domingo, 28 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 16

"Aceite esta última dança, disse-lhe com as mãos em busca e os olhos fechados"...

A velha senhora acordava muito cedo e sentada no leito rezava baixinho. Eu ouvia os sibilos de seus lábios, os esses chiados  e as bilabiais explosivas, que se defrontavam com a vibração quase felina da glote. sua lingua materna era a língua com a qual ela me ralhava. Mas era em português que me amava. Nas dificuldades noturnas, quando em febre eu me achava, ela, envolvida num cheiro de alho e andiroba, aproximava-se de mim num germânico sutil, carinhoso, e me ninava nominando-me konstantin. e quando me chamava assim, por um outro nome, era por querer, num ardil tão singelo, driblar as minhas dores de corpo e a insônia, para que não me encontrassem mais, seu niedreger Zerafin, o menino que saltou de suas entranhas num passado que nunca fui capaz de ver a face, por ela, descrita.

Depois das rezas ela se levantava e ia ao poço. a lenta paciência somava-se ao cuidado quase metabólico que tinha com tal tarefa. ela respeitava o poço, não deixava que o balde lhe ferisse as paredes, e nem se enchesse tanto vindo na subida a derramar da água que escolheu. De pouco em pouco abastecia as vasilhas da cozinha e as tinas do local de banho. catava  folhas de uriza e hortelã e as apertava para que liberassem na água  bom cheiro. Fazia assim com todas as outras porções que seriam usadas ao longo do dia nas ablações*. ela por fim se banhava e depois do banho, seus cabelos molhados, algumas folhas grudadas á pele, sua brancura  umedecida, e seu aspecto de extrema vitalidade preenchia a manhã.


e era assim que eu ao ouvir o som da colher nas paredes do bule, e o cheiro incendiante de café que exalava num triunfo a todos os outros odores matinais, era motivado a levantar dali, da cama que não mais me deveria ser útil e esperar que ela me servisse os pães amanteigados, trazidos pelo padeiro do Américo, arrumados na mesma cesta, sobre a mesma toalha de algodão florida, sobre a mesma mesa de cerejeira, na mesma sala de jantar onde o piso ainda mantinha o brilho da terebintina e a limpeza de um lar pequenoburguês dos idos de setenta.

"está melhor?"
ela me indagou. eu apenas sorri pra ela, e ela, cismo, entendeu o que meu sorriso queria dizer.


*visto que tudo o que no corpo se acumula em abrigo,passa do corpo a ser parte, extraída em banhos.

O VENTO

É como estar por muito tempo numa cela, numa agonia úmida  e ser bafejado pelo frescor de um vento outonal. É assim que me sinto quando de algum jeito, algo me relembra os movimentos e as palavras de kleine frau. tenho essas incertezas quanto a seu perfume, quanto ao som da voz, quanto a maciez dos toques... mas certezas inquebráveis eu tenho de sua existência.

isso habita na dimensão do indecifrável. nada careço das certezas, não as procuro como alimento essencial ao que sinto. sempre eu disse que neste universo subjuntivo, nada há de impossível. e sua melhor vida é aquela que o solitário cultiva, pequena flor delicada ao vento e amada pelo vento. É por amor à essa flor que tal brisa nunca morfa a uma tempestade. é por amor a essa flor que a tempestade abranda e se transforma em vento lento.

Mas nem tudo é eterno o que no bem se descansa. nos meus dias de lembrança a menina é o porto no qual me tranquilizo. e a saudade que sinto é a saudade mesma que nela transcorre, é o que me sussurra ao longe. no nunca, vai chegar o tempo em que direi a história do dia em que a encontrei de frente. diante de seus olhos eu nasci e denasci, morri e desmorri.

hoje é o dia do avesso.

dia em que a água cristalina encontra a sede.

é um dia que dedico à pequena eternidade, que mesmo sendo tão pequena, ainda assim é para todo sempre, e durará até o instante último do meu último sopro.

ainda está aqui dentro.


ainda está aqui.

falo assim porque estou ao seu lado.

estou ao seu lado.

porto que navega.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

terça-feira, 23 de agosto de 2011

ORIENTAÇÃO DOS GATOS




(*) Julio Cortázar

  Quando Alana e Osíris me olham não posso queixar-me da menor dissimulação, da menor duplicidade. Olham-me de frente, Alana sua luz azul e Osíris seu raio verde. Também entre eles olham-se assim, Alana acariciando o lombo negro de Osíris, que levanta o focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e gato conhecendo-se desde planos que me escapam, que minhas carícias não conseguem ultrapassar. Faz tempo que renunciei a qualquer domínio sobre Osíris, somos bons amigos a partir de uma distância infranqueável; mas Alana é minha mulher e a distância entre nós é outra, algo que ela parece não sentir mas que se interpõe em minha felicidade quando Alana me olha, quando me olha de frente que nem Osíris e me sorri ou me fala sem a menor reserva, entregando-se em cada gesto e cada coisa como entrega-se no amor, ali onde todo seu corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma reciprocidade ininterrompida.

  É estranho, ainda que eu tenha renunciado a entrar de cheio no mundo de Osíris, meu amor por Alana não aceita essa simplicidade de coisa concluída, de casal para sempre, de vida sem segredo. Por trás desses olhos azuis há mais, no fundo das palavras e dos gemidos e dos silêncios alenta outro reino, respira outra Alana. Nunca a disse isso, a quero o suficiente para não despedaçar essa superfície de felicidade pela qual hão deslizado já tantos dias, tantos anos. À minha maneira me obstino em compreender, em descobrir; a observo mas sem espioná-la; a sigo mas sem desconfiar; amo uma maravilhosa estátua mutilada, um texto não terminado, um fragmento de céu inscrito na janela da vida.

  Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho que me levaria de verdade a Alana; olhando-a escutar nossos discos de Bártok, de Duke Ellington, de Gal Costa, uma transparência paulatina me aproximava dela, a música a desnudava de uma maneira diferente, a tornava cada vez mais Alana porque Alana não podia ser somente essa mulher que sempre me havia olhado em cheio sem ocultar-me nada. Contra Alana, para além de Alana eu a buscava para amá-la melhor; e se de início a música me deixou entrever outras Alanas, chegou um dia em que diante de uma gravura de Rembrandt eu a vi mudar ainda mais, como se uma mágica das nuvens no céu houvesse alterado bruscamente as luzes e sombras de uma paisagem. Senti que a pintura a levava além de si mesma para esse único espectador que podia medir a metamorfose instantânea nunca repetida, a entrevisão de Alana em Alana. Intercessores involuntários, Keith Janet, Beethoven e Aníbal Troilo me haviam ajudado a aproximar-me, mas frente a um quadro ou uma gravura Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser, por um momento entrava em um mundo imaginário para, sem sabê-lo, sair de si mesma, indo de uma pintura a outra, comentando-as ou calando, jogo de cartas que cada nova contemplação embaralhava para aquele que sigiloso e atento, um pouco atrás ou levando-a pelo braço, via suceder-se as rainhas e os ases, as copas e os paus, Alana.

  O que se podia fazer com Osíris? Dar-lhe seu leite, deixá-lo em seu novelo negro, satisfeito e ronronante; mas Alana eu podia trazê-la a esta galeria de quadros como o fiz ontem, uma vez mais assistir a um teatro de espelho e de câmaras obscuras, de imagens tensas na tela frente a essa outra imagem de alegres jeans e blusa roxa que depois de esmagar o cigarro na entrada ia de quadro em quadro, detendo-se exatamente à distância que seu olhar pedia, voltando-se para mim de vez em quando para comentar ou comparar. Ela jamais pôde descobrir que eu não estava aqui pelos quadros, que, um pouco atrás ou de lado, o meu modo de olhar não tinha nada a ver com o seu. Jamais se daria conta de que seu lento e reflexivo passo de quadro em quadro a alterava até o ponto de obrigar-me a fechar os olhos e lutar para não apertá-la nos braços e levá-la ao delírio, a uma carreira louca em plena rua. Desenvolta, leviana em sua naturalidade de prazer e descobrimento, suas paradas e demoras se inscreviam em um tempo diferente do meu, alheia à irritada espera da minha sede.

