sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ÚLTIMO SUSPIRO NO TEMPO

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Depois destes seis anos de escritos na rede, encerra-se aqui meu ciclo de navegação. Deixo aqui parte de minha carne, parte de minha vida, dores e alegrias. Marcas minhas nessas paredes de luz, onde vivi intensamente tudo o que vivi.

Aos olhos de kleine  Frau, Minzy, Tempovazioral, Kleine belleine e Katablemata, foram os lugares onde imprimi minhas profecias, que me guiaram e guiam por todos estes dias.

Talvez eu esteja envelhecendo, tendo surtos de ânsia por silêncio...

Talvez seja hora de silenciar.

Talvez eu deva me calar para os olhos que me escutam, pois o velho carrossel precisa  parar de girar.

Os escritos ficam como prova e testemunho do que vivi e senti aos que junto comigo viveram. Uma luz de verdades quem sabe eternizadas, envoltas de enigmas,  um sinal de que essas verdades que me guiaram tinham sua alma divina e tiveram sua beleza estampada no tempo.

Vivi, amei e morri ao lado dos personagens que agora deixo ao tempo.

Agora isso tudo vira um templo do que fui, lugar que visitarei quem sabe muito velho, talvez com uma saudade imensa de meus amores verdadeiros.


"Lembranças realmente doem. Reviver é sempre assim, como massagear um baque antigo que não se curou de fato.

Devo terminar aqui minhas memórias. A mão na escrita já treme demais  e sei que ainda hoje, aquela que nasceu comigo virá me visitar. Muitas vezes chamei-lhe de amante, outras de mãe ou irmã. Hoje ela será minha filha, e nestes últimos dias dei-lhe o nome de Maricéu. Ela finalmente me levará em si para o sossego. Navegante solitária que é de um grande barco em velas, ela não só me trouxe o vento como nele mesmo e por ele navega.

Ela vai me procurar no lugar que construí a ela. E tudo enfim será essa dúvida eterna e maravilhosa que indaga quem fomos, onde estamos, quem somos agora e o que porventura seremos. E onde estaremos?

Guardo somente em mim estes últimos verbos. Como quem guarda o segredo cósmico que a tudo desvela. Antevejo a nau de Maricéu, aquela que vem me buscar".


Adeus.
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A MENINA DE VELASQUES

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Sonhei que a menina de Velasques saia do famoso quadro e me balançava ao leito. eu me acordava a esfregar os olhos e a não acreditar na cena. quietinha, sem o olhar amargo que mantinha na pintura ela sentou-se à beira da cama e me indicou um lugar onde havia silencio. além da janela.

sim, eu resmunguei, agora lembro, é a janela de um tempo outro, no qual eu estava em corpo de criança. através da janela eu me vi a estar sentado na calçada, mantinha o queixo apoiado nas mãos, igual a quem está perdido em pensamentos. todos a mim estavam em silêncio, como num filme em lenta camera e sem som. eu a assistir o mundo como quem está numa sala escura e tranquila.

senti-me feliz ao me ver em criança. eu encontrava um brinquedo perdido. meu playmobyl de capacete vermelho...

corra mais menino! eu queria dizer a mim mesmo. não fique assim tão quieto.

mas eu em criança observava os formatos escondidos das coisas. admirava-os. e pensava na possibilidade de dizê-los.

a única possibilidade era o silêncio.

meu pai costumava me presentear com elefantes de açúcar. meus irmãos me caçoavam por meu cabelo. as outras crianças se assustavam com meu modo de dizer as coisas. era a década de setenta. um silêncio tomava conta de todos. mas todos não se aquietavam por não gostarem de permanecer calados.

se Taubelleine me surgisse naqueles dias, me surgiria como o som doce proveniente do triangulo estridente do vendedor de cavaco chinês. ou quem sabe me fosse a sensação que sempre tive ao observar o imenso castanheiro ao lado da escola de alfabetização.

