sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ÚLTIMO SUSPIRO NO TEMPO

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Depois destes seis anos de escritos na rede, encerra-se aqui meu ciclo de navegação. Deixo aqui parte de minha carne, parte de minha vida, dores e alegrias. Marcas minhas nessas paredes de luz, onde vivi intensamente tudo o que vivi.

Aos olhos de kleine  Frau, Minzy, Tempovazioral, Kleine belleine e Katablemata, foram os lugares onde imprimi minhas profecias, que me guiaram e guiam por todos estes dias.

Talvez eu esteja envelhecendo, tendo surtos de ânsia por silêncio...

Talvez seja hora de silenciar.

Talvez eu deva me calar para os olhos que me escutam, pois o velho carrossel precisa  parar de girar.

Os escritos ficam como prova e testemunho do que vivi e senti aos que junto comigo viveram. Uma luz de verdades quem sabe eternizadas, envoltas de enigmas,  um sinal de que essas verdades que me guiaram tinham sua alma divina e tiveram sua beleza estampada no tempo.

Vivi, amei e morri ao lado dos personagens que agora deixo ao tempo.

Agora isso tudo vira um templo do que fui, lugar que visitarei quem sabe muito velho, talvez com uma saudade imensa de meus amores verdadeiros.


"Lembranças realmente doem. Reviver é sempre assim, como massagear um baque antigo que não se curou de fato.

Devo terminar aqui minhas memórias. A mão na escrita já treme demais  e sei que ainda hoje, aquela que nasceu comigo virá me visitar. Muitas vezes chamei-lhe de amante, outras de mãe ou irmã. Hoje ela será minha filha, e nestes últimos dias dei-lhe o nome de Maricéu. Ela finalmente me levará em si para o sossego. Navegante solitária que é de um grande barco em velas, ela não só me trouxe o vento como nele mesmo e por ele navega.

Ela vai me procurar no lugar que construí a ela. E tudo enfim será essa dúvida eterna e maravilhosa que indaga quem fomos, onde estamos, quem somos agora e o que porventura seremos. E onde estaremos?

Guardo somente em mim estes últimos verbos. Como quem guarda o segredo cósmico que a tudo desvela. Antevejo a nau de Maricéu, aquela que vem me buscar".


Adeus.
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A MENINA DE VELASQUES

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Sonhei que a menina de Velasques saia do famoso quadro e me balançava ao leito. eu me acordava a esfregar os olhos e a não acreditar na cena. quietinha, sem o olhar amargo que mantinha na pintura ela sentou-se à beira da cama e me indicou um lugar onde havia silencio. além da janela.

sim, eu resmunguei, agora lembro, é a janela de um tempo outro, no qual eu estava em corpo de criança. através da janela eu me vi a estar sentado na calçada, mantinha o queixo apoiado nas mãos, igual a quem está perdido em pensamentos. todos a mim estavam em silêncio, como num filme em lenta camera e sem som. eu a assistir o mundo como quem está numa sala escura e tranquila.

senti-me feliz ao me ver em criança. eu encontrava um brinquedo perdido. meu playmobyl de capacete vermelho...

corra mais menino! eu queria dizer a mim mesmo. não fique assim tão quieto.

mas eu em criança observava os formatos escondidos das coisas. admirava-os. e pensava na possibilidade de dizê-los.

a única possibilidade era o silêncio.

meu pai costumava me presentear com elefantes de açúcar. meus irmãos me caçoavam por meu cabelo. as outras crianças se assustavam com meu modo de dizer as coisas. era a década de setenta. um silêncio tomava conta de todos. mas todos não se aquietavam por não gostarem de permanecer calados.

se Taubelleine me surgisse naqueles dias, me surgiria como o som doce proveniente do triangulo estridente do vendedor de cavaco chinês. ou quem sabe me fosse a sensação que sempre tive ao observar o imenso castanheiro ao lado da escola de alfabetização.

Taubelleine sempre esteve ao meu lado. houve um tempo em que foi uma bola de borracha que caiu em meu quintal. noutro instante foi a bonequinha de miçangas que comprei para presentear Heloise. Taubelleine me surgiu um dia como as meigas sapatilhas de Li, que me beijava a se esconder do temporal.

o semblante é mutante. não há semblante. o amor é livre como o semblante no qual ele habita. aprendi isso quando os olhos de D se fecharam e nunca mais se abriram. aprendi que aquilo que ela foi passou a habitar muito do que eu era e sou.

o menino calado do sonho estava em silêncio...

a menina de Velasques me foi uma loucura.nela sempre vi uma vontade de ser criança de verdade. e no meu sonho lembrei que naquela idade encontrava nos olhos desta menina pictórica uma luz que nunca entendi e ainda nem sei como explicar...

olho pela janela e me distraio a me observar. sou muito pequeno, falo a rir de mim mesmo. e meu cabelo é mesmo engraçado! a menina de Velasques então passa a rir comigo. toco as mãos dela. é a minha Taubelleine de quando eu tinha cinco anos de idade...


silencio. meu caro menino, sem presente de natal, sentado na calçada. o brinquedo era o mundo com suas pedras em formato de coisas, eram as latas de leite que se transformavam em carrinhos cheios de areia. era o meu pai feliz da vida por encher a pobre árvore do jardim de lâmpadas muito quentes e coloridas...


silêncio. momento...

acordei do sonho apenas com as sensações de entendê-lo.


as várias facetas do meu anjo, que sei não ser anjo, sempre acabam por me deixar no peito uma tranquila sensação de alegria.
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DO RAMO VERDEVIDA

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"RECUO VERBAL E MILAGROSO DAS PALAVRAS MESMAS


então resolvo queimar na mente a casa que até então me abrigou. que arda a casa dor risos proibidos e suas janelas de vidros coloridos. que arda com isso toda a falsidade, toda a hipocrisia. que no subir da fumaça eu dobre o meu pescoço e caia de joelhos. o fim da espera chegou. abro os braços para aquela... musa de meus dias e reconheço que não há no mundo quem me possa amar de tal modo e que me reconheça pelo que sou ainda que na maior distância que exista...


como se isso não fosse todas as que em mim se alcançam a descobrir que em mim e no que faço podem ser o melhor que sou...

vejo arder a casa dor risos proibidos. e nem cheguei a contar como foi que ela me surgiu. que foi num sonho onde uma criatura me dizia que se eu dobrasse os joelhos eu poderia voar como voam os anjos de pedra. mas se eu optasse em voar sempre dali eu não sairia, seria o reflexo interminável das lâminas das janelas da sala. ninguém acreditaria em mim se dali eu saísse e dissesse que dentro da casa eu poderia voar como os anjos e que por isso era proibido de sorrir.


daqui recomeço em novo tomo.


