segunda-feira, 29 de abril de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 14

. Pode parecer algo difícil de explicar. As idéias estão embaralhadas na minha cabeça. Mas hoje surgiu-me uma frase completa que resume toda minha suspeita: A música não existe.

É uma pareidolia.

A música não existe. Do dia pra noite a minha capacidade de ouvir desapareceu. Só ouço estruturas sonoras, organizadas em combinações variadas  e um tanto vazias. Estou surdo. A música perdeu o sentido?


Será que Bethoven realmente ficou surdo?


sábado, 6 de abril de 2024

Aperfeição e o impossível 12

O RECITAL 

Como me senti. Uma constatação. No meio de todo mundo ali... e ainda assim no meu mundo. Foi pra onde a audição me levou... pro meu mundo. Um lugar onde estou sozinho, mas sem solidão ou tristeza. Um terreno imaterial, obtuso, pra qual sempre vou levado por música.

Talvez eu consiga escrever sobre isso sem que minha mente esteja ainda imersa no que testemunhei. O que é bom, Gosto quando algo me leva a escrever. Escrever é a arte que mais amo.

Então se o que ouvi me fez sentir vontade de escrever, é porque me tocou, levou-me de volta a um caminho que de vez em quando abandono.

Não tenho ainda muito a falar sobre orquestras, ainda estou aprendendo a decifrar as sensações, entendendo ainda como as coesões podem dar certo no final, porque pela proximidade agora, tenho percebido que é um todo, que junta tudo, inclusive  a simpatia com o regente conta também, porque com o mínimo de sensibilidade é possível notar as nuances do que está sendo dito, embora a decifração nunca venha por inteiro porque as interfaces são muitas

De algum modo há a voz do compositor,  nas entrelinhas do tecido, todo seu entorno, sua biografia, sua poética, tudo está ali, mesmo que não se revele por inteiro. Mas há nisso em grande parte o espírito do intérprete. Talvez meu julgamento e sensações fiquem nublados porque conheço quem interpreta, já estivemos em paisagens comuns e isso afeta bem minha audição. Não afeta de um jeito ruim. Apenas afeta, algo que tem no cerne a transformação.  

Este momento atual de minha vida, agora, tem cara de epílogo, então... isso também afeta minha audição. Estou no tempo de me despedir e nessas horas, tudo que absorvo tem um gosto memorial, pra uma memória que aos poucos vai se desmaterializando.

As coisas belas pra mim, o são não porque carregam uma possível técnica perfeita. O que é belo me restabelece, me dá uma realidade mais leve e até desnecessária. Fala-me algo que não dá pra desmentir.

Por serem estes dias difíceis, nos quais estou andando em lugares que sempre quis evitar, talvez eu precisasse sentir o que senti hoje naquele recital. Eu no meu mundo, sozinho, ouvindo, sentindo a paz de estar ali por quase uma metade de hora. Sozinho. Pacificamente sozinho.


quarta-feira, 3 de abril de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 10

Vou dar um tempo de filosofia e vou fofocar um pouco, porque a fofoca é um tipo prazeroso e peculiar de ética.

Há inúmeras vantagens em ser um homem maduro, em muitas circunstâncias. Principalmente quando a paciência é um dos elementos fundamentais para o processo no qual se está envolvido. Mas, convenhamos aqui, tem muitas desvantagens, que pro nosso desagravo de velhos, são desvantagens facilmente superáveis, quando utilizamos a perspicácia que acumulamos com o passar do tempo.

Nina agora diria sua sapiente palavra, com um enorme ponto de exclamação ao final dela: Depende!

Verdade. O que não falta por aí é gente velha com total ausência de perspicácia.

Estávamos no final do corredor do segundo piso, o piso das cordas friccionadas, como diriam alguns. Eu, Hada, Lancelote e Paulo estávamos executando a escala de Sol maior. Em pianíssimo, mesmo com surdinas em todos os instrumentos, o estudo exaurido do caos, não soaria tão agoniante, como costumam soar os estudos de alunos pelos corredores. Estávamos já na quarta volta e os acordes que iam surgindo naturalmente no nosso exercício começavam a soar equilibrados, começava a parecer música. Pelo olhar surpreso de Hada, ela parecia nunca ter tido a experiência de soar daquela maneira em conjunto sem estar com os olhos fixos numa partitura. E estávamos assim, com certo grau de orgulho de finalmente poder entender a função do estudo de escalas, quando irrompeu de uma das salas o Gavroche, um rapazote carregando todos os hormônios da terra. Com o seu violino em mãos ele se aproximou de nós e, suspeito que querendo impressionar Hada, começou a tocar muito mal qualquer coisa de Vivaldi, sem surdina, com seu instrumento gritando desesperadamente, entre a parede e sua cadeira, num minúsculo espaço, desconfigurando completamente a coesão do nosso exercício em grupo. Hada parou de tocar e passou a olhá-lo com certo desprezo, com os olhos levemente arregalados. O olhar dela me encontrou e levemente balancei a cabeça  e tirei o meu violino do ombro. Não posso julgar o Gavroche. Na idade dele eu também andava lá com minhas peripécias e confesso que até há bem pouco tempo, eu ainda costumava me tufar como um pombo quando via uma mulher bonita. Ah, os jovens!

O grupo, que soara tão bem, começou a dispersar, deixando Gavrote sozinho. Mas ele não duvidou de si mesmo. Continuo a arranhar seu violino à guisa de um concerto em Lá menor, como se fosse o próprio Vivaldi ali naquele corredor. 


"Na década de oitenta esse garoto certamente levaria um tabefe no cangote", pensei.Mas logicamente o tempo passou e estamos noutros tempos. Foi então que aprendi uma lição, que veio escrita em torno de toda aquela cena de infanto-juvenil:


"Aqui a disciplina tomada como lei torna o caminho menos pesado e a compreensão de tudo o que é executado fica mais clara".


É a disciplina que faz o bom violinista. E isso precisa ser tomado como uma espécie de código de honra e conduta. Talvez nisso more o grande segredo desse instrumento. E isso não deve ser tomado com empáfia ou mesmo presunção. A disciplina se torna no estudo desse instrumento uma barreira protetora. Devo pensar sobre isso e entender o que isso significa.