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Costuma-se dizer por aqui, nesta
cidade insular, que foi preciso voltarmos a tempos primitivos, de angústia,
carência extrema e revolta, para reaprendermos a sobreviver, para voltarmos a
perceber que num mundo verdadeiramente humano, a dita civilização, com sua
burocracia e consumo sem alma, nada vale, nada garante.
É claro que a ilha se recuperou. Mas
o tempo, depois daquilo tudo, se somado
não chega a muito.
Nasci já num estado de volta a
essa organização com a qual os meus avós se acostumaram. Mas outros, mais perto
de minha condição, continuaram a entender que o modo humano primitivo de
sobreviver também possuía sua dignidade. Cresci entendendo que minha vida,
minha sobrevivência e o meu mundo, dependiam da força dos meus braços para
defender a minha vida; dependiam da minha capacidade de entender o perigo e; da
minha consciência no momento em que a morte me seria o melhor caminho. Tanto a
morte de meu corpo, quanto a minha capacidade de matar alguém. Num mundo assim,
se um homem não for capaz de matar, ele não sobrevive.
“A gente vive e por isso outros morrem”.
Aprendi isso desde cedo, num
tempo em que eu fui um quadrúpede.
Ora, meu caro leitor do futuro,
não pense que falo poeticamente ou em parábolas. Fui um quadrúpede até o ponto
de não suportar mais. Depois de adquirir a capacidade de andar sobre duas
pernas, não pude me conter, eu careci de vinganças, eu cumpri esse doce ritual
até o ponto em que minha alma se mostrou a mim limpa, lavada com sangue.
Se me faltava dizer o motivo para
este relato, agora nada me falta. Esta é simplesmente a história de um
quadrúpede que se transformou em um bípede.
Ainda sem poesia, mas carecendo
de um pouco mais de recursos extravagantes, digo que vim do inferno. Nasci da
mistura de porra e cuspe do próprio mal.
Mas não devo me perder nessa
tentação que é por agora falar de mim.
Em passos lentos vou contando a
minha história.
Em passos lentos enquanto o fim
da vida, moribunda, não me vem.
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