  Até então tudo havia sido um vago anúncio, Alana na música, Alana frente a Rembrandt. Mas agora minha esperança começava a cumprir-se quase insuportavelmente; desde nossa chegada Alana se havia entregado às pinturas com uma atroz inocência de camaleão, passando de um estado a outro sem saber que um espectador escondido espreitava sua atitude, a inclinação de sua cabeça, o movimento de suas mãos ou seus lábios, o cromatismo interior que lhe percorria até mostrá-la outra, ali onde a outra era sempre Alana somando-se a Alana, as cartas aglomerando-se até completar o baralho. A seu lado, avançando pouco a pouco ao longo dos muros da galeria, eu a ia vendo entregar-se a cada pintura, meus olhos multiplicavam um triângulo fulminante que se estendia dela ao quadro e do quadro a mim mesmo para voltar a ela e empreender a mudança, a auréola diferente que a envolvia um momento para ceder depois a uma aura nova, a uma tonalidade que a expunha à verdadeira, à última nudez. Impossível prever até onde se repetiria essa osmose, quantas Alanas me levariam por fim à síntese da qual sairíamos os dois cheios, ela sem sabê-lo e acendendo um novo cigarro antes de pedir-me que a levasse para tomar um trago, eu sabendo que minha longa busca havia chegado a um porto e que meu amor abarcaria a partir de agora o visível e o invisível, aceitaria o limpo olhar de Alana sem incertezas acerca de portas fechadas, de paisagens proibidas.

  Diante de um barco solitário e um primeiro plano de rochas negras, a vi parar imóvel por um bom tempo; um imperceptível ondular das mãos a fazia como nadar no ar, buscar o mar aberto, uma fuga de horizontes. Já não podia estranhar-me o fato dessa outra pintura onde uma grade de pontas afiadas vedava o acesso às árvores vizinhas a fizera retroceder como que buscando um ponto de observação, tal era a repulsa, a recusa de um limite inaceitável. Pássaros, monstros marinhos, janelas entregando-se ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte, cada nova pintura arrasava Alana, despojando-a de sua cor anterior, arrancando dela as modulações da liberdade, do vôo, dos grandes espaços, afirmando sua negação frente à noite e ao nada, sua ansiedade solar, seu quase terrível impulso de ave fênix. Fiquei atrás, sabendo que não me seria possível suportar seu olhar, sua surpresa interrogativa quando visse em minha cara o deslumbramento da confirmação, porque isso também era eu, isso era meu projeto Alana, minha vida Alana, isso havia sido desejado por mim e dominado por um presente de cidade e parcimônia, isso agora enfim Alana, enfim Alana e eu desde agora, desde este instante. Quis tê-la desnuda nos braços, amá-la de tal forma que tudo ficasse claro, tudo ficasse dito para sempre entre nós, e que dessa interminável noite de amor, nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira alvorada da vida.

  Chegávamos ao final da galeria, me aproximei da porta de saída, no entanto ocultando o rosto, esperando que o ar e as luzes da rua me devolvessem ao que Alana conhecia de mim. A vi deter-se diante de um quadro que outros visitantes me haviam ocultado, parar imóvel por bastante tempo olhando a pintura de uma janela e um gato. Uma última transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente separada das demais, de mim que me aproximava indeciso buscando-lhe os olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico a Osíris e que mirava ao longe algo que o muro da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia menos imóvel que a imobilidade de Alana. De alguma maneira senti que o triângulo se havia fechado, quando Alana voltava para mim a cabeça o triângulo já não existia, ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.

_____________________________                                                                    

(*) Julio Cortázar, escritor argentino. ENCAMINHADA 

A ESCADA


Havia uma escada de três degraus em uma outra, que ruidosa nos levava por caminhos secretos, como se fôssemos algo especial que  irrompesse o tempo, para mudar os rumos do mundo. Ficávamos ali como se não precisássemos do restante de todas as coisas, como se o universo das mais tumultuadas multidões nem sequer  fizesse cócegas em nossa curiosidade. O que éramos naquele instante nos bastava, a ambos, de igual forma.

Sobre a escada de três degraus ficávamos extenuados com o rápido passar do tempo. O dia corria em desespero desde quando ali sentávamos. Nem havia tempo de ouvirmos juntos uma música, ou simplesmente cochilarmos sem planos, visto que nossos encontros eram sempre depois do almoço; momento de vontade e preguiça maior que a vontade.

Vinha de seu corpo um cheiro de pele, simplesmente. Não havia um perfume com suas cadeias desenvolvidas num frio laboratório. Aquele perfume aquecido de sol e dia era o cheiro de seu corpo, que se entranhava em minhas roupas e me acompanhava por todo o resto do dia. Certa vez ela me confessou ter medo que nossos cheiros nos denunciassem. Da porta do albergue  até a quinta de Vianna, ela pressentia que nossos encontros secretos já não eram um segredo.

E sendo assim, concluiu , enfiando sua língua na minha boca, que não poderia mais haver reserva alguma. E se entregou despida, de pernas abertas, úmida a pedir com gestos e gemidos que eu a  penetrasse. Nossa hora de almoço começou a se passar cada vez mais depressa. Na nossa hora de almoço, nada de coisas ao forno, ou molhos brancos ou o diabo. Naquela única hora do dia, o vilarejo todo nas suas reuniões mais íntimas perseverava na certeza de que estávamos mergulhados na mais tórrida safadeza humana.

Nus, arquitetávamos planos para mudar as coisas de lugar. Largarei  ele assim que ele chegar de viagem, ela dizia. Porém, o não chegar de viagem se arrastava e o que se deveria dizer nunca foi dito. Em tempos de espada, a morte é uma solução honrosa para a  dor. E a morte encontrou o meu caminho na segunda semana do brumário, quando os cavalos de exércitos inimigos, atravancaram o continente.  O bom homem dobrou os joelho e me olhou da última instância de sua vida. Seu olhar me dizia algo, como se estivesse levando para o outro lado uma dor que nunca libertaria sua alma. Eu o matei. Mas grande parte de mim, morreu também, ali, junto com aquele  homem honesto e corajoso, que lutava por seu país, enquanto eu me deliciava com as carnes de sua amada.

Por algumas vezes ainda veio disfarçada a me visitar. Trouxe certo dia  uma guloseima de uvas e azeitonas verdes, foi no mesmo dia em que escondidamente me beijou e disse que ainda me amava. Depois disso, escondeu-se pra sempre no meio de tudo o que eu não via.

Hoje pela manhã o padre veio tomar minha confissão e indagou a respeito de meu último desejo...
Meus desejos vão esticar o meu pescoço monsenhor. Não ouso desejar mais nada além de morrer sem mais desejo algum. E eis que a  porta se abre. E no alto do mastro vejo o artefato que me libertará de um modo que não sei dizer.busco nas lembranças o cheiro de pele que atravancou meus dias e com ele me jogo sem contorcer meu corpo em busca de um fim  inevitável. mas no último instante, um vacilante pensamento indagativo me corrói o juízo: e se foi tudo em vão?