Taubelleine sempre esteve ao meu lado. houve um tempo em que foi uma bola de borracha que caiu em meu quintal. noutro instante foi a bonequinha de miçangas que comprei para presentear Heloise. Taubelleine me surgiu um dia como as meigas sapatilhas de Li, que me beijava a se esconder do temporal.

o semblante é mutante. não há semblante. o amor é livre como o semblante no qual ele habita. aprendi isso quando os olhos de D se fecharam e nunca mais se abriram. aprendi que aquilo que ela foi passou a habitar muito do que eu era e sou.

o menino calado do sonho estava em silêncio...

a menina de Velasques me foi uma loucura.nela sempre vi uma vontade de ser criança de verdade. e no meu sonho lembrei que naquela idade encontrava nos olhos desta menina pictórica uma luz que nunca entendi e ainda nem sei como explicar...

olho pela janela e me distraio a me observar. sou muito pequeno, falo a rir de mim mesmo. e meu cabelo é mesmo engraçado! a menina de Velasques então passa a rir comigo. toco as mãos dela. é a minha Taubelleine de quando eu tinha cinco anos de idade...


silencio. meu caro menino, sem presente de natal, sentado na calçada. o brinquedo era o mundo com suas pedras em formato de coisas, eram as latas de leite que se transformavam em carrinhos cheios de areia. era o meu pai feliz da vida por encher a pobre árvore do jardim de lâmpadas muito quentes e coloridas...


silêncio. momento...

acordei do sonho apenas com as sensações de entendê-lo.


as várias facetas do meu anjo, que sei não ser anjo, sempre acabam por me deixar no peito uma tranquila sensação de alegria.
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DO RAMO VERDEVIDA

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"RECUO VERBAL E MILAGROSO DAS PALAVRAS MESMAS


então resolvo queimar na mente a casa que até então me abrigou. que arda a casa dor risos proibidos e suas janelas de vidros coloridos. que arda com isso toda a falsidade, toda a hipocrisia. que no subir da fumaça eu dobre o meu pescoço e caia de joelhos. o fim da espera chegou. abro os braços para aquela... musa de meus dias e reconheço que não há no mundo quem me possa amar de tal modo e que me reconheça pelo que sou ainda que na maior distância que exista...


como se isso não fosse todas as que em mim se alcançam a descobrir que em mim e no que faço podem ser o melhor que sou...

vejo arder a casa dor risos proibidos. e nem cheguei a contar como foi que ela me surgiu. que foi num sonho onde uma criatura me dizia que se eu dobrasse os joelhos eu poderia voar como voam os anjos de pedra. mas se eu optasse em voar sempre dali eu não sairia, seria o reflexo interminável das lâminas das janelas da sala. ninguém acreditaria em mim se dali eu saísse e dissesse que dentro da casa eu poderia voar como os anjos e que por isso era proibido de sorrir.


daqui recomeço em novo tomo.


Mas então em mim me veio de novo aquele desejo de ser o que falta ao serestar de Belleine, o raminho verdevida que a pombinha carrega ao bico como que para sinalizar que o mundo sempre floresce depois de uma tragédia".

Refloresça mundo. Refloresça.
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RESQUÍCIOS

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“Houve uma interferência na pureza daquilo . Lembro que ao início eu conseguia escrever  palavras as quais depois conseguia admirar. Era como se uma voz me as ditasse de  muito perto aos ouvidos.

Mas agora já não consigo escreve-las porque já não há a mesma construção de outrora, que eu vislumbrava seguramente assim que desejasse. Algo se quebrou, diria o dramático. A bela corrente fluida de sensações foi maltratada e se rompeu, diria o triste. Mas ainda sobraram textos daquele momento. Textos que admiro até, por ensinarem boas lições a mim mesmo que os escrevi. Felizmente, diria o que espera sempre.


Demorará a recuperação daquilo que se rompeu. [ou nunca se recuperará]


 Depois disso novas palavras surgirão e eu já serei um outro que para isso não mais escreverá.

