quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O APRENDIZ DA ROTINA 2

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Deitado ainda na cama rejeitei a ideia de me levantar. Resolvi que desde hoje eu deveria reservar as manhãs ao atelier. Preciso construir os cenários do próximo espetáculo. Marília e seu veleiro vão desancorar, finalmente.

Hoje mirei por longo tempo antes de acordar minhas mãos, estão envelhecendo lentamente. A direita sempre amanhece com as articulações dos dedos travadas. Não posso aceitar que isso seja normal. Preocupa-me se isso poderia afetar minha manipulação.

Retive-me em alguns palpites quanto ao que seria o feminino enquanto examinava minha mão direita. 

Concluí que o altruísmo tem uma potência feminina. O egoísmo é enorme em sua potência masculina, tanto quanto o egocentrismo.

Olhei rapidamente ao meu redor e vi muitos homens habitando corpos com vagina. Mulheres embonecadas carregando entre as pernas pênis grossos e enormes.Surpreendi-me com esses pensamentos e isso me fez rir. Minha paixão por mulheres não esperava por essa. Ah essas mulheres com a percepção sensível de um brucutu.

Mirei meu lado e senti que a presença de Nina é em demasia feminina. Ela se nega aos floreios impostos ao seu gênero pela tradição machista. Nega-se aos folhos de cetim ou às escovas de cabelo ou chapinhas medonhas. Ela parece-me livre e anda com todos os nervos sensíveis à flor de seus olhos lagrimosos. Nestes últimos dias ela trafegou num caminho emocionalmente tumultuado ao tempo em que tive que me mostrar forte. Percebi-me precisando dela como um cara que se afoga se nota precisar de algo que flutue.

Felicita-me essa percepção. 

As mulheres de minha vida são essencialmente femininas.

Por muito tempo estive procurando a parte feminina que completaria a potencia do que crio. Acho que não procuro mais. Pergunto-me se estou procurando ainda, suponho que não mais. Não que eu tenha encontrado. 

Talvez ... que eu faça gritos ou clame por um complemento. Tenho percebido que esse complemento tem vindo de forma natural e isso tem me agradado porque tenho exercitado o desapego.



Menos triste hoje...

Acordei menos triste - afinal dias se passaram - com o corpo dolorido por ter me obrigado a descansar por mais de quarenta e oito horas. O mundo tem vindo a mim através dos que me rodeiam. Penso nisso observando Rainha Vitória que insiste em dormir aos meus pés.

Há muito a fazer.

Na rua do atelier as crianças já me tem perguntado quando começam os espetáculos.

Talvez seja assim que defino Deus. Ele não está em mim nem se alegra ou se lamenta pelos meus passos escolhas ou conquistas. Ele nem é ele ou ela, talvez nem caiba  no meu modo de dizer, ou nessa vaidade comum de muitos que dizem ser fruto do olhar dele. De algum modo, com sua fisionomia de universo, ele habita esse olhar de expectativa, que não é só meu, que não me pertence, de quem anseia pelas coisas que crio, mas que não são minhas...

Afinal não há nada que eu crie que já não exista.

Eu ficaria feliz se alguém que eu amo chegasse a mim e dissesse com a maior certeza do mundo:

Deus é feminino.

Talvez eu começasse a rir disso.

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