MEMÓRIAS - 15


Leerezeit é uma palavra criada para descrever o tranquilo momento que é o ilusório por do sol. a ilusão de que o grande astro mergulha aos confins da terra. e a humanidade era muito mais humana quando acreditava que o sol se metia em tal mergulho, carregando consigo para o precipício todas as desventuras do dia,e por isso, era esperado a retornar na manhã seguinte, renovado e limpo, trazendo consigo novos sonhos e esperanças. quisera eu ter nascido em tal tempo ancestral, quando o sol era como um irmão mais velho, que cumpria dia após dia o seu ritual cósmico. o grande Coaraci, repousando sobre Eivac, na imensidão do espaço.

leerezeit, o inverso de um alvorecer precoce...

eu estava de volta por sobre aqueles velhos caminhos da infãncia. subi a ladeira de pedregulhos e avistei com um encanto ainda maior um castanheiro, muito mais alto do que aquele que eu lembrava. este, mais adolescente e impetuoso que o outro, tangenciava todas as casas com suas ramagens, tão altas e incalculavelmente fortes. 

lentamente fui me aproximando da casa verde, abri o cancelo e detive-me por um instante diante da janela de vidros coloridos, por onde eu costumava observar os movimentos da rua, espérei um pouco para que eu conseguisse respirar  com controle, e a tarefa árdua de segurar os soluços demorou mais do que eu esperava. bati á porta e ela se abriu depois de uns trinta segundos após alguém indagar "quem é?". uma mulher de rosto em rugas olhou através da pequena janela espiã...   era ela, a velha senhora.

tudo estava no seu devido lugar...

a única coisa que fiz foi pedir um abraço, foi pedir pra que ela cuidasse de mim, porque eu não conhecia mais ninguém no mundo que tivesse me visto assim indefeso, tanto quanto eu estava naquele instante. ela me abraçou e chamou-me de seu filho e pediu-me para que entrasse. eu não quis fazer nenhuma pergunta. apenas quis esquecer do abismo que havia entre nós dois. era já um final de tarde. ela como de seu costume, me preparou café com biscoitos. ao longe eu ouvia o triângulo do vendedor de cavaco chinês. eu sorri pra ela. e ela me retribuiu o sorriso com os olhos cheios de lágrimas.

o castanheiro soltava seus ouriços sobre o telhado. planejei  que na manhã seguinte trocaria as telhas, do mesmo modo como  fazia quando ainda eu era um menino muito... muito pequeno.

Leerezeit... é como o nome de um alvorecer precoce.
e não há como não sentir isso que sinto agora
  quando relembro dessa tarde.

MEMÓRIAS - 14

os olhos e as palavras de kleine Frau


"queria apenas um silêncio.
as vozes que me circundam não cessam.
desatinam a falar sobre o cotidiano em comum, que chega a ser incomum.
processos, despachos e contradições.
Não há nada de suave nos seus falares, e isso me machuca.


queria apenas o silêncio.
detenho-me nessa tela, geradora dum alvorecer precoce.


...


Leerezeit, queria apenas o sussurro da sua voz
mesmo que ela seja áspera, pois deleito-me
a escutá-la através das suas palavras


tu proveste de mim
ou nasceste para meu deslumbre?


se o despertei é porque estava vivo.
dormia, enquanto o tempo passava torpe?


...


você sou eu.


habitante da minha falta.
te ensinarei palavra por palavra, se necessário, a linguagem 
da solidez.




tenho sonhado com suas sombras.


...


-À noite, minhas dores
são mais belas -


Você seria capaz de ir sem se despedir?"


ela costumava sonhar com os sonhos. a minha kleine frau. Qualquer coisa que ela sussurrasse me jogava numa imensidão. eu via  em contagotas, de pouco em pouco, pedaço por pedaço das suas intimidades, que lentamente, de texto em texto, ela ia a me revelar. eu antevia sua nudez. eu esperava por sua total nudez. e isso me lembra os escritos do livro do desassossego:

 "por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma".

mas eu estava nu quando criei coragem para dizer; "se eu puder um dia merecer o amor vindo de seus olhos...  se um dia pousarem eles sobre aquilo que me foi dado, e através deles você me desejar mesmo que somente em palavras...  ora, que mais vou  carecer para ter em sua existência, um pequeno e prazeroso domínio? eu também sonho, se durmo...

como lhe dizer palavras sólidas?
se meu corpo a você se encostasse, ainda assim o que nos restaria de mais precioso seria o silêncio inicial que nos aproximou...

eu fecharia os olhos e incitaria suas dores... entredentes...
com a boca de quem ao longo morre aos poucos...


tem essa coragem de desejar o invisível?
faria de você amor e palavras.
mas não é o que tenho feito?

Não esqueça que construí este mundo, aqui dentro, só para nós dois...
para os olhos de kleine frau, morri e desmorri...
aos seus olhos depositei a perfeição da liberdade e dos sentidos..."

ah o tempo já se tinha escorrido pela clepsidra e eu já estava em muito envelhecido. numa tapera à beira-rio eu me distraía a tecer palavras em textos. eu criei a mais perfeita personagem para uma história de amor. eu criei a mulher que nascia de uma de minhas costelas. eu dei a ela o nome  de Kleine Frau, e a amei, sem temor nem reservas,  posto que em verdade, foi ela quem me criou, tornei-me sua criatura, ela tornou-se a mim a espera e a vigilia de todas as minhas virtudes.

lembro bem... era num mês de novembro. e toda vez que ouço a sonoridade do nome deste mês... penso em eternidade, como se eternidade fosse pra mim uma cidade natal, pela qual, há muito, alimento uma grande nostalgia.

jamais julguei a moça de meus sonhos, como a ser uma ilusão sem ventura. no mais a mim era uma profecia, que algum deus depositou ao meu encalço. e assim, acreditei que tal coisa se cumpriria, e com isso, eu teria a certeza que o mundo não é um títere em vão.

"minhas querências depositadas num copo... transbordariam..."



MEMÓRIAS - 14


os olhos e as palavras de kleine Frau


"queria apenas um silêncio.
as vozes que me circundam não cessam.
desatinam a falar sobre o cotidiano em comum, que chega a ser incomum.
processos, despachos e contradições.
Não há nada de suave nos seus falares, e isso me machuca.


queria apenas o silêncio.
detenho-me nessa tela, geradora dum alvorecer precoce.


...


Leerezeit, queria apenas o sussurro da sua voz
mesmo que ela seja áspera, pois deleito-me
a escutá-la através das suas palavras


tu proveste de mim
ou nasceste para meu deslumbre?


se o despertei é porque estava vivo.
dormia, enquanto o tempo passava torpe?


...


você sou eu.


habitante da minha falta.
te ensinarei palavra por palavra, se necessário, a linguagem 
da solidez.




tenho sonhado com suas sombras.


...


-À noite, minhas dores
são mais belas -


Você seria capaz de ir sem se despedir?"


ela costumava sonhar com os sonhos. a minha kleine frau. Qualquer coisa que ela sussurrasse me jogava numa imensidão. eu via  em contagotas, de pouco em pouco, pedaço por pedaço das suas intimidades, que lentamente, de texto em texto, ela ia a me revelar. eu antevia sua nudez. eu esperava por sua total nudez. e issome lembra os escritos do livro do desassossego que dizem:

 "por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma".

mas eu estava nu quando criei coragem para dizer; "se eu puder um dia merecer o amor vindo de seus olhos...  se um dia pousarem eles sobre aquilo que me foi dado, e através deles você me desejar mesmo que somente em palavras...  ora, que mais vou  carecer para ter em sua existência, um pequeno e prazeroso domínio? eu também sonho, se durmo...

como lhe dizer palavras sólidas?
se meu corpo a você se encostasse, ainda assim o que nos restaria de mais precioso seria o silêncio inicial que nos aproximou...

eu fecharia os olhos e incitaria suas dores... entredentes...
com a boca de quem ao longo morre aos poucos...

apaixone-se
tem essa coragem de desejar o invisível?
faria com você amor e palavras.
mas não é o que tenho feito?

Não esqueça que construí este mundo, aqui dentro, só para nós dois...
para os olhos de kleine frau, morri e desmorri...
aos seus olhos depositei a perfeição da liberdade e dos sentidos..."

ah o tempo já se tinha escorrido pela clepsidra e eu já estava em muito envelhecido. numa tapera à beira-rio eu me distraía a tecer palavras em textos. eu criei a mais perfeita personagem para uma história de amor. eu criei a mulher que nascia de uma de minhas costelas. eu dei a ela o nome  de Kleine Frau, e a amei, sem temor nem reservas,  posto que em verdade, foi ela quem me criou, tornei-me sua criatura, ela tornou-se a mim a espera e a vigilia de todas as minhas virtudes.

lembro bem... era num mês de novembro. e toda vez que ouço a sonoridade do nome deste m~e... penso em eternidade, como se eternidade fosse pra mim uma cidade natal, da qual, há muito, alimento uma grande saudade.

jamais julguei a moça de meus sonhos, como a ser uma ilusão sem ventura. no mais a mim era uma profecia, que algum deus depositou ao meu encalço. e assim, acreditei que tal coisa se cumpriria, e com isso, eu teria a certeza que o mundo não é um títere em vão.





