai começando a gargalhar. eu apenas mantenho o espanto leve dos desentendidos. está a gargalhar? pele vermelha, lábios a ponto de estourar. está gargalhando por qual motivo?

o que sinto me deixa assim. segurança de alguém que flutua. quando penso nisso de flutuar, lembro que você não sabe nadar e mesmo assim mantém essa admiração pelo rio...


qual rio?


quantos há aqui?


quantos supõe que eu possa ver?


quantos vê?


apenas um.


cheiro de quem acabou de sair do colo da mãe. o queixo encontra apoio no meu ombro e sinto por conta disso o movimento da boca quando diz de um modo que mal posso ouvir aquilo que muitos sonham ouvir da boca de alguém...

pense no universo do que temos e somos.



pense que nele e dele somos parte


gerânios. flores que conheço bem. é isso que agora ocupa meu espírito. meu corpo reage bem...

assim então me digo agora enfim curado.

aquilo que te aprisiona não pode te possuir.

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ÀS 06:38
QUARTA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2009
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"não quero pensar no modo como devo fazer as coisas. nem querer me cabe aqui...

o que sinto não cabe aqui explicar. deixe-me aqui assim como estou, destilando as cores dos cúmulos. tenho os olhos grandes. eles se alimentam do espetáculo que o klown formulou somente para a construção dos meus risos. ele está mudado, como se algumas gotas o tivessem enverdecido. ela está ainda mais livre, como se tivesse aprendido.

mar tempestuoso.o serafin dos dias tortos me deu palavras de presente e eu só pude lhe dar um brinquedo verde, pequena ainda que sou, tomada ainda por essa simplicidade de não ser madura. naquele tempo não entendi o que dizia. agora entendo que desentender é o melhor lugar onde posso chegar, improvisar é o melhor movimento, dar o que não é nominado, sentir o que não se assenta somente no desejo. algo novo? não. apenas os mesmos frutos comidos na rua, a mesma tagarelice, os mesmos afagos... tão bons que nunca cessam, que nunca poderiam ser esquecidos. parte da cena... ele é mesmo de falar muito. e sou mesmo de não cansar de ouvi-lo. voz que promete o sono. promete segurança. doce... sutil e forte".



mudo.

sei que acredita em mim. nunca foi necessário indagar. disso nunca se duvidou.

"quero ter um filho!"

bem... fala assim de modo orgânicow

"não sei. é só um desejo estranho. sinto vontade desses processos de ter um filho".

processo? ... como asim? fala do caminho pra se ter um filho?

"fazemos isso o tempo todo. pelo menos é o que acho. fazemos isso o tempo todo. está escrito. tem uma parede branca aí, está cheia de rabiscos. fico lendo os rabiscos..."

...

"rabisco. seria um bom apelido pra você."

riso.

a porta fica batendo com o vento. sente-se uma descoragem, não uma covardia, uma descoragem de impedi-la de bater no umbral. ela se levanta e toca meu pescoço com o nariz. fecha os olhos. percebo uma explosão da energia lancinante. um coro de violinos agudíssimos me corta os ouvidos. aperto os olhos e sinto bem de perto o calor que surge da alma.


e é assim que me reencontro com musa...

trapezista, equilibrista...

nunca se engane, não é possível conhecer o que sou.
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não faço muito esforço para quedar assim a minha noite.
ÀS 14:31
SEGUNDA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2009
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as coisas são como devem ser?

as coisas são como deveriam ser?



quem é o responsável pela direção disso?

o zelo na convivência. entenda as palavras, não pense que são feitas sem esmero... somente pra você que esse castelo de cartas se desmorona. o zelo na convivência passa pelo desejo de sempre ver o outro num sorriso leve e tranquilo, como que raspando as panelas de mingau, sorvendo um sabor último. um dia eu soube, amizade é isso de cuidar de alguém de um jeito infantil, como faziamos com os brinquedinho prediletos, guardados num baú perfumado com naftalinas roubadas da avó: fios de algodão enrolados em palitos de picolé, soldados de plástico, carrinhos que vinham como brindes em balas de amendoim... figurinhas de personagens de desenhos animados... restos de ostras e pedras com formato esquisito...

coisas que lembram dos tempos...

a velha senhora apertava bolinhos de farinha e os colocava arrumadinhos no prato. chamava-os de capitães. eu e os capitães de feijão a observá-la num tecer croché sentada diante da porta...

pensei que tal tempo fosse algo que nunca passasse. nem se sabia que o nome disso era infância.

quando nestes últimos dias o meu corpo adoeceu, poupei-lhe de por mim ter cuidado, como quem esconde que solta pipas pela janela do sótão. desconfiada, preparou-me chás de casacas de árvores. chás amargos...

disse que eu parecia triste....