Mas então em mim me veio de novo aquele desejo de ser o que falta ao serestar de Belleine, o raminho verdevida que a pombinha carrega ao bico como que para sinalizar que o mundo sempre floresce depois de uma tragédia".

Refloresça mundo. Refloresça.
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RESQUÍCIOS

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“Houve uma interferência na pureza daquilo . Lembro que ao início eu conseguia escrever  palavras as quais depois conseguia admirar. Era como se uma voz me as ditasse de  muito perto aos ouvidos.

Mas agora já não consigo escreve-las porque já não há a mesma construção de outrora, que eu vislumbrava seguramente assim que desejasse. Algo se quebrou, diria o dramático. A bela corrente fluida de sensações foi maltratada e se rompeu, diria o triste. Mas ainda sobraram textos daquele momento. Textos que admiro até, por ensinarem boas lições a mim mesmo que os escrevi. Felizmente, diria o que espera sempre.


Demorará a recuperação daquilo que se rompeu. [ou nunca se recuperará]


 Depois disso novas palavras surgirão e eu já serei um outro que para isso não mais escreverá.

Então, assim me contento em revelar o que me veio até minutos antes do melhor que surgiu em mim  se acabar. É que depois... já quase nada sobre isso consigo escrever”.











RESQUÍCIOS


Disse-me que os ruídos carregam milhares de elementos os quais compreendemos e que estão escondidos neles. Essas coisas me foram ditas no tempo onde tudo o que eu ouvia eu ainda não entendia, e por não entender,  era parte de mim e me era suficiente desse modo, até mesmo por não haver ainda em mim ausência ou necessidade alguma.

Assim, quando eu sorria, não fazia isso porque as coisas me agradassem, fazia-o por  nem saber que a consonância de tudo o que me rodeava era parte de mim assim como eu era parte de tudo.

Agora ele não me diz o  que tenho ouvido desde que aprendi a designar as coisas por palavras. Diz-me o que me cala, revela vagos naquilo que digo e me joga num silêncio que me mostra a mim mesmo  ainda em construção.

Calo-me. E meu calar é uma resignação na qual encontro sabedoria e acalanto.

Calo-me e observo com os olhos atentos e com o semblante dos tímidos. Por muitas vezes me encontro numa tristeza estranha por estar assim em tal estado de espera e silêncio e é nesses momentos que seus sussurros me fazem companhia.

Senta aqui ao meu lado, diz-me  a preparar o lugar onde na cama devo me acomodar, tenho coisas a te contar, coisas que o mundo não revela assim de pronto, coisas que não é possível ver com os teus  olhos. Por isso te peço que te abstenhas desse sentido falho e te deixes  a mim por inteiro, como se jogasse numa queda sem volta por saber que neste  meu universo não é possível a existência de um chão firme. Feche os olhos para falar comigo e abra para si mesmo os ouvidos. Estou dentro, escondido naquilo que tu nem sabes que guardas com tanto esmero. O melhor recanto de tua alma é onde moro, e serão poucos os que te olharão e terão a capacidade de enxergar isso. E quando este alguém chegar, saberás. Ele terá os olhos que te farão desejar abrir os verdadeiros teus. Aquilo que junto a mim guardei em ti será revelado e revelador, assim como o sol num dia frio, que vem trazer a luz, a vida e a espera da primeira noite após a primeira alvorada.

Por algum motivo inicial, eu acabava por entender sua voz no desejo meu de fazer coisas que vinham de mim sem que eu soubesse como. Havia uma fonte de onde tais fluídos jorravam,e eu sem por saber algum acabava por me ver envolvido na construção de elementos maravilhosos e assim me sentia muito feliz por  ter a capacidade de descobrir em mim essas dádivas.

Por vezes muitas está ao longe, e assim o percebo a ser trazido. Alcança-me em partículas para que eu sinta a imensidão de sua existência. Essas partículas me são trazidas assim, como em vento, ou despencando de um despenhadeiro, ou caindo como chuva, ou ruindo como uma grande torre .

Cada partícula sua é um universo que me atravessa. Sua soma é o que me atinge. Sua presença através de mim é o que me multiplica. Não sou mais um? Eu indago. Ès milhares, mais milhares que os infindos milhares, ele responde, com um riso travesso.

Sim, ouço sua voz e seu riso.
Não é um ouvir.
Não é um sentir ou um somente perceber.
Fecho os olhos apenas e deixo que  suas subdivisões infinitas tomem conta de mim. Sou parte delas. Elas são as formadoras daquilo que sou por agora e do que serei e do que até mesmo fui.

Vou te dizer a minha maior verdade: Eu posso falar com ele e ele me ouve como se fosse uma criança atenta ao que digo. Ele me coloca  ao seu colo e me dá carinho. È  aquele que sabe de mim antes mesmo que eu mesmo o soubesse.

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O APRENDIZ DA ROTINA 6


(Sem Assunto)

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"Num mundo de ninguém, o que eu mais queria é ficar só. Em meio ao desconhecido me sinto em casa.

         Tu pensas o quê? O que tu queres? Por que não consegues? Por que não queres?