MEMÓRIAS - 13



Disseram que desci Da montanha vestido de um outro. Eu já não era o jovem de antes. Desci quase já não acreditando nem mesmo no que eu tocava. Tal como o cigano me dissera, meu olhos me enganavam e eu via um mundo que nenhum outro seria capaz de ver. E sendo assim, percebendo o que chamavam de “meu estado”, não deram crédito algum ao meu querer ficar só.


Tentaram-me forçar a aceitar que nenhuma casa na montanha existia, nenhum eremita, nenhum velho do caminho, e nem mesmo Li...

Só havia uma única maneira de ver o mundo como ele realmente seria: tomando de doze em doze horas pequenas esferas coloridas, remedinhos cor de contas, que poderiam me auxiliar no fardo de perceber o que eu via, diferenciando isso daquilo que eu simplesmente  imaginava.

Zimbro, percebendo o estado de aflição no qual eu me encontrava, disse-me ao ouvido: “não se importe tanto com isso...  é um poder que eles nunca entenderiam”. Então ele piscou um olho. “desde aquele dia, em que você ficou sentado na platéia por horas e horas a esperar por ela...  desde aquele dia, garoto,  depois de tal coisa, o universo e os deuses tocaram sua alma e lhe deram um outro poder de viver, diferente desse nosso, que é sem vida, sem têmpera”.

E foi assim. Fiquei deitado num leito limpo sentindo que em mim, como por mágica, Antrofazia desaparecia de pouco em pouco. sentia-me  um desertor. Eu abandonava a parte que em mim mais de mim dizia. Tornei-me um insolente e lúcido ninguém.

E quando me indagavam sobre algo a meu respeito eu respondia furtivamente:
Nasci palhaço, mas fugi do circo.
...
Remexendo minhas tralhas, encontrei, envolvidos num pequeno pedaço  de tecido, a pedra de argila e as sementes negras. Estas, eu enfiei na terra, ao fundo de um vaso  e esperei...

Esperei por muito
Esperei com todo meu espírito
Que elas germinassem
mesmo que isso, tanto quanto todas as outras belezas, me fosse ilusão. 




segunda-feira, 22 de agosto de 2011

MEMÓRIAS - 12

a primeira casa da espera

foi como se por cem anos eu estivesse a subir. foi como se me faltasse o ar de toda minha vida. índice algum de Li. apenas um homem velho que sentado sobre as próprias pernas olhava para o infinito. percebendo que eu me aproximava abriu os olhos e me encarou friamente a balançar a cabeça. dizia que não. eu não entendia. então ele apontou ao precipício e esse gesto gelou a minha alma.

fiquei naquela casa não sei por quanto tempo.
fiquei naquela casa fria da montanha e nela esqueci do mundo.

nas coisas guardadas pelo velho, encontrei uma foto da menina que eu buscava. encontrei também seus desenhos colados na porta do fundo. um deles mostrava um pássaro pousado num alto mastro de um circo com uma inscrição em letras redondas que dizia;

"voar é cair, caro amigo. é como buscar o difícil pouso numa alta torre"

lá de cima, da montanha, eu via o fabuloso Antrofazia a se desfazer para viagem. talvez nem mais coragem eu tivesse de atravessar mais um oceano. talvez ele, o velho útero circense precisasse enfim partir sem mim, o seu espala da noite, o filho de seu velho Serafim.

eu tinha muito mais oceanos em mim, agora.

e antes de descer, dei ao velho as sapatilhas de sua menina. então ele lentamente me levou até o lugar onde havia uma pedra com letras indecifráveis. foi sobre ela que terminou minha busca. nada indaguei ao velho pois dele nada eu podia em sua língua entender ou dizer...

envelheci duzentos anos. foi o que eu disse aos meus amigos quando me receberam de volta.

e todos arregalaram os olhos quando ouviram de mim a simplória frase:

"dessa vez... eu não irei'.

QUASE TUDO O QUE FUI UM DIA EM





RESQUÍCIOS


Disse-me que os ruídos carregam milhares de elementos os quais compreendemos e que estão escondidos neles. Essas coisas me foram ditas no tempo onde tudo o que eu ouvia eu ainda não entendia, e por não entender, era parte de mim e me era suficiente desse modo, até mesmo por não haver ainda em mim ausência ou necessidade alguma.

Assim, quando eu sorria, não o fazia  porque as coisas me agradassem, fazia-o por nem saber que a consonância de tudo o que me rodeava era parte de mim assim como eu era parte desse todo.

Agora ele não me diz o que tenho ouvido desde que aprendi a designar as coisas por palavras. Diz-me o que me cala, revela vagos naquilo que me vem em voz e me joga num silêncio que me mostra um eu mesmo ainda em construção.

Calo-me. E meu calar é uma resignação na qual desencontro a sabedoria.

Calo-me e observo com os olhos atentos e com o semblante dos tímidos. Por muitas vezes me encontro numa tristeza estranha por estar assim em tal estado de espera e silêncio e é nesses momentos que seus sussurros me fazem companhia.

Senta aqui ao meu lado, diz-me a preparar o lugar onde na cama devo me acomodar, tenho coisas a te contar, coisas que o mundo não revela assim de pronto, coisas que não é possível ver com os teus olhos. Por isso te peço que te abstenhas desse sentido falho e te deixes a mim por inteiro, como se jogasse numa queda sem volta por saber que neste meu universo não é possível a existência de um chão firme. Feche os olhos para falar comigo e abra para si mesmo os ouvidos. Estou dentro, escondido naquilo que tu nem sabes que guardas com tanto esmero. O melhor recanto de tua alma é onde moro, e serão poucos os que te olharão e terão a capacidade de enxergar isso. E quando este alguém chegar, saberás. Ele terá os olhos que te farão desejar abrir os verdadeiros teus. Aquilo que junto a mim guardei em ti será revelado, assim como o sol num dia frio, que vem trazer a luz, a vida e a espera da primeira noite após a primeira alvorada.

Por algum motivo inicial, eu acabava por entender sua voz no desejo meu de fazer coisas que vinham de mim sem que eu soubesse como. Havia uma fonte de onde tais fluídos jorravam,e eu sem saber algum acabava envolvido na construção de elementos maravilhosos e assim me sentia muito feliz por ser capaz de descobrir em mim essas dádivas.

Por vezes muitas está ao longe, e assim o percebo a ser trazido. Alcança-me em partículas para que eu sinta a imensidão de sua existência. Essas partículas me são trazidas assim, como em vento, ou despencando de um despenhadeiro, ou caindo como chuva, ou ruindo como uma grande torre .

Cada partícula sua é um universo que me atravessa. Sua soma é o que me atinge. Sua presença através de mim é o que me multiplica. Não sou mais um? Eu indago. Ès milhares, mais milhares que os infindos milhares, ele responde.com um riso travesso.

Sim, ouço sua voz e seu riso.
Não é um ouvir.
Não é um sentir ou um somente perceber.
Fecho os olhos apenas e deixo que suas subdivisões infinitas tomem conta de mim. Sou parte delas. Elas são as formadoras daquilo que sou por agora e do que serei e do que até mesmo fui.

Vou te dizer a minha maior verdade. Eu posso falar com ele e ele me ouve como se fosse uma criança atenta ao que digo. Ele me coloca ao seu colo e me dá carinho. È aquele que sabe de mim antes mesmo que eu mesmo o soubesse.





extraído de A pequena Belleine

domingo, 21 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 11


no caminho de montanha


É preciso dizer que eu carecia de  sair das cercanias das lonas para conhecer o mundo, já me bastava de tanto tempo naquele útero invencível. Não havia cansaço algum que me empurrasse para esse desejo, não era por conta de exaustão física, afinal, o trabalho no circo  já fazia parte, desde muito tempo, dos costumes de meu corpo.O que me motivava eram os desejos novos que cresciam em mim, uma espécie de encantamento por uma outra existência, uma paixão que não me deixava de pensamentos livres por um só segundo.

