sábado, 12 de janeiro de 2013

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Costuma-se dizer por aqui, nesta cidade insular, que foi preciso voltarmos a tempos primitivos, de angústia, carência extrema e revolta, para reaprendermos a sobreviver, para voltarmos a perceber que num mundo verdadeiramente humano, a dita civilização, com sua burocracia e consumo sem alma, nada vale, nada garante.

É claro que a ilha se recuperou. Mas o  tempo, depois daquilo tudo, se somado não chega a muito.

Nasci já num estado de volta a essa organização com a qual os meus avós se acostumaram. Mas outros, mais perto de minha condição, continuaram a entender que o modo humano primitivo de sobreviver também possuía sua dignidade. Cresci entendendo que minha vida, minha sobrevivência e o meu mundo, dependiam da força dos meus braços para defender a minha vida; dependiam da minha capacidade de entender o perigo e; da minha consciência no momento em que a morte me seria o melhor caminho. Tanto a morte de meu corpo, quanto a minha capacidade de matar alguém. Num mundo assim, se um homem não for capaz de matar, ele não sobrevive.

“A gente vive e por isso outros morrem”.

Aprendi isso desde cedo, num tempo em que eu fui um quadrúpede.

Ora, meu caro leitor do futuro, não pense que falo poeticamente ou em parábolas. Fui um quadrúpede até o ponto de não suportar mais. Depois de adquirir a capacidade de andar sobre duas pernas, não pude me conter, eu careci de vinganças, eu cumpri esse doce ritual até o ponto em que minha alma se mostrou a mim limpa, lavada com sangue.

Se me faltava dizer o motivo para este relato, agora nada me falta. Esta é simplesmente a história de um quadrúpede que se transformou em um bípede.

Ainda sem poesia, mas carecendo de um pouco mais de recursos extravagantes, digo que vim do inferno. Nasci da mistura de porra e cuspe do próprio mal.

Mas não devo me perder nessa tentação que é por agora falar de mim.

Em passos lentos vou contando a minha história.

Em passos lentos enquanto o fim da vida, moribunda, não me vem.
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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

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Sempre vem a mim a imagem daquele menino. Ele era pequeno, magro e branco. Andava descalço, coberto por um manto verduri, cabelos longos comportados numa trança que lhe descia às costas.  Como todo verduri não usava cor alguma; o algodão de suas roupas era cru e aparentemente confortável. Parecia muito limpo, bem cuidado e sereno.

Era sabido que se tratava do filho mais novo do mestre Vasco, um artesão que trabalhava em madeira, e que tinha seu atelier muito bem recomendado na rua do Vigário, na frente da ilha, diante das últimas terras que eram terra.  Como todo verduri, o menino, que se chamava Horácio, tinha uma grande habilidade em transformar coisas da natureza em outras coisas. era como um mágico. Era também silencioso como deve ser um sábio; nada pronunciava que não fosse precioso, seu olhar era meigo e sorria sempre para os que lhe olhavam fundo nos olhos. Seu olhar era capaz de curar o coração mais triste. Desde seus doze anos, durante os festejos da primeira estação, entre os cânticos ederlezis, Horácio oferecia ao mar a criação na qual se dedicara por todo o inverno. Nada ele dizia... 

Muitos se aglomeravam nas ruas da frente a observá-lo deixar que o mar levasse suas oferendas.

O grande Deus num de seus mandamentos, pelo que diziam os velhos sacerdotes, disse aos homens da ilha; “Não deverás ultrapassar a vontade de vencer o mar, pois tudo o que há além da retina do horizonte te trará a dor no fim”.

As oferendas de Horácio cumpriam o desejo daquelas pessoas. Elas venciam o mandamento e ultrapassavam as neblinas. 

Certo dia me aproximei dele, já era um rapaz... ainda mantinha o olhar sincero da criança e o sorriso pronto para clarear-lhe a face. Nada ele me disse naquele instante. nada ele precisava dizer com verbos.  Horácio me fazia pensar no meu estado de prisão. Todos nós nessa ilha. Todos nós em desejos plenos de vencermos o mandamento; a neblina; o medo. todos nós, conformados em grilhões, buscando a sorte numa resignação possível.

Indaguei ao rapaz, numa das manhãs do festival, como se chamavam aquelas coisas que ele deixava que o mar levasse. Para o meu espanto, ele me tomou pelas mãos e me levou à gávea. Lá ele então me respondeu. “A isso que solto ao mar dou o nome de velejante. Veleiro. O vento o empurra, as águas o fazem flutuar. Leva nossas indagações e nossos sonhos. não há nada em um veleiro que não tenha vindo na natureza, do criador"

Um dia algum de nós poderá fazer parte de algo assim? Perguntei.

Mas para essa minha segunda pergunta não obtive resposta. Horácio estava atento ao horizonte. Eu não era nada comparado ao horizonte.

O desafiante de Deus, era assim que o chamavam.

Horácio foi o primeiro a deixar a terra que era terra. Dizem que se lançou ao mar furtivamente numa noite escura, já que se lançar ao mar era proibido pelos sacerdotes do velho culto. Outros dizem que se fez uma grande despedida numa manhã de mar cristalino, na qual a soltura de Horácio ao mar se tratava de um sacrifício. 