         Hoje é dia de liberdade, hoje é o grande dia de não ter medo, afinal, o que deves?

         Faz o que tu queres. Anda nu, fala tuas besteiras, FALA ALTO, mata uma pessoa, mata a ti mesmo, dá a luz a alguém, ressuscita outro, come madeiras e flores, enfia o dedo no cérebro e muda tudo de lugar.

- Que o Centro do Universo Agora Seja um Soutien!

Faz teu pai virar um jaboti e tua mãe uma zebra, faz com que teu problema se transforme num ‘pobrema’ e tua vida num tecido.

         Porque ontem, nada disso existirá!"

Neste últimos dias, entre as tonturas... 

Sobrevivendo ao presente,

A cor do que vejo modifica a vontade e toda pequena tristeza é um portal pra todas as alegrias que me formaram.

O fim da vida de algo é o fim da espera.

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O APRENDIZ DA ROTINA 5



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A DESIGNAR UM SONHO

A madrugada me acordou. eu sinto dores muito fortes e penso que não há remedios no armário e com isso observo o alívio ser levado pela corrente - como a sandália que perdi quando criança. meu pai me olhou com um olhar de acusação, um olhar que me denunciou sendo um descuidado. mas em certo momento pôs-se a rir."vai ver que queria ser barco", ele disse. enxugou minhas lágrimas com seus dedos ásperos e comprou-me um novo par.

lembro disso com lágrimas em mim.

sinto saudades de meu pai. sinto falta de seu silêncio e de seu sorriso tão raro.


senti-me parte dele diante do choro de minha filha. quando ela  me  costuma olhar como quem pede um carinho, como quem espera de mim um gesto que não terá de ninguém, eu me sinto nessa cadeia atávica que meu pai colocou em meus pulsos.

passei a infância a atravessar rios. boa parte do que sou agora ainda atravessa rios.

agora navego naquele que definitivamente me retira das margens e me lança em busca de oceanos.
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O APRENDIZ DA ROTINA 4

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PELO COLAR DE MUSA

densidade é um líquido de demasiado amargor. retarda o que de pronto se deseja dizer. 
 
observei   a língua a lamber as sobras do beijo. estive muito perto de cair em tentação. sem poder evitar, a caça não pode retardar a fome e por estar faminta se entrega ao predador. mas não é essa queda nas garras alheias uma outra miSsão de quem aqui assume o risco de estar vivo?
 
temos uma desordenada pressa de quem se constata a evaporar. como se um lago todo evaporasse. como se no céu  se pudesse vislumbrar a existência não de nuvens, mas de oceanos imensos que flutuam sobre nossas cabeças...
 
esses pensamentos me fazem um sentir pequeno. e o que somente por agora me recupera  estribiliques, descobri isso hoje, é o que de música  provém de ti. é em ti que reencontro a nave mãe dos meus solfejos, é de ti  ao que me parece que eles brotam desde que sou entendido como gente.
 
e essa tentativa de tentar te absorver através de minha respiração é o que em desesperado fulgor me resta ainda de menino. levo partículas tuas para meu pulmões.
 
e assim me resta estre tempo de ares melhores.
 
 
e eu respiro.
 
respiro.
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O APRENDIZ DA ROTINA 3

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POR ONTEM

"Muitas vezes  me falas em navegar. supões que entremos num barco e sigamos num desrumo qualquer.  a nos libertar da margem, essa margem que nos prende. e nós, humanos, tão acostumados a somente dar passos...  é como se aquilo que somos fosse em maior parte construído por vontades".

navegar...

tenho assim pensado nestes últimos dias. tenho essa impressão de não mais estar em terra firme e ainda assim me sentir ancorado. nasci para este perigo? nasci para criar mundos  nessas certezas sem tranquilidade?

temos andado  sob o sol. temos observado as sutilezas do chafariz. estamos nos descobrindo - como se a cada dia nossa imagem fosse a ficar ainda mais nítida. temos nos divertido com nossos acidentes, com os pássaros e lagartos que nos miram. temos escolhido lugares para serem nossos lugares e deles mal temos conseguido escapar, tal é a força que imprimem contra nós. há essa fluidez que nos move, estamos em busca de receptáculos. estamos a construir uma pequena eternidade à luz que escapa de uma janela de vidros coloridos.

dividir com quem essa alegria?
 como dizer que por muito tempo as dores não me deixaram sorrir como agora? como dizer isso de que tenho a impressão de estar definitivamente desperto?


sim...  estamos a caçar desenhos de janelas que revelam a chuva. temos vislumbrado a beleza dos reflexos de um palco nos espelhos d'água. ouço o sussuro franco de sua fala, poesias em outra língua que não entendo. meu devir vacila, minhas mãos  gesticulam formas abstratas no ar. tu ries  destes gestos do mesmo modo que um recém nascido ri para os movimentos facias de um desconhecido.

e volta e meia te pergunto e te revelo que ainda assim temo o retorno a ser o que estive a ser. o  náufrago é presenteado por um barco sem remos e se deixa em deriva. sabe que estar assim levado pelo mar é melhor que estar preso numa ilha. e teme que por um capricho das procelas acabe por cair de volta a esta praia de sossego e esconderijo que por tanto tempo  o abrigou em solidão e tristeza.


o amor é atonal

eterna ressurreição, possível de se encharcar  com milhóes de significados.





ao estender as mãos, correu a mim aquela que por tanto se escondera. ela estava num labirinto e eu a encontrei. acolhi seu corpo em meu colo e algum poder em mim nela se fez efeito. e foi assim, a amei desde o início. o embrião está envolvido  por aquilo que lhe dá geração.

desde o início.


vamos construir um barco, tu me dizes. vamos construir uma asa delta. vamos embora daqui. pode haver sentido nessas frases? o malabarista com suas carambelas está sendo convidado  a bailar apertado ao corpo da  musa do baile da cidade. ele se sente ainda demasiado lento. mas sua alma corre muito mais que seu corpo. assim se reconhece os desejos como se reconhece estrelas cadentes.