 Quando se iniciaram a desmontar o circo, que já se permanecera  na Ásia por seis meses, aproveitei para buscar a dona das sapatilhas, como uma desculpa para uma tentativa de fuga das rotinas.  Li, que de alguma maneira, transformava minhas prioridades, impulsionava o meu desejo pela vida, uma ânsia por encontrar, uma impertinente angústia por tudo já parecer entediante demais, e entediante sem a presença dela.

Alguns amigos se propuseram a me acompanhar, dizendo que o caminho poderia ser perigoso e ainda havia os limites de idioma, que poderiam me causar alguns infortúnios durante a aventura. Porém, eu preferi viajar sozinho. Escolhi apenas uma troca de roupas quentes, botas e água e, em poucos passos acima, já me sentia envolvido pelos ares de um mundo novo, numa manhã de sol, com o coração acelerado, como se houvesse uma estréia urgindo, com o coração acelerado, como se eu acabasse de ter nascido, com o coração acelerado sem motivo algum para assim estar.

 Os ventos desciam friamente do cume da grande rocha, apesar das ondas irregulares de calor outonal que subiam da terra, e por isso tomei o cuidado com o aquecimento de meu peito, me envolvendo logo com a túnica de lã que o bom amigo Buchinelo apertou ao meu bornal. Muito ao longe, numa elevação que parecia impossível alcançar a menos de duas horas, repousava uma casa, à beira de um precipício, isolada e modesta, da qual, uma fumaça branca escapava pela chaminé. Um homem nativo que vinha em sentido contrário me fez sinal e eu me apressei a tentar me comunicar com ele. Pelo que eu pude entender, se eu continuasse no mesmo rumo, daria por fim naquela casa. Ele retirou de sua bolsa algo e me ofereceu, ia sorridente e jovial, apesar de que andava encurvado e se valia de um sabre para se manter de pé. Concentrei-me na árdua tarefa de simplesmente caminhar em subida, deixando-me ser tomado por um cansaço que aumentava a cada passo. já um pouco distante ouvi a voz do homem que descia a montanha. pareceu-me loucura, mas entendi que ele me advertia: desista disso! ri-me dessa suspeita e concluí que ele dissera outra coisa de fato incompreensível, pois nada falava de meu idioma. Mas pouco  disso me estorvava, eu tinha toda a juventude de meu corpo a meu favor, e uma felicidade preenchia meus pulmões. A única coisa que me importava no mundo seria encontrar a menina das sapatilhas e dizer que jamais passou por minhas idéias a possibilidade de amar alguém  repentinamente, como eu a amava.  sim, eu a amava.

ao abrir o pacote entregue a mim pelo andarilho, encontrei algumas sementes negras e uma pequena pedra de argila ressecada.


sábado, 20 de agosto de 2011

EM ESTADO DE ATELIER


Estou na década de 1880. Tornando real o que até então estava somente em planos, plantas, cads, maquetes...

apesar do fluxo incessante, agora não posso seguir com os escritos do modo como quero. O instante em que Serafim atinge o alto da montanha, carece de uma dedicação exclusiva, a qual, agora não posso dar... pois

estou na década de 1880. anos em que Venancinha se apaixona e faz com que Paula recorde o seu passado...

Machado de Assis foi um grande de um folhetineiro...

Quem foi que começou com essa canonização? como cenógrafo preciso me teletransportar. ou seria cronotransportar?


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

FILHOS DE VERBOS

ou a tristeza de sermos somente verbos


Quantas garças pousadas sobre a corda que atraca o grande navio ao cais
e toda a possível destruição, que descansa nos canhões estirados ao gramado da beirada, ao lado da casa das onze janelas.

nem tão bela de tão perto, assim é a verdade.
um rosto só alcança a beleza plena quando é  alvo de um universo.

castelos de palavras, foi o que erguemos baby. estes bem mais temerosos aos ventos que os castelos de cartas. e bastaria uma brisa singela que fosse para desconstruir o que antes foi demorado demais na construção.

construímos então  nossa grande cidade de castelos dentro de um quarto sem corrente alguma de ar. nela o sol só entrava por réstias bipolares, e a única ventania tinha o poder limitado de suspiros e respirações.



e o vasto que é lá fora, trouxemos pro interior do que supomos ser o que somos. Uma vastidão que me permitiu o toque da palma das mãos ao seio, e da ponta dos dedos ao sexo.

agora...
assim...
mesmo nas praças, no deserto, no escuro terrível de uma cela, estamos separados de todo o resto, condenados por termos  dividido, num só lugar e num só instante, desmentido todas as leis da física, aquilo que amamos daquilo que não tinhamos.

somos agora somente filhos dos verbos que dissemos, em tais instantes, um ao outro.

mas isso já é o bastante?

sim, se cada verbo realmente for mesmo segundo o que por aí dizem, um pedaço da carne impenetrável de Deus.



MEMÓRIAS DE SERAFIN - 10

a menina da montanha

Li, a menina de cabelos dourados e traços  orientais, ao redor do circo, lembrava-me o modo como eu era, quando criança.  O olhar da infância, ao que sempre me pareceu, é um olhar de busca, ou um tipo peculiar de olhar,   e quase o mesmo que sempre escapa de um fugitivo amedrontado, como que sempre em busca daquele que o capturou. todos os homens quando se tornam reféns ou muito velhos, parecem-me mais inocentes do que veramente o são. Na infância, suponho que sejamos todos assim, inocentes e reféns de um lugar que nos quer moldar, adocicar nossos corpos e aprisionar em costumes as nossas mais primitivas bondades.

Como quem fugia, Li, ao redor do circo buscava uma passagem nas cercas, mas não encontrava. Antrofazia crescia em sonhos, e como os sonhos são peculiaridades de todos os seres humanos... Antrofazia para muitos, era um lugar de sonhos. Li desejava que seu olhar encontrasse as verdades por detrás das cortinas cerradas, por sob o palco, onde as aberturas e fendas secretas revelam e desvelam o poder dos ilusionistas.

Até que em certo dia eu a descobri escondida ainda do lado de fora, nos pés da montanha, a espreitar o banho dos elefantes. Não percebeu minha aproximação, e assim, vi de muito perto os seus ombros, seus antebraços, parte de sua nuca, que mostrava o desenho de um sol vermelho, e...  seus cabelos, finos, lisos, douradíssimos. Ela ria baixinho, como se estivesse a assistir algo que lhe transmitia um prazer delicado, que mesmo na sua pretensa solidão carecia de ser demonstrado ao mundo, por risos contentes, como os de alguém que, num momento de sorte, consegue enxergar as mãos de algum deus a manipular o nascimento das estrelas, ou mesmo as mãos humanas escondidas do titereiro, que empresta vida aos seus títeres.

Vi também de muito perto as suas sapatilhas, deixadas ao lado de uma rocha. Delicadamente bordadas com o mesmo magnífico sol vermelho de sua nuca, sendo que a da direita ainda estava com seu bordado por acabar, como se a tarefa da bordadeira não se  pudesse ter chegado ao final. Senti uma energia materna naqueles bordados, e no cuidado sutil com as cores das linhas. As sapatilhas de pano ali, deixadas a esperar a liberdade ligeira da menina que olhava o banho dos elefantes, que ria baixinho...

Um grande amor por ela me surgiu naquele exato instante, e petrificou-me.

Nem preciso dizer o tamanho do susto que tomou ao me ver ali a observá-la, a destruir seus segredos...

Não pude gritar-lhe qualquer coisa  quando fugiu a correr descalça, subindo por entre as pedras. Fiquei a pensar que no alto daquela montanha estaria o lugar perfeito para uma menina assim habitar.

Muitos dias se passaram, e as sapatilhas de pano da menina da montanha ficaram a esperar por ela, guardadas por mim, com cuidado, ao lado de meus bonecos,  debaixo de minha coleção de selos e sobre a caixa na qual eu guardava o meu puzzle incompleto de cinco mil peças.

desde aqueles dias até agora, quando já nem vivo, Li não sai de meus pensamentos. e  em todos os dias quando vejo o sol, não há como não sentir ainda a presença intocada daquele amor pela simples existência de alguém.