que não deveria me jogar tanto nas coisas que faço....
que poderia largar os papéis e os livros...

que poderia dormir na sua cama, se eu quisesse.

tudo ao contrário que me ordenava...


eu poderia fazer tudo o que me proibira na infância.






certa vez, numa dessas febres que de surpresa me afloram nessas condições, deitei sobre o lençol limpo da sua cama antiga...

o mesmo cheiro dos mesmos tempos que sabia nunca passar.

nestes segundos fechei os olhos e esqueci destes trinta anos...
e quase me jurei que, se levantasse dali, encontraria a velha senhora diante da porta a tecer centros de mesa ou a me fazer fuxicos.




amizade é algo que sinto assim.

brinquedo que reencontro...


num canto da casa que me deixa quieto.
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ÀS 15:58
DOMINGO, 29 DE MARÇO DE 2009
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hoje o azul do céu voltou a aparecer...

não pode haver desalegria. Farishta me diria tal coisa ao me ver empalidecido por descobrir o aquário sem peixe.


quando o céu não está azul, não deixa de ser céu, e ser belo, magestoso afinal.
mas um aquário vazio ainda é um aquário, ou é meramente um recipiente trnsparente cheio de água?

tristes são todos os belos e tranquilizadores aquários... que aprisionam a liberdade daquilo que baila através dos líquidos, apenas para deleitar as intranquilidades dos homens...

na tristeza eu olhava pro aquário e imaginava os peixes a colorir meu cantinho, meu refúgio...

eu próprio era o peixe no alongamento deste estado de alma.

eu diria sempre nos ouvidos de quem amo: seja forte antes de tudo. mas antes de ser forte seja feliz mesmo na fraqueza. permita-se á desalegria, mas permita-se a ela cheio de felicidade por ser humano e ter o dom de se entristecer e voltar a se alegrar, como lagartas e seus casulos.



muitas vezes me vi muito triste. adoeci... e quase me perco...


e nesse tempo eu ouvia as vozes que me diziam o caminho de uma luz. e rastejando fui até o lugar calmo e claro dessa minha melancolia... onde deus sentou ao meu lado e nada disse, naquele momento eu sabia... nada disse porque eu estava nu.

sem a roupa por ele admirada, e dada a mim por alguém... por seu intermédio.


ele era o silêncio dos que amo...


ele era a distância que se construía entre eu e a minha possível não solidão.


estou aqui, dizia o amigo. estou aqui sempre ao seu lado.

estou aqui nessa luz tênue que é essa espera pela segurança de andar firme por aí.


estou aqui...

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ÀS 08:36
A BAILARINA




Nunca a vi a dançar. Cheguei a percebê-la certa vez de longe, colocando sua boa altura e seu peso na ponta das sapatilhas. Não parei para observar aquilo e nem senti nenhuma admiração pelo efeito estético da cena. Eu poderia parar onde estava, eu poderia deixar-me num desvario qualquer... a contemplá-la na melhor luz acidental que nenhum humano poderia desenhar para aquele palco.

Não vi a bailarina antes de ver a mulher rodeada de cavalheiros de mãos estendidas que habitava dentro dela. E foi por isso que não senti admiração pela cena na ponta das sapatilhas, apesar da bela luz obtusa. O que eu veria nela, não seria ela.

O palco estava em penumbra e nele muitos outros dançavam, era assim que ela me parecia ainda mais bonita.
Descobri depois que se tratava de uma menina de vinte anos, preciosa às mãos lacivas dos bufões da corte, e fraca ainda para não se permitir a essas aventuras sem cair como vítima da querela e bonomias.

Não dedique a isso sua beleza! Não pode entender que sua beleza não é essa volúvel estampa aos olhos?

E se eu desse a ela a oportuna viagem ao lugar que nela mesma se guarda? Se este lugar fosse carente de sua dança?

Não. Seria vil trazê-la assim, sem que antes toda sua alma sentisse o apelo por aquilo que há tempos desvelei quase por milagre e por insônia: tenha cuidado com os movimentos percebidos pelo seu coração. Deixei que os lobos a rodeassem e da linda imagem de sua altura e seu peso sob a ponta das sapatilhas fizessem uso, fui impedido por supor que se me aproximasse, me confundiriam assim a um deles - seres distantes do que é bom, a fraqueza de espírito sempre se manifesta através desse medo vaidoso. Desde aquela noite nada mais foi feito para que se impedisse que a bailarina fosse ferida. Foi deixada ao canto das coxias, arrancada da cena e impedida de suas piruetas. Andavam a dizer que era a amante de todo mundo, que todos podiam possuí-la e descartá-la, usá-la para embelezar suas caixinhas de música e deixá-la logo após sob o julgo do escárnio. E toda essa farsa voltada para arrancar dela o que poderia a todos fazer rir me causou uma dor aguda, uma cumplicidade com o seu coração, um desejo de um dia poder dela me aproximar e dizer que o desenrolar das tramas dessa vilania podia ser diferente se ela não tivesse ela se colocado nas pontas dos pés diante de olhos traiçoeiros.