ela entrou na casa dos risos proibidos e lá em seu  interior acendeu luzes, pediu sorvetes, cantarolou a balançar o corpo e riu gostosamente do polichinelo.

estamos a construir nossa nau para travessia. estamos a quase nos deixar em asa delta por sobre as cabeças pensantes. estamos a procurar sons e imagens para isso com a suspeita que temos essa energia divina a guiar tudo o que somos?







te deixei estar muito perto, dentro, daquilo que me forma. teu olhar alcança o meu titereiro e um riso sutil é o que de ti tenho como maior declaração de amor. e mesmo sedento não me deixo saciar por completo...






tenho falado que meu anseio é o que me constrói. sou uma nova estrutura. reformulada pelas mãos daquela que nasceu para moldar o que sempre fui:

um amontoado de imagens furtivas


que só agora a mim começam a tomar sentido.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O APRENDIZ DA ROTINA 2

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Deitado ainda na cama rejeitei a ideia de me levantar. Resolvi que desde hoje eu deveria reservar as manhãs ao atelier. Preciso construir os cenários do próximo espetáculo. Marília e seu veleiro vão desancorar, finalmente.

Hoje mirei por longo tempo antes de acordar minhas mãos, estão envelhecendo lentamente. A direita sempre amanhece com as articulações dos dedos travadas. Não posso aceitar que isso seja normal. Preocupa-me se isso poderia afetar minha manipulação.

Retive-me em alguns palpites quanto ao que seria o feminino enquanto examinava minha mão direita. 

Concluí que o altruísmo tem uma potência feminina. O egoísmo é enorme em sua potência masculina, tanto quanto o egocentrismo.

Olhei rapidamente ao meu redor e vi muitos homens habitando corpos com vagina. Mulheres embonecadas carregando entre as pernas pênis grossos e enormes.Surpreendi-me com esses pensamentos e isso me fez rir. Minha paixão por mulheres não esperava por essa. Ah essas mulheres com a percepção sensível de um brucutu.

Mirei meu lado e senti que a presença de Nina é em demasia feminina. Ela se nega aos floreios impostos ao seu gênero pela tradição machista. Nega-se aos folhos de cetim ou às escovas de cabelo ou chapinhas medonhas. Ela parece-me livre e anda com todos os nervos sensíveis à flor de seus olhos lagrimosos. Nestes últimos dias ela trafegou num caminho emocionalmente tumultuado ao tempo em que tive que me mostrar forte. Percebi-me precisando dela como um cara que se afoga se nota precisar de algo que flutue.

Felicita-me essa percepção. 

As mulheres de minha vida são essencialmente femininas.

Por muito tempo estive procurando a parte feminina que completaria a potencia do que crio. Acho que não procuro mais. Pergunto-me se estou procurando ainda, suponho que não mais. Não que eu tenha encontrado. 

Talvez ... que eu faça gritos ou clame por um complemento. Tenho percebido que esse complemento tem vindo de forma natural e isso tem me agradado porque tenho exercitado o desapego.



Menos triste hoje...

Acordei menos triste - afinal dias se passaram - com o corpo dolorido por ter me obrigado a descansar por mais de quarenta e oito horas. O mundo tem vindo a mim através dos que me rodeiam. Penso nisso observando Rainha Vitória que insiste em dormir aos meus pés.

Há muito a fazer.

Na rua do atelier as crianças já me tem perguntado quando começam os espetáculos.

Talvez seja assim que defino Deus. Ele não está em mim nem se alegra ou se lamenta pelos meus passos escolhas ou conquistas. Ele nem é ele ou ela, talvez nem caiba  no meu modo de dizer, ou nessa vaidade comum de muitos que dizem ser fruto do olhar dele. De algum modo, com sua fisionomia de universo, ele habita esse olhar de expectativa, que não é só meu, que não me pertence, de quem anseia pelas coisas que crio, mas que não são minhas...

Afinal não há nada que eu crie que já não exista.

Eu ficaria feliz se alguém que eu amo chegasse a mim e dissesse com a maior certeza do mundo:

Deus é feminino.

Talvez eu começasse a rir disso.

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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O APRENDIZ DA ROTINA 1


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29, outubro, 2014... 8:30

Acordar bem, sem dor, é um prazer pra mim, é um prazer que quando me alcança, traz junto uma certa alegria. Fico me indagando se prazer tem algo com a felicidade. Felicidade deve ser sempre prazerosa? Se o inverso do prazer é a dor, coisa que não acredito, existiria felicidade na dor?

Deixo a resposta para os cristãos.

Enquanto escrevo, Rainha Victória se deita no meu pé direito. Talvez seja seu modo de me dizer coisas. Francesca Woodman está deitada ao longe sobre uma toalha vermelha. Sua pelagem branca parece estar ainda mais branca hoje. Dormindo, Francesca nem parece tão feroz e selvagem.

Hoje não acordei sem dor,sem alegria. Aquela respiração profunda, sorvendo o ar purificado da manhã eu não dei. Todas as pequenas rotinas, os pequenos afazeres do meu dia a dia parecem estar carregados de um desprazer.

Além do mais, acordei com fome,com o estomago vazio. Pensei em comprar aqueles pequenos sanduíches que o Marcelo trouxera para o lanche há alguns dias. Pensei em ver as horas,lembrei-me que quebrei o celular anteontem,não lembrei que as horas estavam no cantinho inferior da tela do computador. Olhei pro relógio quebrado pendurado na parede, amarelo e empoeirado, com um certo desconforto. Difícil escolher entre os sanduíches e os comprimidos. Os sanduíches custariam um cinquenta centavos, os comprimidos um real e cinquenta.