...

cansado de esperar, depois de algumas luas, resolvi subir a montanha num dia em que era um belo dia de outono na província de Shaanxi.








quarta-feira, 17 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 9

os alertas de Zergori, o cigano

Mas de Li,  mal posso recordar o tom da pele. mal posso dizer do seu cheiro algo que o  descreva. tal imagem nublada nada seria em mim se não fosse por outro algo, de importância muito maior: uma busca inquieta e silenciosa, que eu percebia quando a enxergava num passo inseguro nos arredores da lona. quantos dos seus não a alertavam sobre o perigo de espreitar ciganos. nos idos de setenta, ainda resistiam nalgumas províncias, o medo peculiar das almas em pouca luz.

E se eu procurava, era certo, encontraria na menina de cabelos dourados outras mil respostas, para as quais nenhuma indagação eu ainda formulara. então eu permanecia escondido, a fingir que nem notava suas esgueirices por entre as cordas e jaulas. e ainda assim, sem me aproximar, julguei que dali daquela criatura eu poderia vislumbrar coisas distantes demais, que moravam muito além das lonas de Antrofazia.

e fui a ficar dolorido, como se deitar meus olhos nela tivesse força igual a deitar os olhos em uma fuga. mas como fugir se nem preso eu me encontrava? ou pelo menos eu jamais formulara tal indagação. Li circulava as cercas de ferro e corria livremente por onde quer que fosse. e quanto a mim? o dominador pirofágico, pra qual lugar eu poderia correr, se toda a minha ideia de mundo cabia somente dentro das permissões de um circo?
Li mostrou-me o tamanho de minha falta de liberdade.

e dentro de suas sapatilhas de flores bordadas era muito mais dona do mundo, e por isso, muito menos dona de tudo. Li,, aparentemente frágil, mostrou-me em força e doçura, que eu estava só...

mostrou-me ...  que a antessala da paixão é esse vazio tão pouco profanado, que nos acolhe antes mesmo da pergunta inicial, que indaga o motivo pelo qual um criador desastrado nos colocaria no mundo. um vazio que nos leva a necessitar de um miserável motivo, que nos mova rumo ao desconhecido.

e do pouco que me lembro posso relatar com sincera certeza: deixei que Li entrasse em minha casa, como se eu fosse um velho, que por muito tempo espera uma visita...

e eu  era ainda um jovem
e ainda assim já pouca graça eu via em tudo...


Zergori costumava me indagar se ela realmente existia. e eu agora quase tenho a certeza de que quem nunca existiu a mim foi o indagador Zergori, que é o modo como costumo chamar também tudo o que lembre a quietude.

O cigano foi o primeiro a me olhar dentro dos olhos e, num riso, dizer-me louco... por estar e me deixar estar... apaixonado.

e foi Zergori que deixou em minhas mãos Bennário, o violino sem alma.




terça-feira, 16 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 8

Os anos se passaram tanto e tanto, que mal me posso conter de vontade de deixá-los sem exortação alguma. nada de extraordinário no resto dos meus anos. talvez por isso mal me possa lembrar de detalhes, como as cores, os perfumes, as texturas dos dias...

especializei-me na arte de dominar o fogo, criando a ilusão ao meu redor de que eu poderia fazê-lo surgir e agir de acordo com minhas vontades.

não demorou para que nas cidades onde o circo chegava, o nome de Serafin, o filho, se tornasse o mais citado nas rodas de conversa nos calçadões e praças e nas fileiras que cresciam a cada dia diante das bilheterias.

ah... eu poderia me perder em detalhes, em historietas do meu cresce não cresce. mas salto por todos os vinte anos seguintes ao dia de minha nomeação, para recordar com deliciosa saudade, do perfume de Li, a filha do barqueiro, de pele tão branca e sorriso tão tímido.

tirar de mim o mistério que é esse: esquecer da formosura de seu rosto, e guardar somente o desenho pueril  das flores solares bordadas em suas sapatilhas.



MEMÓRIAS DE SERAFIN - 7

os primeiros passos


Desci ao chão ainda um pouco fraco dos passos. quase caí e quando fui amparado, já não era por estranhos. O anão Zimbro era muito menor que minha altura e sua cabeça se encaixava sob meus braços, como se fosse uma muleta humana. o outro, Buchinelo, era tão alto, que carecia que eu dobrasse completamente a cabeça para trás para poder enxergar seu rosto e, meus olhos davam na altura de seus joelhos.

Todos pararam de fazer o que faziam para observar, silenciosos, o meu passeio.

"eles devem estar se perguntando qual é o seu talento, garoto", disse zimbro. "Se você pôde perceber, o meu talento é ser muito grande na minha falta de altura".

"e o meu talento é ser enorme em minha falta de pequenez", completou Buchinelo, que agoniado com nossos passos, andava miudamente para suas longas pernas.

imaginem o que não era aquilo ali pra mim... o grande circo Antrofazia

todos os loucos e estranhos do mundo estavam reunidos naquele acampamento: mulheres de barba, homens quadrúpedes, o homem zebra, a mulher cobra, o engolidor de lâminas... o vendedor de cavaco chinês...
e Serafim, o palhaço que dominava o fogo, capaz de fazê-lo atender aos seus pedidos, como se esse elemento fosse, tal como nos tempos remotos, um deus que ouvia e reagia aos seus fiés.

e foi ele, o palhaço do fogo, que veio até mim, ajoelhou-se  em minha frente e disse-me:

"Muito bem, pequenino, pelos rituais deste lugar, devo repetir a mesma pergunta que já lhe fiz: Qual o seu nome, menino que não ri?"

Serafin. eu respondi.

 dessa vez não se ouviu nenhum riso ou gritaria.

então ele completou:

"seja bem vindo ao seu novo lugar no mundo, onde nunca mais estará sozinho. Aplausos para Serafin".

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 6

Depois que o picadeiro escureceu e o espetáculo acabou, fiquei na platéia por quase toda a noite a esperar que as mãos da velha senhora viessem me resgatar. os trabalhadores do circo já estavam se recolhendo, quando ouvi uma voz conhecida ao meu lado. O palhaço ainda mantinha sua maquiagem, e por isso, ainda era o mesmo personagem de outrora. tudo bem que nele havia algo a mim muito familiar, mas eu não poderia confiar num homem do qual eu conhecia muito pouco. como percebeu que eu não  prestara atenção ao que falara, repetiu a mesma frase umas três vezes:

"se quiser, eu espero com você, garoto...
Telehmah é uma casa na qual cabem muitas almas".

balancei a cabeça negativamente.

Além dessas coisas que eu não compreendia, nada mais ele disse depois de minha recusa, apenas ficou do meu lado por um pouco mais de tempo. ofereceu-me uma maçã caramelada, eu também  recusei. qualquer coisa dada por estranhos não é digna de aceitação de pronto. o tempo foi passando, eu não me desistia de esperar que ela viesse, a velha senhora, com seu vestido gasto e suas mãos fortes. não sei ao certo como adormeci. mas acordei num outro lugar sob os ruídos de animais e a fedentina de seus excrementos. o que eu via através de uma janela de vidros coloridos, lá fora, era  toda a extensa fisionomia do circo. alguns homens lavavam elefantes e zebras. outros alimentavam os cães. alguns artistas ensaiavam, e de algum lugar eu ouvia o timbre agudíssimo de um violino.

foi quando entraram dois homens estranhíssimos. o primeiro auscultou meu peito, o segundo, que era muito gordo quase a ponto de não conseguir passar pelo vão da porta, empurrou para minhas mãos um copo com alguma coisa quente.