É certo que seu caráter ainda se deixava aos moldes de uma libertina busca, como sempre fazem os olhos de quem por ser tão jovem, acaba por não perceber a maldade que rodeia seus gestos. Mas qual o homem de valor colocaria sobre ela o seu devido respeito? E quem eu poderia me supor como digno disso? Eu próprio me arrependi de não ter me deixado a admirá-la desse modo. Mas por outro lado eu sabia que se fizesse o mesmo que os outros faziam, se fosse forte o suficiente para usar essa arma que costumam usar sempre, eu me revelaria apenas um numero a se somar à pequena malta.

Naqueles dias a minha vida estava em voltas com a existência da outra menina. Toda minha carne estava exposta, e assim me encontrava à beira de um abismo do qual eu já me suspeitava em queda. A bailarina estava do outro lado, dançava na ponta dos pés, supostamente feliz pelos braços que a envolviam. Eu, no entanto, estava certo que meu dia chegaria, e nele eu seria julgado, nele seria tomado pela realização da visão que tivera desde menino. Estive disposto a aceitar isso pelo bem da outra menina, por sentir por ela aquilo que sentem os que a vida dariam por um outro. Até mesmo por já saber que mais cedo ou mais tarde minhas palavras seriam negadas, eu me aquietava somente a esperar a chuva cair. Um coração amedrontado acaba por confiar mais na mão antiga que acena de muito longe que no abraço novo, que ampara o corpo do medo e da dor recente. Chegaria o tempo em que a intriga escolheria o vilão. A platéia em seu rumor entreatos sussurraria a escolha final. Vejam o palhaço a se meter onde não é chamado. Distraído e tolo a enfiar as mãos em vaso de víboras.
Vejam como improvisa. Reconheçam os cegos do castelo. Apalpam as paredes, julgam apesar disso poder divisar as sutilezas dos seres e das coisas mínimas do universo, que é tão infinito tanto ao amplo quanto ao que se diminui.



E na intempestiva temporada perdi de vista a bailarina.
E foi assim que depois de algum tempo olhei para o lado e percebi que sob as sapatilhas ela já não se encontrava.

Uma menina...

Um covarde.

Todos são jovens demais para saber o que fazem. Que conclusão tola.


Alexandre era muito jovem quando descobriu os elefantes.

Já não existem mais sementes para lhe presentear. As últimas já se foram de mim. E isso significa que pouco sei de agora em diante de meus sonhos de outrora. Ando a caminhar assim fingindo uma satisfação como se algo se fizesse completo daquilo que imaginei ser a minha vida para a arte, que guardo desde que ruiu o castanheiro de minha infância. Mas posso tocar sua mão e lhe trazer ao lugar que descobri, onde existe um moinho que revela o vento maior, a divindade que movimenta aquilo que somos.
A bailarina veio ao sossego como a quarta existência, prevenida ao que de mim poderia receber ou não...


Fique aqui por um tempo, eu disse, deixe as feridas fecharem um pouco mais. Há os que são como anjos. Nunca negue a existência de anjos na terra. E se alguém te chamar de “ meu anjo”, não tire dessa exclamação a força e a verdade. È Deus que está te utilizando para ser anjo de alguém naquele momento. Fugir disso é abandonar ferido aquele que de ti necessita o amparo. Mais ou menos como a mãe que abandona um filho no deserto, sabendo que ele morrerá de sede.

Quem é você. Indagou.

Nasci palhaço, abandonei o circo. Ouvi uma voz em solfejo que me conduziu a um lugar chamado sossego, não é uma fuga. Já disse mil vezes que este lugar não é uma fuga. É o melhor lugar que existe dentro de cada um. E se existe dentro de cada um, pode se tornar soma real para todos.

Procure não mudar por mim o que sente.
E nem sentir o que pode mudar.
Já me penalizei por me permitir ser livre a ponto de viver as verdades do que sinto, por isso não estranhe se eu me mantiver ao longe, fiz um voto de permanecer assim até que meu dia chegue, pois perdi o melhor que pude supor ser o melhor, por culpa desses desejos furtivos de amar sem medida e sem limite aquilo que eu sabia ser o que me salvava. Por isso esteja atenta. A missão é construir um palco no meio da platéia que só enxerga o lado triste das coisas mesmo quando se alegram com essas mesmas coisas. Transformaremos o sossego numa realidade feliz. Em toda Antrofazia não haverá palco mais belo. Esteja conosco nele. Seja conosco aquilo que seremos de melhor do que poderemos ser aos outros. É pra tal coisa que nos encontramos aqui. É pra isso que nos foi dado o oxigênio os lugares os ares e os pulmões.
sim
Os vilões estarão ainda com seus enganos e vilezas...