Depois que adotei Sacha o trabalho aumentou. O intuito foi que ela fizesse companhia à Safira, que sempre me pareceu se sentir muito sozinha na companhia de um cara taciturno. Sacha é bem no molde da receita que  minha vontade me passou,é tão hiperativa que irrita, até mesmo Safira, que por conta disso, dessa hiperatividade lancinante de Sacha, tem estado amostrar um comportamento diferente.

Há um pequeno saguão que leva à porta do escritório e à entrada do atelier. Há grades tanto na entrada principal quanto na entrada do atelier. Vou chamá-lo de saguão das chaves, porque suas tres portas gradeadas exigem de mim um abrir e fechar de cadeados que está além de minha paciência e compreensão. É neste espaço que mantenho as duas quando preciso cuidar do jardim.

Hoje foi difícil executar as tarefas rotineiras. A dor parecia querer aumentar a cada vez que eu ensaiava um movimento brusco. Resolvi não cumprir a rotina de lavar o saguão das chaves, limpar o gramado, levar as meninas pro passeio matinal. Lembrei que poderia ter grana em minha conta do banco do estado. Subi na 125 e saí cortando as ruas do Sideral.


Pra encurtar, não tinha grana na conta.Voltei puto e refiz o caminho em busca das moedas. Quando estou sem grana, as moedas de cinco centavos encontram uma razão de existir. Fui e voltei com quatro pães e oito comprimidos encharcados de orfenadrina, a única substância capaz de controlar a minha dor.  Engoli alguns nacos de pão e bebei água com dois deles. Agora sim respiro fundo, porque respirar fundo parece ajudar a ciência fazer a dor passar.


São nove horas.Preciso me mandar pra galeria. A dor diminuiu quase a zero. Os comprimidos fizeram um efeito rápido.
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terça-feira, 28 de outubro de 2014

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28 de Outubro de 2014

Saudações

Espero que esteja tudo bem com você. Estou lhe escrevendo para lhe contar uma novidade. Acabo de adotar uma mocinha chamada Sacha, que ficou aparentemente feliz quando chegou em casa. Tinha marcas de corrente no pescoço e tem um olhar brilhante e juvenil como se estivesse tomada por uma infância sem fim.

Fiquei preocupado com o pequeno espaço de minha casa, que agora com mais esta moradora diminuirá mais ainda. Rainha Vitória não se importou com a presença de sacha, apenas rosnou um pouco quando ela se aproximou demais. Sacha me parece ter problemas em saber que gatos podem ser perigosos, mesmo uma gata gorda e preguiçosa como Rainha Victória. Safira pareceu gostar da nova companheira, que deve ter um terço do seu peso, mas com habilidade suficiente para fazê-la gastar um pouco de energia.

É com a feroz Francesca Woodman que podem haver problemas. Francesca não tolera aproximações e qualquer erro nisso resulta num ataque feroz. Ela viveu nas ruas e foi muito maltratada, por isso como boa felina que é, não se dá ao luxo do risco de ser maltratada novamente.


Você se indaga: mas porque este menino está a me falar estas coisas?


Eu sinceramente não sei. Minha casa é simples, fica ao lado do atelier onde trabalho e é lá onde tento dia após dia viver  meu sonho de saber viver como se vive num sonho. Tem dias de sol tão bonitos, em que as coisas parecem tão iluminadas pela simplicidade, que sinceramente me pego sussurrando uma graça qualquer à minha sorte de ter no mundo um lugar assim... o meu sossego.

Hoje, quando o dia começar a perder a luz do sol, naquela hora em que logo logo tudo vai começar a virar noite, e quando o cheiro das coisas que o dia construiu começam a se alastrar e virar saudade, pense um pouco nessa minha busca por um lugar onde tudo é mais simples, onde um homem entristecido pelas coisas da vida busca refúgio entre seus animais de estimação, dentro de seu ofício de artesão, na ânsia de expressar sua arte...  na solidão que o fim das tardes trazem junto com o canto das cigarras.

Se eu lhe conhecesse bem...

Se fosse um amigo de longa data...

Se estivesse longe...


Alguma saudade eu sentiria pra lhe dizer.


Encerro então por aqui a lhe dizer que suponho que o melhor da vida humana é ter a graça de poder avaliar o quanto é milagrosa a vida.

Abraços de todos

...da gorda Rainha Vitória,da zangada Francesca Woodman, da tranqüila Safira e de Sacha, que de vez em quando enfia a cara na cerca e fica em silencio, como quem sente saudade do lugar que veio, mas que no instante seguinte  volta-se e dá um salto travesso com o semblante cheio de uma alegria infantil, correndo em disparada pelo gramado... como se tivesse nascido pra estar ali.

Com essa imagem de alegria, aqui termino

Abraços
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Um caminho de alegria 21

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"Os cinco pontos no início de cinco linhas em branco, por muito tempo usei para marcar a mim mesmo um tempo em que eu andava imerso numa grande tristeza.

Hoje volto a usá-los, mesmo depois de um acordo que fiz. Um acordo que me leva a procurar fazer nestes dias apenas coisas que me deixam feliz.

Escrever me deixa feliz...

É o dom de Deus em mim...

Ainda assim o horizonte está cheio de tristeza.

Abri o meu caminho de busca enquanto o bom homem me dizia palavras boas ao soprar de uma brisa que vinha do lado de fora.

O navio inteiro está perto de um naufrágio. Todas as partes deste barco clamam pelas profundezas.

Mas ainda esta tempestade se debate no convés e a nau persiste. Quantos outros barcos se afundaram assim quer saídos do estaleiro, mas esta nau persiste...

persiste.