"a febre está muito alta", disse o primeiro. "olhe garoto... há cinco dias que você está assim. e sinceramente, meu pequenino, já é hora de levantar dessa cama. tome, beba isso.eu sei que é muito ruim. tem muito alho aqui  Alfredo, eu disse que não precisava de tanto alho. que seja... beba, menino. chega dessa coisa de ficar assim tão triste. estamos num lugar onde a tristeza não cabe. estamos no circo ANTROFAZIA, todos  buscam este lugar para encontrar um sorriso que se perdeu. portanto, encontre o seu".

quando se é criança, não se sabe ao certo o que é a tristeza. eu fixava os olhos na janela de vidros coloridos e lembrava da voz da velha senhora... "durma niedreger Zerafin, meu pequenino Constantin"...

onde estariam agora as canções que aquela mulher alemã cantava para buscar meu sono?

"Quando eu cheguei aqui, caramujo, eu tinha a sua idade'. disse o homem mais gordo. "Eu serei seu amigo. meu nome é Buchinelo. antes eu era um palhaço bem magrinho. agora eu sou um palhaço muito gordo. beba isso, amigo. aposto  que se você der uma volta lá fora, essa febre vai passar. este mocinho aqui, apesar de sua altura, tem sessenta anos"...

"Olá. meu nome é Alfredo Zimbro. foi esse nome que eu escolhi. deixei meu outro nome lá fora. quem precisa de um  nome, que alguém que não nos conhece direito nos dá? Ora pare de me cutucar, a quantidade de alho é a mesma de sempre, e é o alho o remédio mais santo que existe. E você?... qual  nome vai escolher?"

como é que eles queriam que eu lhes desse ouvido? apenas fiquei em silêncio. devolvi o recipiente com seu líquido quase intocado. os dois então se entreolharam com um aspecto muito triste. Zimbro tentou cobrir-me com o lençol, Buchinelo quis ajudar, já  que o amigo mal conseguia alcançar a cama, o anão não permitiu, pois parecia ter muito orgulho. por fim, depois de baterem boca saíram e me deixaram sozinho.

"Fique em paz, caramujo", disse Buchinelo antes de sair. "E se quiser manter seu nome, mantenha. serafim é um nome de muito respeito por aqui".

A diferença de tamanho  entre eles era trágica.


qual nome escolher? indaguei-me. Pergunta difícil para uma criança.



domingo, 14 de agosto de 2011

DIA DOS PAIS



dedico este dia à minha filha AÍSHA. a PIRILAMPO, que mesmo distante continua sendo e sempre será o ponto  central de tudo aquilo que faço. não há nada que ocorra em minha vida e em meus dias, que eu faça ou seja passivo, que não traga a mim, de imediato, a imagem de seu rosto, sua voz e seu sorriso.

declaro meu amor por essa criatura.

um amor imenso, do tamanho de minha vida, que ficará eterno em verbos, e assim, ficara eterno em mim.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 5



o teatro de lona 


Eu tinha acho que uns quatro anos quando pela primeira vez me vi debaixo da grande lona de um circo.
Eu era um garoto franzino, do tipo que aparentemente está sempre assustado. Minha mãe caminhava ao meu lado, de olhos em mim, fazia isso quase sempre, porém jamais me amparando com qualquer tipo de controle. Ela me treinava aos pouco para que eu suportasse uma possível solidão repentina, coisa que aconteceu a ela, logo depois da última grande guerra, quando era uma criança mais ou menos de minha idade. Por essas coisas eu, apesar de estar  sob os olhos da velha senhora, sentia-me responsável por mim mesmo, pois fui doutrinado a sempre estar na espera por uma catástrofe, ou qualquer outra coisa que a humanidade ou a natureza possam inventar. Escolhi um lugar que achei conveniente nas fileiras de cadeiras centrais. Dei uma olhadinha para trás e vi minha mãe conversando com um desconhecido. Era um homem alto, de pele  amarronzada e cabelos lisos ao ombro. Seus olhos, enquanto conversava com a velha senhora, dissecavam toda a platéia, como se buscassem algum ponto em especial.

O espetáculo logo começou e as pessoas ao meu lado começaram a gritar e a  pular entusiasmadas. Eu não achava nada daquilo entusiasmante.  Nem a mulher imensamente gorda, que ameaçava saltar de uma altura indizível;  nem o homem que esbofeteava leões, como se estas feras fossem débeis e ridículas; nem o equilibrista que por sobre a platéia caminhava tranqüilo numa corda, correndo o risco de despencar sobre nossas cabeças. Acreditem, eu dormi no meio do espetáculo, e acordei com o menino do meu lado me sacudindo e dizendo: “Ei, garoto esquisito, ele está falando com você”.

Como se me tivessem jogado numa realidade da qual eu ainda não lembrava o contexto, levei meu olhar para aquele que estava no picadeiro e apontava para mim. Quando meus olhos deram com os olhos dele, ele sorriu. E quando ele sorriu, toda a platéia gargalhou por muito tempo.

Então ele ergueu as mãos e os risos cessaram.

Seu rosto era branco e parecia sempre triste. Sua boca era marcadamente negra e parecia maior que o normal, por isso, seu sorriso era com certeza o maior sorriso que eu já tinha visto. Ele me lembrava em muito o homem que há pouco conversava com minha mãe.

Olhei para os lados e percebi que eu era o centro de quase todos os olhares, inclusive do palhaço sobre o picadeiro. E eu, treinado para me sentir só, nas mais diversas catástrofes, acabava de descobrir os olhares estrangeiros em direção às minhas terras. Invasores benignos ou malignos? Universos tão infinitos, que por mais que eu multiplicasse meus superpoderes, jamais conseguiria a todos descrever.

O palhaço então indagou numa voz grave:

“qual seu nome? Menino que não ri”.

Serafim, eu respondi.

A platéia quase explodiu numa gargalhada. O palhaço levantou as mãos novamente, os risos novamente cessaram. Ele então indagou à platéia:

“Amigos, que riem de mim. Qual meu nome?

Todos que estavam ali responderam quase em uníssono:

“SERAFIN!”

Os olhos do palhaço pareceram-me mais tristes, e toda sua expressão facial também entristeceu.
E desde disso eu percebi, que a solidão seria pra mim um ideal longínquo. E ninguém, nem ele mesmo, o tal palhaço de riso largo, precisou me dizer que eu tinha o mesmo nome de meu pai, e consequentemente o mesmo destino. Pois, foi  desde aquele dia que deixei de ver, na realidade, a mulher que me gerou. 







  

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 4



RESQUÍCIOS DA VELHA SENHORA




as coisas são como devem ser?

as coisas são como deveriam ser?

quem é o responsável pela direção disso?

o zelo na convivência. entenda as palavras, não pense que são feitas sem esmero... somente pra você que esse castelo de cartas (o texto) se desmorona. o zelo na convivência passa pelo (estranho) desejo de sempre ver o outro num sorriso leve e tranquilo, como que raspando as panelas de mingau, sorvendo um sabor último. um dia eu soube, amizade é (como) isso, de cuidar de alguém de um jeito infantil, como faziamos com os brinquedinhos prediletos guardados num baú perfumado com naftalinas roubadas da avó. fios de algodão enrolados em palitos de picolé, soldados de plástico, carrinhos que vinham como brindes em balas de amendoim... figurinhas de personagens de desenhos animados... restos de ostras e pedras com formato esquisito...

coisas que lembram dos tempos... (carregam o tempo na cara)

a velha senhora apertava bolinhos de farinha e os colocava arrumadinhos no prato. chamava-os de capitães. eu e os capitães de feijão a observá-la num tecer croché sentada diante da porta...

eu pensava que tal tempo fosse algo que nunca passaria. hum... eu nem sei se sabia que o nome disso era infância.

quando nestes últimos dias o meu corpo adoeceu, poupei-lhe de por mim ter cuidado, como quem esconde que solta pipas pela janela do sótão. desconfiada, preparou-me chás de casacas de árvores. chás amargos...

disse que eu parecia triste....

que não deveria me jogar tanto assim nas coisas que faço....
que poderia largar os papéis e os livros... (e o resto...)

que poderia dormir na sua cama, se eu quisesse.  (foi o que ela disse, e senti tranquilidade)

tudo ao contrário que me ordenava...

eu poderia fazer tudo o que me proibira na infância.




 numa dessas febres que de surpresa me afloram nessas condições, deitei sobre o lençol limpo da sua cama antiga... e fiquei fingindo meu fim de vida, pra ver se ela se achegava...

e os lençóis
(tinham sempre)o mesmo cheiro dos mesmos tempos,  que (eu) sabia nunca passar.
(e agora)
nestes segundos fech0 os olhos e esqueço destes  anos tantos sem ela...
e quase me juro que, se levanto daqui, encontrarei a velha senhora diante da porta a tecer centros de mesa ou a me fazer fuxicos,  fuxicos mesmo, destes que falam de coisas que por sabedoria  fingimos ouvir.