Então, assim me contento em revelar o que me veio até minutos antes do melhor que surgiu em mim  se acabar. É que depois... já quase nada sobre isso consigo escrever”.











RESQUÍCIOS


Disse-me que os ruídos carregam milhares de elementos os quais compreendemos e que estão escondidos neles. Essas coisas me foram ditas no tempo onde tudo o que eu ouvia eu ainda não entendia, e por não entender,  era parte de mim e me era suficiente desse modo, até mesmo por não haver ainda em mim ausência ou necessidade alguma.

Assim, quando eu sorria, não fazia isso porque as coisas me agradassem, fazia-o por  nem saber que a consonância de tudo o que me rodeava era parte de mim assim como eu era parte de tudo.

Agora ele não me diz o  que tenho ouvido desde que aprendi a designar as coisas por palavras. Diz-me o que me cala, revela vagos naquilo que digo e me joga num silêncio que me mostra a mim mesmo  ainda em construção.

Calo-me. E meu calar é uma resignação na qual encontro sabedoria e acalanto.

Calo-me e observo com os olhos atentos e com o semblante dos tímidos. Por muitas vezes me encontro numa tristeza estranha por estar assim em tal estado de espera e silêncio e é nesses momentos que seus sussurros me fazem companhia.

Senta aqui ao meu lado, diz-me  a preparar o lugar onde na cama devo me acomodar, tenho coisas a te contar, coisas que o mundo não revela assim de pronto, coisas que não é possível ver com os teus  olhos. Por isso te peço que te abstenhas desse sentido falho e te deixes  a mim por inteiro, como se jogasse numa queda sem volta por saber que neste  meu universo não é possível a existência de um chão firme. Feche os olhos para falar comigo e abra para si mesmo os ouvidos. Estou dentro, escondido naquilo que tu nem sabes que guardas com tanto esmero. O melhor recanto de tua alma é onde moro, e serão poucos os que te olharão e terão a capacidade de enxergar isso. E quando este alguém chegar, saberás. Ele terá os olhos que te farão desejar abrir os verdadeiros teus. Aquilo que junto a mim guardei em ti será revelado e revelador, assim como o sol num dia frio, que vem trazer a luz, a vida e a espera da primeira noite após a primeira alvorada.

Por algum motivo inicial, eu acabava por entender sua voz no desejo meu de fazer coisas que vinham de mim sem que eu soubesse como. Havia uma fonte de onde tais fluídos jorravam,e eu sem por saber algum acabava por me ver envolvido na construção de elementos maravilhosos e assim me sentia muito feliz por  ter a capacidade de descobrir em mim essas dádivas.

Por vezes muitas está ao longe, e assim o percebo a ser trazido. Alcança-me em partículas para que eu sinta a imensidão de sua existência. Essas partículas me são trazidas assim, como em vento, ou despencando de um despenhadeiro, ou caindo como chuva, ou ruindo como uma grande torre .

Cada partícula sua é um universo que me atravessa. Sua soma é o que me atinge. Sua presença através de mim é o que me multiplica. Não sou mais um? Eu indago. Ès milhares, mais milhares que os infindos milhares, ele responde, com um riso travesso.

Sim, ouço sua voz e seu riso.
Não é um ouvir.
Não é um sentir ou um somente perceber.
Fecho os olhos apenas e deixo que  suas subdivisões infinitas tomem conta de mim. Sou parte delas. Elas são as formadoras daquilo que sou por agora e do que serei e do que até mesmo fui.

Vou te dizer a minha maior verdade: Eu posso falar com ele e ele me ouve como se fosse uma criança atenta ao que digo. Ele me coloca  ao seu colo e me dá carinho. È  aquele que sabe de mim antes mesmo que eu mesmo o soubesse.

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O APRENDIZ DA ROTINA 6


(Sem Assunto)

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"Num mundo de ninguém, o que eu mais queria é ficar só. Em meio ao desconhecido me sinto em casa.