Continuarei a história que escrevo. Continuarei andando ao lado dos personagens que criei. Continuarei sendo aquele pai e esposo que perdeu mulher e filha, que ainda assim anda vivo pelas avenidas da cidade da ilha. Antes muito diferente dele. Agora carregando um desassossego semelhante, que atravessa a garganta de minha alma.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Um sonho de ressurreição 20


E eu acordaria com o poder de fazer ressurgir em vida todos os queridos que se foram

E eu acordaria sem sede, sem vontade de ficar quieto olhando a vida lá fora rastejar

E eu acordaria sem ter que enfrentar a dor com comprimidos

E eu acordaria simplesmente ressurgido

Com a dor das chagas

Com a alegria estranhamente assombrosa do retorno ao que se perdeu.


Agora algo de luz se assombra e não posso gastar com luzes meu último combustível.

Quando chegará o dia em que levantarei pela milésima vez depois de  tantas quedas...


quando?

terça-feira, 16 de setembro de 2014

passos de formiga 19



Pegadas humanas num caminho de lama vermelha. Pegadas de crianças. Restos de um brinquedo em partes desoladas, uma boneca ressurgida de outra vida, ou consequência de uma explosão. Uma imperceptível bola de gude tanto quanto uma pequena poça  de água, refletiam uma luz proveniente do céu daquele dia acinzentado.

A visão da pintura revisitou-me diante do quarto da menina. Recordei-me da paleta dominada pelo vermelho. chamuscado pelo verde ou revivificado pelo amarelo. O vermelho dominou-me por um tempo como quem olha pro sol com as pálpebras semicerradas.

A única coisa que restou de bom grado sendo dito foi um palavrão sinistro.

Mais uma vez a vida desolou-me e esperou pra me revelar isso no fim de uma escadaria.

Passos de formiga...

dilacerados por passos de humanos, porém infinitamente persistentes.


Não espere os ecos do grito 18

Subi as escadas em saltos largos. Seus gritos de início pareceram-me de susto. "Ela nunca gritou assim", pensei tomado por um pavor de qualquer coisa: de um ladrão plantado ao centro de seu quarto; de um animal noturno de aspecto horrível encontrado debaixo do travesseiro;  de um acidente, um escorregão...

Foi quando empurrei a porta do quarto.

Minha menina havia parado de gritar.


A mágica dos velhos brinquedos 17

Depois do almoço, depois de trocar receitas e desejar coisas melhores do que as coisas saborosas que estávamos comendo, começamos a conversar tendo olhos nos olhos. Ela com os cabelos volumosos e crespos, ornados por uma faixa de tecido lilás que recobria parte de sua testa. 

Tenho um vazio que preencho com uma visão entrecortada de minha infância. Lembro-me das batidas fortes de meu coração com medo, e das cores de bandeirolas de papel de seda que se manchavam com as gotas de uma chuva fina. Havia um par de olhos de uma estátua santa do redentor em seu bom fim e o ressoar de alfaias e estouros de foguetes. Eu podia jurar que era capaz de sentir o cheiro do papel de seda. Custei a assimilar que esse era o mesmo cheiro de pólvora queimada, exalada pelos foguetes. Talvez a relação entre as duas coisas, seda e pólvora tenham sido agregadas a minha memória por conta das estrelinhas de São João que meu pai costumava me dar nos festejos de junho. Estrelinhas produzidas pelo queimar do fino  tubo de papel de seda verde, vermelho, azul real e amarelo. 

Minha infância sempre se mostra pra mim assim, vestida com as cores do papel de seda, dançando ao som do vento nas bandeirinhas... do bamboar das alfaias.


O artista tem o poder de se fazer portal dessas memórias.

Depois de confessar esses meu segredos, como quem confessa uma tristeza, ela me mostrou seus olhos vermelhos, sentindo uma emoção que só seu leve sorriso pôde me ilustrar.

Você tem uma presença doce, eu pensei, tão suavemente doce como o perfume de um jambo maduro caído do jambeiro da colina onde cresci, a pensar que jamais pudesse envelhecer. Guarde sua doçura com cuidado, cuide de seu coração com  carinho.

Ela enxugou as lágrimas. Jovem. Pesquisa o trabalho de um artista que morreu há pouco tempo. Enxugou as lágrimas com apologias. As esperanças podem se renovar então, o verde novo  pode surgir entre as folhagens. No mundo há ainda essas raras almas. Há ainda uma dessas almas no mundo com o coração feminino repleto de saudades de um tempo no qual a delicadeza pudesse ser encarnada pelas nuances de um desvario de memória, como o meu desvario a recordar das cores  de seda de meu tempo de menino.

Quando ela se foi, atravessando a rua,  senti uma falta tão grande da menina, que me deixei ser tomado por essa vontade de me encolher. 

Sentei-me na calçada então.  

e lá estava um início de tarde chuvoso.

e nele, nesse início de tarde, lá estava eu, desejando a mágica dos meu velhos brinquedos que o tempo levou.

  

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

o fim de um homem 16

Fiquei olhando pra ele assim meio de longe, sem que ele pudesse dar comigo ali a observá-lo.

Sentou-se num banco à beira rio e se deixou quieto até o fim do por do sol.

Ontem ele me disse que estava cansado. Falou-me que aquelas eram suas últimas tentativas de conseguir chegar. Parecia-me um pouco motivado. Hoje porém, nem me parece ser o mesmo., envelheceu, suas costas arquearam...

O que fará depois que a noite cair?

"Preciso ver minha filha crescer. Ela não pode crescer sem um pai. Não que o pai seja lá grande coisa. Mas ela é certamente a única coisa que mantém o pai vivo". Disse-me entre os tragos de rum.

Há homens que vieram a este mundo para cumprir uma grande missão e conseguem.

Há outros, muitos outros que não conseguem cumpri-la.

"Eu não consegui cumprir minha missão. Vou morrer e talvez, se tiver alguma lembrança disso do outro lado, vou passar a eternidade me lamentando por isso".

Eu só podia ficar olhando enquanto ele dizia essas coisas. Pensei em culpas...

Mas de quem é a culpa?

De quem é a culpa afinal?