Mas que importa?
Estaremos no trigal a colher grãos para nossos pães.
Usaremos a mó do moinho...
E o forno que se esconde na casa sob castanheiros
E nossas mãos para modelar aquilo que saciará nossa fome e a dos outros.

No sossego se é livre para vislumbrar o giravento em seu trabalho diário.
E no sossego pode-se observá-lo a girar de qualquer ponto.

Tão livre que gira...
Movimentado pelo vento que ainda vem do fogo.

Os ouriços caem e quebram as telhas. Aprendemos a viver como se vive na infância. Reaprendemos a amar como amávamos num tempo em que não falávamos.
Apenas girávamos como quem dança.
E andávamos na rua a pular como se ninguém nos medisse.

Visualizar o giravento é o mesmo que tocar as madeixas de Deus.


Madeixas de deus.

Que giram o mundo.


Aqui você pode flutuar até...
na ponta de suas sapatilhas...



Aqui você é a criatura mais linda
Tão linda que é livre...

Tão livre...


Que dança.

Que gira... e gira.


Pois é criança.

Criança.

Com todo seu peso e toda sua altura na ponta de suas sapatilhas.

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ÀS 04:20
SÁBADO, 28 DE MARÇO DE 2009
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impressiona-me ainda o modo como tratam das suas coisas, as mesmas que lhes deveriam ser as mais bem tratadas com esmero. o trabalho, por exemplo, tratam-no como algo ao qual estão somente por obrigação atrelados, como quem planta uma árvore não pela vida dela e sim pelo lucro de seus frutos. não executam seu trabalho com o desprendimento material e disciplina comum aos homens sérios, fazem-no meramente por conta dos grilhões que julgam os aprisionar a esta obrigação facilmente suportável, aplicam-se sempre mais aos resultados que aos processos. neste ponto posso me surpreender bem mais com as formigas e com toda sorte de insetos que só sobrevivam em grupo.

admiram-se tanto de suas materialidades conquistadas, que pouco lhes sobra tempo para num exame mais apurado, descobrir, ou mesmo se assumir, como um ser humano consistente, de intelecto firme e de personalidade definita e resoluta. isso de modo algum me parece que lhes importe.nas conversas, se perdem a falar de si mesmos. nas ações, nada demonstram do que dizem com tanta veemência. são uma contradição ambulante. uma contradição preguiçosa e sem vigília. tementes por vaiodoso capricho. fingidamente humildes, mesquinhadamente bondosos.

nos momentos em que se defendem, enunciam que ainda estão por aprender, que ainda estão a lapidar o espírito e a mente e que por isso, os desvios de seu caráter são perdoáveis e merecem transigência por conta ainda de suas vidas novas.

os que se juntam a estes não são deles em nada diversos. são na essência a mesma mácula que lhes facilmente se anexa e lhes perdoa. neste caso, o perdoar é o mesmo que não permitir que o acerto se faça, pois ama-se o erro no outro como se o pudesse absorver a si mesmo, e o tal erro rende bem mais frutos deliciosos apesar de efêmeros, bem mais deliciosos a estes, que a ventura de ser admirado pelo reconhecido espituosismo e pela retidão de caráter. o pedir de perdão do vilão pequeno não está carregado do arrependimento, está sim carregado de vaidade e temor de assumir sua condição incompleta de indivíduo torpe, ainda assim sabedor de que jamais será capaz de mudar, pois as miúdas vilanias das quais participa jã são parte indivisível de sua essência. e esta mesma miúda vilania é o fetiche principal ao que ao vilão se adapta.


por isso, não acredite por inteiro naquele que ama o vilão. quem admite facilmente os pequenos desvios intermináveis de caráter do ser amado, nada pode fazer em reação ao desvio maior que este apresentar. a impotência inicial acaba por se transformar em cumplicidade e dependência. e isso pode nos esclarecer as loucuras que frequentemente assistimos nos noticiários.

tenho tentado encontrar aqui um vilão em condições clássicas, mas estes que vejo em antrofazia ainda estão em formação, no risível momento até então em que ainda enganam suas namoradinhas, praticam pequenos e recônditos atos de natureza desequilibrada, atiram pedras nos telhados das velhinhas viúvas, dizem coisas na presença de uns que não podem ser ditas na presença de outros, disseminam mentirinhas, seduzem para em seguida abandonar, enfim, praticam estes pequenos atos que me fazem admitir que não os devo meter nestas páginas por serem até mesmo nas vilezas, demasiadamente desprezíveis.

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