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Sempre vem a
mim a imagem daquele menino. Ele era pequeno, magro e branco. Andava descalço,
coberto por um manto verduri, cabelos longos comportados numa trança que lhe
descia às costas. Como todo verduri não
usava cor alguma; o algodão de suas roupas era cru e aparentemente confortável.
Parecia muito limpo, bem cuidado e sereno.
Era sabido que
se tratava do filho mais novo do mestre Vasco, um artesão que trabalhava em
madeira, e que tinha seu atelier muito bem recomendado na rua do Vigário, na
frente da ilha, diante das últimas terras que eram terra. Como todo verduri, o menino, que se chamava
Horácio, tinha uma grande habilidade em transformar coisas da natureza em
outras coisas. era como um mágico. Era também silencioso como deve ser um sábio; nada pronunciava que não fosse precioso, seu olhar era meigo e sorria
sempre para os que lhe olhavam fundo nos olhos. Seu olhar era capaz de curar o coração mais triste. Desde seus doze anos, durante
os festejos da primeira estação, entre os cânticos ederlezis, Horácio oferecia
ao mar a criação na qual se dedicara por todo o inverno. Nada ele dizia...
Muitos
se aglomeravam nas ruas da frente a observá-lo deixar que o mar levasse suas
oferendas.
O grande Deus
num de seus mandamentos, pelo que diziam os velhos sacerdotes, disse aos homens da ilha; “Não deverás ultrapassar a
vontade de vencer o mar, pois tudo o que há além da retina do horizonte te
trará a dor no fim”.
As oferendas de
Horácio cumpriam o desejo daquelas pessoas. Elas venciam o mandamento e ultrapassavam
as neblinas.
Certo dia me aproximei dele, já era um rapaz... ainda mantinha o
olhar sincero da criança e o sorriso pronto para clarear-lhe a face. Nada ele
me disse naquele instante. nada ele precisava dizer com verbos. Horácio me fazia pensar no meu estado de prisão. Todos nós nessa
ilha. Todos nós em desejos plenos de vencermos o mandamento; a neblina; o medo. todos nós, conformados em grilhões, buscando a sorte numa resignação possível.
Indaguei ao rapaz, numa das manhãs do festival, como se chamavam aquelas coisas que ele deixava que o mar levasse. Para o meu
espanto, ele me tomou pelas mãos e me levou à gávea. Lá ele então me respondeu.
“A isso que solto ao mar dou o nome de velejante. Veleiro. O vento o empurra,
as águas o fazem flutuar. Leva nossas indagações e nossos sonhos. não há nada em um veleiro que não tenha vindo na natureza, do criador"
Um dia algum de
nós poderá fazer parte de algo assim? Perguntei.
Mas para essa minha
segunda pergunta não obtive resposta. Horácio estava atento ao horizonte. Eu não
era nada comparado ao horizonte.
O desafiante de
Deus, era assim que o chamavam.
Horácio foi o
primeiro a deixar a terra que era terra. Dizem que se lançou ao mar furtivamente numa noite
escura, já que se lançar ao mar era proibido pelos sacerdotes do velho culto. Outros dizem que se fez uma grande despedida numa manhã de mar
cristalino, na qual a soltura de Horácio ao mar se tratava de um sacrifício.
Dizem que pra quem pudesse compreender seus gestos naquela manhã, entenderia-o
como o vencedor do mar; aquele que caminha sobre as águas e vai até o
horizonte, além das brumas, levando os sonhos de todas as criaturas da ilha. Nos poemas que ficaram dessa façanha diz-se que
Horácio saiu em busca do amor.
"O amor está além das tempestades...
entra as águas do céu e da terra mora o amor em estado líquido".
Até hoje em
dia, quando se avista ao longe o clarão de uma procela, faiscando por sobre as
águas, acredita-se que o jovem sábio está lá, entre os relâmpagos, flutuando
sobre as vagas, domando o terror do que é invencível.
Dizem que é ele que
acalma as águas para que flutuem tranquilos os novos velejantes.
“o amor está
além de todos os tumultos”...
Pela janela
desta casa de cura, vejo um jasmineiro. Vejo também a praça do horto, onde ao
centro há uma estátua. É um jovem sobre um barco. Ele está com as mãos abertas
e olha para o céu, como quem recebe nas palmas das mãos as gotas da chuva. Além
da estátua vejo o mar. Vejo também muitos veleiros e outros tipos de pequenos
barcos. Horácio, um verduri, nos ensinou que a liberdade, a imensidão da
liberdade, é a própria alma do criador. O criador habita em nós do mesmo modo que um velejante habita seu veleiro.
Nos tempos de João
N, o jovem do mar ainda não havia nascido. Era como se toda ilha fosse ocupada
por criaturas tristes, fugitivas da luz. Amedrontadas diante de um horizonte desconhecido.
“Todos nós carregamos o nosso messias".
"todos nós somos o casulo de um messias".
"somente uma vez na nossa vida, nasce em nós, o nosso messias".
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