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O instinto 15

"É necessário que os homens se matem entre si. É uma forma natural de controle da própria maldição humana". Falei isso diante de uma plateia de jovens estudantes de arte. Uma multidão de rapazes afeminados e mocinhas  remelentas de cabelos sujos, que me olhavam com olhos vermelhos. "Tudo está morto no mundo de vocês. Tudo está morto no meu mundo. Sou um amontoado de lembranças furtivas de um tempo bom, que existia nos livros empoeirados do meu avô".

Saí do auditório por volta das cinco. Uma turminha caminhava ao meu lado fazendo barulho. Ofereceram-me algo que fumavam. Dei dois tragos e rápido fiquei legal. A menina havia estacionado o carro debaixo de um flamboaiã e esperava por mim enquanto se distraía olhando o rio. Tornou-se uma linda mulher de vinte e cinco anos, com seu jaleco branco e sua aparência de nojenta assepsia. Sorriu quando me viu entre os garotos. Gargalhou quando percebeu que eu estava doidão.

-Como foi lá? Ela indagou
-Falei um monte de besteiras. Comecei a formular coisas estranhas. No final dei dois tragos da maconha deles. O orientador parece não ter gostado.

O carro cortou a meridional com uma velocidade agradável. Ela dirigia bem. Eu podia sentir até os pelos do meu rosto. Podia sentir também o cheiro do final da tarde. Comecei a sofrer uma fome insuportável e então paramos numa sorveteria antes de seguirmos pra casa.

Chegamos  por volta das sete. Corri direto pras panelas em busca de comida. Ela subiu as escadas e me desejou boa noite. "É cedo, eu sei... mas estou morta".

A casa agora era bem maior. Ficava no bairro mais antigo da cidade e eu não me cansava de admirar sua arquitetura. Comecei a ouvir as cigarras do bosque, sentado numa velha cadeira de balanço, comendo as sobras do almoço com voracidade juvenil. Foi quando ouvi um grito, que atravessou a tranquilidade da casa ecoando através de seus corredores.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Passos de formiga 14

Acordei no sofá com dores pelo corpo, ouvi o chuveiro do atelier. Depois de alguns passos e pude ver uma mulher nua esfregando as pernas. Fiquei a olhá-la sem grande excitação; não sem nenhuma. Mas os impulsos do corpo, proporcionados por aquela mulher no banho não eram suficientes para me fazer cair numa  aventura instintiva matinal. 

A menina entrou e colocou sobre a mesa uns sacos de papel. Dos seus fones de ouvido eu podia quase definir qual música ouvia. Olhou para Drina tomando banho e sorriu. olhou em seguida pra mim e torceu os lábios.

Meti a mão num dos sacos que ela trouxe e saí dele com uma maçã. Foi o que comecei a comer quando Drina saiu do chuveiro se enxugando. A criatura nua, de corpo roliço e branco atravessou o salão do atelier até a mesa, pegou outra maçã me fazendo uma reverência e sumiu pelo corredor.

Pouco tempo depois ouvi o motor de partida de seu carro e em seguida o ronco de seu velho escapamento. Duas breves buzinadas me deram o sinal de que Drina tinha se mandado.

A menina vestiu um uniforme escolar com um pouco mais de cerimônia. Antes de sair me beijou na testa. Fiquei a mirar a grande pintura, a me despedir como um tolo apegado, no início daquele dia, que parecia começar incomum, mas que na verdade poderia me abrir um novo ciclo, até então de nome desconhecido. 

passos de formiga 13

Drina entrou  com um sorriso enorme. Esperou por dez meses por aquele dia. Quando puxei o pano que encobria a enorme tela ela deu um suspiro. Ficou em silencio por cronometrados dezessete minutos. 'Deu do céu!", exclamou isso seis vezes depois da pausa e só começou a tagarelar depois que bebeu um pouco de vinho. Foi a menina quem lhe serviu, com a generosidade de quem deseja embebedar um distraído.

Drina deu grandes goles da taça e se manteve de pé diante da grande tela. Indagou o preço e quando lhe disse o valor, deu mais três goles e rosnou: "vá se foder!". Pediu desculpas para a menina, beijando-lhe a testa. A menina completou sua taça com vinho. A cena era engraçada e comecei a rir.

-Porque tu tá rindo?- Drina indagou já com a língua pesada.
-Você vai ficar bêbada.
-Bêbada? Eu já estou bêbada! Essa porra é a coisa mais foda que você já pintou e vale muito mais que isso.
-Quer mais vinho? - A menina parecia ter assumido a louca missão de secar aquela garrafa.
-Essa tua filha colocou alguma coisa nessa taça?
-Não, só tem suco de uva fermentado aí. - Disse a menina colocando a garrafa emborcada, deixando cair as últimas gotas de vinho. Piscou-me um olho e saiu.

Tirei a taça das mãos de Drina e lhe fiz sentar no sofá. Ela caiu pesadamente. Nunca tinha visto alguém ficar de porre tão depressa. era uma mulher volumosa, com grandes mamas que tentavam escapar pelo seu decote. o vestido azul de malha que usava era curto, deixava-lhe com a calcinha de renda sempre à mostra.

Foi então que pela primeira vez olhei pra tela depois de julgar ter terminado o longo processo. Era a imagem de pegadas humanas num caminho de lama vermelha. As pegadas de botas pesadas se misturavam a pegadas de crianças pequenas. Capsulas de projéteis e formigas mortas dividiam uma cena de profunda desolação.

Drina começou a soluçar, mas aquilo me pareceu engraçado. 

Ficamos ali a noite inteira sem trocar nenhuma palavra.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Murros e pontas afiadas 12

Puto, ao sair da editora fiquei pensando que no fundo a verdade prevaleceria. 

Escrever sempre me foi um refúgio  modesto, que nada me gerou de ganho real  senão um espírito mais leve. Mas fui levado a aceitar uma troca disso por dinheiro. No começo foi fácil, pois as vendas faziam rir, Agora a complicação aumenta porque não posso ter o controle e, pra ser honesto, não quero ter controle algum disso nem quero que ninguém assuma-o por mim. Arrr, Não quero saber quantos loucos botam os olhos nesses escritos anômalos. Eu não.