         Tu pensas o quê? O que tu queres? Por que não consegues? Por que não queres?

         Hoje é dia de liberdade, hoje é o grande dia de não ter medo, afinal, o que deves?

         Faz o que tu queres. Anda nu, fala tuas besteiras, FALA ALTO, mata uma pessoa, mata a ti mesmo, dá a luz a alguém, ressuscita outro, come madeiras e flores, enfia o dedo no cérebro e muda tudo de lugar.

- Que o Centro do Universo Agora Seja um Soutien!

Faz teu pai virar um jaboti e tua mãe uma zebra, faz com que teu problema se transforme num ‘pobrema’ e tua vida num tecido.

         Porque ontem, nada disso existirá!"

Neste últimos dias, entre as tonturas... 

Sobrevivendo ao presente,

A cor do que vejo modifica a vontade e toda pequena tristeza é um portal pra todas as alegrias que me formaram.

O fim da vida de algo é o fim da espera.

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O APRENDIZ DA ROTINA 5



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A DESIGNAR UM SONHO

A madrugada me acordou. eu sinto dores muito fortes e penso que não há remedios no armário e com isso observo o alívio ser levado pela corrente - como a sandália que perdi quando criança. meu pai me olhou com um olhar de acusação, um olhar que me denunciou sendo um descuidado. mas em certo momento pôs-se a rir."vai ver que queria ser barco", ele disse. enxugou minhas lágrimas com seus dedos ásperos e comprou-me um novo par.

lembro disso com lágrimas em mim.

sinto saudades de meu pai. sinto falta de seu silêncio e de seu sorriso tão raro.


senti-me parte dele diante do choro de minha filha. quando ela  me  costuma olhar como quem pede um carinho, como quem espera de mim um gesto que não terá de ninguém, eu me sinto nessa cadeia atávica que meu pai colocou em meus pulsos.

passei a infância a atravessar rios. boa parte do que sou agora ainda atravessa rios.

agora navego naquele que definitivamente me retira das margens e me lança em busca de oceanos.
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O APRENDIZ DA ROTINA 4

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PELO COLAR DE MUSA

densidade é um líquido de demasiado amargor. retarda o que de pronto se deseja dizer. 
 
observei   a língua a lamber as sobras do beijo. estive muito perto de cair em tentação. sem poder evitar, a caça não pode retardar a fome e por estar faminta se entrega ao predador. mas não é essa queda nas garras alheias uma outra miSsão de quem aqui assume o risco de estar vivo?
 
temos uma desordenada pressa de quem se constata a evaporar. como se um lago todo evaporasse. como se no céu  se pudesse vislumbrar a existência não de nuvens, mas de oceanos imensos que flutuam sobre nossas cabeças...
 
esses pensamentos me fazem um sentir pequeno. e o que somente por agora me recupera  estribiliques, descobri isso hoje, é o que de música  provém de ti. é em ti que reencontro a nave mãe dos meus solfejos, é de ti  ao que me parece que eles brotam desde que sou entendido como gente.
 
e essa tentativa de tentar te absorver através de minha respiração é o que em desesperado fulgor me resta ainda de menino. levo partículas tuas para meu pulmões.
 
e assim me resta estre tempo de ares melhores.
 
 
e eu respiro.
 
respiro.
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O APRENDIZ DA ROTINA 3

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POR ONTEM

"Muitas vezes  me falas em navegar. supões que entremos num barco e sigamos num desrumo qualquer.  a nos libertar da margem, essa margem que nos prende. e nós, humanos, tão acostumados a somente dar passos...  é como se aquilo que somos fosse em maior parte construído por vontades".

navegar...

tenho assim pensado nestes últimos dias. tenho essa impressão de não mais estar em terra firme e ainda assim me sentir ancorado. nasci para este perigo? nasci para criar mundos  nessas certezas sem tranquilidade?