Dizem que pra quem pudesse compreender seus gestos naquela manhã, entenderia-o como o vencedor do mar; aquele que caminha sobre as águas e vai até o horizonte, além das brumas, levando os sonhos de todas as criaturas da ilha. Nos poemas que ficaram dessa façanha diz-se que Horácio saiu em busca do amor. 

"O amor está além das tempestades...
entra as águas do céu e da terra mora o amor em estado líquido".

Até hoje em dia, quando se avista ao longe o clarão de uma procela, faiscando por sobre as águas, acredita-se que o jovem sábio está lá, entre os relâmpagos, flutuando sobre as vagas, domando o terror do que é invencível. 

Dizem que é ele que acalma as águas para que flutuem tranquilos os novos velejantes.

“o amor está além  de todos os tumultos”...

Pela janela desta casa de cura, vejo um jasmineiro. Vejo também a praça do horto, onde ao centro há uma estátua. É um jovem sobre um barco. Ele está com as mãos abertas e olha para o céu, como quem recebe nas palmas das mãos as gotas da chuva. Além da estátua vejo o mar. Vejo também muitos veleiros e outros tipos de pequenos barcos. Horácio, um verduri, nos ensinou que a liberdade, a imensidão da liberdade, é a própria alma do criador. O criador habita em nós do mesmo modo que um velejante habita seu veleiro. 

Nos tempos de João N, o jovem do mar ainda não havia nascido. Era como se toda ilha fosse ocupada por criaturas tristes, fugitivas da luz. Amedrontadas diante de um horizonte desconhecido.

“Todos nós carregamos o nosso messias".

"todos nós somos o  casulo de um messias".

"somente uma vez na nossa vida, nasce em nós, o nosso messias".

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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

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No bilhete havia um endereço e umas letras escritas de um semianalfabeto:

“O velho pede  encostado na parede da igreja nova”.

Bem lembro ter escrito no capítulo anterior que os olhos do menino João N estavam vermelhos. Porém, antes que se construam decifrações desnecessárias, é preciso dizer que tal sintoma não se deu pela notícia dita pela mãe.  João N era menino demais; porém, já se guardava dentro dele um coração rude, talhado para sobreviver nas ruas sem essa piedade costumeira nuns quantos. Seus olhos vermelhos estavam assim por conta do vento anterior à chuva, que soprou no areal do largo redondo espalhando por ali poeira e o cheiro dos jasmineiros remexidos. Ele tinha poucas lembranças do pai. Então não enxovalhemos esta narrativa com sentimentalismos extravagantes demais.

Minhas costas voltaram a doer. Pelo menos por esta noite não ouço as gemedeiras dos outros, está tranquilo aqui, com o cheiro do éter se dissipando em mim...


É incrível que eu possa até sentir o perfume dos jasmins do largo...

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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

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Quando ela soube  da sorte do pai de João N, no fundo de sua alma sentiu-se vingada. Uma vingança rastejante sim, e que não se realizara por suas mãos. Queria ela mesmo ter esmagado aquele verme. Lembrou-se do dia da fissura. Lembrou-se que teve que lamber a língua do próprio demônio por causa daquele homem. Por causa dele teve a certeza que toda bondade é inútil quando já se habita no inferno.

No começo se manteve apegada num cristo que foi tatuado no seu espírito desde a infância. Veio com essa história de dar a outra face. Mentiu para si mesma. Disse que perdoava.  Fraqueza? Covardia de assumir o ódio? Miséria?

Então lambeu os dentes, certa madrugada. E  resolveu por fim odiar aquele homem. E no ódio encontrou certa felicidade. Ao ponto de quase matá-lo sentiu prazer. Cumpriu por conta disso uma pequena sentença, sem arrependimento, pelo ferimento que causara nele. Jurou para si mesma que se o encontrasse de novo, frente a frente, mataria o desgraçado, não erraria os golpes; mataria com requintes de prazer em crueldade.

Certa vez, carregando no colo o filho João N, olhando para os anjos  de pedra da igreja em construção, cuspiu para o lado com os olhos brilhando de ódio de tudo aquilo.

“A única herança que o maldito me deixou foi a miséria”. homem em pura fraqueza de caráter; e a pouca força em ser homem que ele carregava. traidor traiçoeiro, pequeno. Um idiota com suas miseráveis vinganças, com sua moral  apodrecida revestida por um linho presunçoso. Ele e sua falsa fé, com seus surtos de bondade religiosa. Uma fé usada como um pingente vaidoso. Uma fé que é sempre  mais vaidade que verdade. Uma fé doente, num deus morto; um escudo para fracos e escravos que se contentam com esmolas pegajosas e prazeres que vêm de um lugar mais escuro que o breu. Ah aquele homem! Puto! A criatura mais odiosamente detestada, detestada com paixão. Aquele homem que um dia ela amou e escolheu para ser seu amigo; seu fiel cúmplice; o amor de sua vida; a ilusão degenerada por uma  realidade bem crua, bem cruel.

Ela sorriu. Gargalhou até, com o bilhete na mão. Olhou para o filho e ainda com o rosto exultante vociferou pausadamente:

“Que felicidade, meu pequeno. O verme que te cuspiu dentro de mim morreu. Entendeu? O teu pai morreu”

Os olhos do pequeno João N  se avermelharam. 
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