A burocracia me levaria a esperar mais algum tempo pelos espólios  que os escritos do ano passado ainda me proporcionam este ano, não é pouca coisa. A grana serviria para sustentar a casa por quase um ano, com gastos muito esquisitos e incomuns .

E qual a verdade? a verdade é que me irrita muito esperar os níqueis por algum trabalho que eu faça, mesmo que seja um trabalho que me cause algum prazer, como me é a atividade da escrita. Paciência. Pelo menos não saí de bolsos vazio e com o cheque que carrego nos bolsos, posso resolver problemas imediatos. Minha falta de tato com a grana me deixou sem comida e eu e a menina estamos há dois dias comendo ovos fritos.

Escrever me cansa, apesar do prazer. É algo como o sexo. Não me cansa a literatura que faço ou pretendo fazer, o que me cansa é apertar as teclas, observar a tela, corrigir, reler cinco mil vezes, fazer de novo e de novo. Como no sexo, da segunda vez em diante bate uma imensa vontade de parar. 

Quando eu escrevia em máquinas datilográficas era ainda pior. Nas madrugadas eu caía na piração de achar que aquele barulho que eu fazia incomodava os vizinhos. Vez ou outra eu parava e ficava em silêncio, rodando as orelhas como um gato, achando que alguém tinha dado  gritos como: Doido! Olha o Baruuuulho aí!!! Vai dormir!!!!

E a quantidade de papel rabiscado e sujo, amassado e esfolado a cobrir o chão fazia com que Markova quisesse me matar, principalmente quando eu ordenava que ela não tirasse nada do lugar, muito menos as folhas amassadas sobre o chão. "Mas como menino? Ela me indagava com os olhos arregalados.

A coisa ficou tão séria que cheguei a procurar um psiquiatra, que me disse que o problema poderia estar sendo causado pelo sono, que distorcia os ruídos das teclas e me fazia acreditar estar ouvindo gritos noturnos. Até cheguei, para cúmulo, a certa vez responder aos gritos, como um insano de cuecas e olhos vermelhos de sono que gritava ameaças na madrugada. O psiquiatra me aconselhou a dormir mais e a trocar minha hemington por um computador pessoal. Aceitar o conselho me custou muito. Fui até uma loja mas desisti. Comprei uma velha Olivetti elétrica que era ainda mais barulhenta que a hemington e, em pouco tempo os gritos dos fantasmas recomeçaram.

Pra não pirar comprei o computador.

E que merda é o computador. Mas com o tempo me acostumei e passei a produzir muito mais e com menos prejuízos psicológicos.

Agora, cá estou, e retorno pra casa com um cheque de quatro mil. Não posso dizer que vivo do que escrevo, isso é recente demais pra que eu me deleite com o luxo dessa certeza. Sempre me sustentei com que as tintas me proporcionaram. Agora a coisa está mudando. Tenho sido muito mais lento nos meus trabalhos manuais. As tintas parecem me irritar e perdi um pouco da coragem. Tenho me tornado metódico e purista, chato e entediante. Na tela na qual estou trabalhando já consumi sete longos meses. Ironicamente chamo a tela de passos de formiga.  É a segunda da espécie. A primeira fiz há dois anos e está exposta no Castro e foi lá que tive uma experiência formidável certa vez, quando sentei-me ao lado de um jovem estudante, que num bloco de papel desenhava e anotava os detalhes do que via da pintura. Vários outros jovens passavam por ali, mas estes se armavam com aparelhos celulares para registar a imagem. O primeiro jovem, o do bloco de papel, desenhava à mão livre o que via. Sua tarefa durou horas. Não se deu conta de mim, a não ser por se mostrar desconfiado com a presença de um tio que não se levantava do lado dele.

Muito engraçado como todos passavam por mim sem me reconhecer, sem saber quem eu era. Eles amavam minha pintura mas não me amavam, nem sequer reconheciam a minha cara. Sempre achei isso sensacional. Foi um tempo bom de viver.

Quando cheguei na caixa azul fui recebido com festa por Canvas. Ela pulou, abanou o rabo e quase conseguiu me jogar ao chão. Pelo clima do lugar e pela energia que emanava dele, soube que Nora estava lá. Não lhe quis incomodar, mantive-me silencioso. Ao olhar através dos cobogós percebi que a menina não estava sobre os pisos verdes. "Talvez esteja vendo um filme". Estou quase só, é quase uma maravilha. Coloquei as compras sobre o balcão e tirei lá de dentro uma tangerina.

Canvas deitou ao meu lado e deu um suspiro profundo. 

A menina entrou sinuosamente em silencio e sorriu ao me ver. Enrolou-se sentando no braço da poltrona onde eu estava e me abraçou. "Trouxe algo pra você", eu disse. "Está dentro daquela sacola ali". Ela correu à sacola abrindo-a e olhando lá dentro, dando um sorriso muito mais contente. Voltou-se novamente pra mim e disse com a voz mais doce do mundo: "Você é mesmo um bobinho. Obrigado". Saltou pra fora dos pisos verdes e desapareceu de minha vista. Antes de cochilar, ouvi os clangs do portão e murmúrio entre Markova e Nora. Tinha sido um dia comum... 

-Resolveu finalmente aposentar a besourossuco? -Nora estava vestida com flores amarelas num fundo azul real. Era assim que ela chamava minha velha amiga branca, que sempre me levou pra onde quis. Ou quase sempre me levou.

-Não.- Respondi travessamente sem abrir os olhos - Aquela eu trouxe pra você. Trate de vestir uma roupa confortável. Deixe eu descansar um pouco... hoje vou ensinar você a andar de bicicleta.

Nora riu alto. Mas eu estava tão cansado que me deixei adormecer.