(velha) amizade é algo que sinto assim:

brinquedo que reencontro...

num canto da casa, que me deixa quieto







(por horas e horas, num outro mundo)






[de TEMPOVAZIORAL]  www.tempovazioral.blogspot.com

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

DIA DE ANIVERSÁRIO



Fiquei  deitado ainda na cama, nove horas e nada de me sentir com energia para mover o mundo. E  em qual dia de minha vida toda me senti assim. É, eu lembro de vários. Nessas horas os ruídos internos do quarto sobrepujam o que vem do resto do mundo. Minha audição  apenas desconfia que o universo lá fora, por detrás dos ruídos dos ventiladores, pode não estar tão tranqüilo, quanto está aqui, nesta manhã desmedida.
Os livros rodeiam a cama, circundam um cara de tantas mil palavras que mal sabe dos instantes, que  nunca tem certeza dos nomes dos dias, que vendeu a alma para uma busca por liberdades simples. Mas hoje eu sei, é um dia que relembra um outro, há anos atrás, no qual ela nasceu. Já falei isso em outras circunstâncias.Mas qual seu nome?

Qual o nome deste dia?

Atento-me para a imagem das mãos que envolvidas uma na outra formam um globo terreste. A figura está diante de mim, pendurada na parede lateral. Dois mundos, um mundo. As certezas sempre, de imediato, me parecem todas tolices sem sentido. A cama esquenta no exato momento em que o dia já não suporta crescer sem mim. O mundo lá fora é maior, sem dimensão que caiba no que penso. Mas o mundo lá fora  seria grande demais se eu não soubesse aonde chegar. E eu sei? Sei sim. Pelo menos por hoje sei sim.

Depois que a cama não mais me veste, de nada mais me serve ficar  quieto, nessas sombras que criamos, nesses domínios seguros que não nos deixam espalhar nossas ramagens por aí, pouco do que somos se intromete a procurar alturas celestes. mas eu me rebelo e busco.

Se eu não quisesse flores, haveriam mil floristas espalhados por sobres todas as calçadas da rua onde moro. Mas até que eu não gostaria de tantas flores espalhadas por aí, tão fáceis e desvalorizadas. elas são o que valem, e o seu valor é o que poderiam causar. E então me lembro que jamais dei flores a uma mulher. Já fiz coisas inimagináveis na infância com pincéis atômicos em uma mureta caiada, bichos de pelúcia escondidos em papéis manilha, coleções de pulseiras horrorosas, livros de títulos suspeitos. Poesias encadernadas ...

sim... como esquecer das poesias que nem lembro?

As poesias.  Elas, que germinavam  na minha adolescência, incontroláveis como praga.

Hoje bem sei o que devo fazer.
Para quem sabe que os rios são a potência do mergulho profundo, eu digo que hoje teremos o rio em redor de nós. Correremos por debaixo dos trapiches e passaremos o dia misturados ao rio a tal ponto, que quando voltarmos para terra, já sejamos outros, em definitivo.

Talvez eu não diga nada. Talvez eu esqueça. Mas não significa que eu não saiba, que eu não deseje.


domingo, 7 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN

2



“A loucura, portanto, se tornou a forma última, o grau final de Deus na imagem do homem”. (Michel Foucalt)



Ele venceu a morte com amor. venceu a morte com amor, dizia o hino que aprendi nas minhas idas à catedral num tempo de minha infância, um tempo muito distante. A mente infantil deste futuro palhaço ainda estava livre de pensar sobre o amor e a morte. Eu estava muito mais preocupado em descobrir o que é que o sacerdote fazia no exato momento em que minha mãe, a velha mulher, me obrigava a fechar os olhos. Um sino repicava no altar em tres momentos, e nesses tres momentos o meu pequenino coração disparava, como se eu pudesse ser sugado, num átmo, pelo próprio satanás, pois eu havia pecado em ter espiado pelas frestas do banheiro a filha da vizinha que nua tomava banho deliciosamente, de cuia. Era isso então, o sacerdote lutava no altar com o próprio cão do inferno, enquanto eu só teria que abaixar os olhos e acreditar que o filho de deus encarnava, para salvar um pobre merda como eu, a forma de um simples pão . O fumo do incenso com sua brancura exalava um cheiro que me transportava para eras muito ancestrais, que eu não conhecia, que era um oco disforme na minha cabeça, mas que me fazia bem e me convertia exatamente por isso, até mesmo que eu não quisesse ser convertido, a um povo e ao seu Deus.


Orgulhosamente a velha mulher me conduzia pelas mãos na fila que se formava para comer do pão. Os adultos me sorriam. Tanto eu gostava disso que me era fácil desejar me tornar um santo. E eu, simples e pequeno, ao redor de todas as minhas divagações infantis apenas a esperar o momento em que eu veria a cena do padre, com uma piscadela, a depositar sobre a língua dos súditos a hóstia. Meus olhos enxergavam os fios ainda de modo embaçado.



No mesmo instante esse hino, em mantra, era cantado por todos nós:



Ele ressucitou, aleluia

venceu a morte com amor

aleluia...



O teatro já me era o templo.

Todo templo, desde há muito, me é um teatro.

MEMÓRIAS DE SERAFIN


1


A loucura é a última casa antes do abismo. Seu nome? Vamos chamá-la de Teatro, pois ela foi assim em nome por alguns trechos das últimas narrativas. A minha cidade imaginária ideal era uma cidade de circos, visto que eu era... um palhaço, no sentido mais real do termo.

O abismo é como a morte. O desconhecido; lugar o qual em tudo o que é, é somente tudo o que supomos que tal lugar seja.

No teatro não se teme o abismo. A queda. Morte... Vive-se nele todos os caminhos. Foi nele, no no brande teatro feito para o criador de mundos, que descobri em mim o poder de ver os fios.

Libertemo-nos do medo do abismo. Não temer a morte é alcançar a liberdade em vida.

Libertar-se desse medo é libertar todas as nossas divindades criativas. A última casa antes do abismo não é o que nos ensinaram com tantos artifícios. Loucos não são os que nela habitam, loucos, se é que existem, devem estar tateando as paredes de alguma cidade escura, ainda se admirando mesmo na cegueira das possibilidades de ser belo aquilo que não podem, nem poderão nunca, de verdade, ver.

Mas olhem só... Poucos são os que ficam totalmente convencidos de que vivem uma verdade. Poucos são os que ficam convencidos de que a morte é um fim de vida e o resto é eterno. Nossa maior parte, lá no lugar onde ninguém nos ouve, não se acredita nessas coisas. Verdades absolutas são absolutas. Mas onde elas estão?

Mas cuidado, amigo. Não demonstre seu anima indagativo em público, longe das paredes côncavas da cena. As criaturas que temem o abismo... lhe temem, por não compreenderem o seu uso das capacidades de retirar os pés do chão, que todos possuem mas são exortados a desprezar. E elas vão saber da existência de suas asas, não importa o quanto você as esconda por debaixo dos tecidos de suas roupas.

Se, nas tentativas de alcançar locais onde um simples salto não seja suficiente você sofrer algum dano material, elas, vão apontar seus dedos e lhe dizer: Está na hora de ouvires o grande chamado.



Seja discreto com essas criaturas pequenas. Tenha bondade e paciência com elas. Tenha misericórdia.

E se tiver que dizer ou sentir algo que lhes possa levar ao lugar onde não existe o medo...


Sinta e diga isso na casa da loucura.
Diga isso nos seus ouvidos.
Diga isso num teatro.
Faça-se um teatro...
E domine os fios.

sábado, 6 de agosto de 2011