temos andado  sob o sol. temos observado as sutilezas do chafariz. estamos nos descobrindo - como se a cada dia nossa imagem fosse a ficar ainda mais nítida. temos nos divertido com nossos acidentes, com os pássaros e lagartos que nos miram. temos escolhido lugares para serem nossos lugares e deles mal temos conseguido escapar, tal é a força que imprimem contra nós. há essa fluidez que nos move, estamos em busca de receptáculos. estamos a construir uma pequena eternidade à luz que escapa de uma janela de vidros coloridos.

dividir com quem essa alegria?
 como dizer que por muito tempo as dores não me deixaram sorrir como agora? como dizer isso de que tenho a impressão de estar definitivamente desperto?


sim...  estamos a caçar desenhos de janelas que revelam a chuva. temos vislumbrado a beleza dos reflexos de um palco nos espelhos d'água. ouço o sussuro franco de sua fala, poesias em outra língua que não entendo. meu devir vacila, minhas mãos  gesticulam formas abstratas no ar. tu ries  destes gestos do mesmo modo que um recém nascido ri para os movimentos facias de um desconhecido.

e volta e meia te pergunto e te revelo que ainda assim temo o retorno a ser o que estive a ser. o  náufrago é presenteado por um barco sem remos e se deixa em deriva. sabe que estar assim levado pelo mar é melhor que estar preso numa ilha. e teme que por um capricho das procelas acabe por cair de volta a esta praia de sossego e esconderijo que por tanto tempo  o abrigou em solidão e tristeza.


o amor é atonal

eterna ressurreição, possível de se encharcar  com milhóes de significados.





ao estender as mãos, correu a mim aquela que por tanto se escondera. ela estava num labirinto e eu a encontrei. acolhi seu corpo em meu colo e algum poder em mim nela se fez efeito. e foi assim, a amei desde o início. o embrião está envolvido  por aquilo que lhe dá geração.

desde o início.


vamos construir um barco, tu me dizes. vamos construir uma asa delta. vamos embora daqui. pode haver sentido nessas frases? o malabarista com suas carambelas está sendo convidado  a bailar apertado ao corpo da  musa do baile da cidade. ele se sente ainda demasiado lento. mas sua alma corre muito mais que seu corpo. assim se reconhece os desejos como se reconhece estrelas cadentes.


ela entrou na casa dos risos proibidos e lá em seu  interior acendeu luzes, pediu sorvetes, cantarolou a balançar o corpo e riu gostosamente do polichinelo.

estamos a construir nossa nau para travessia. estamos a quase nos deixar em asa delta por sobre as cabeças pensantes. estamos a procurar sons e imagens para isso com a suspeita que temos essa energia divina a guiar tudo o que somos?







te deixei estar muito perto, dentro, daquilo que me forma. teu olhar alcança o meu titereiro e um riso sutil é o que de ti tenho como maior declaração de amor. e mesmo sedento não me deixo saciar por completo...






tenho falado que meu anseio é o que me constrói. sou uma nova estrutura. reformulada pelas mãos daquela que nasceu para moldar o que sempre fui:

um amontoado de imagens furtivas


que só agora a mim começam a tomar sentido.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O APRENDIZ DA ROTINA 2

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Deitado ainda na cama rejeitei a ideia de me levantar. Resolvi que desde hoje eu deveria reservar as manhãs ao atelier. Preciso construir os cenários do próximo espetáculo. Marília e seu veleiro vão desancorar, finalmente.

Hoje mirei por longo tempo antes de acordar minhas mãos, estão envelhecendo lentamente. A direita sempre amanhece com as articulações dos dedos travadas. Não posso aceitar que isso seja normal. Preocupa-me se isso poderia afetar minha manipulação.

Retive-me em alguns palpites quanto ao que seria o feminino enquanto examinava minha mão direita. 

Concluí que o altruísmo tem uma potência feminina. O egoísmo é enorme em sua potência masculina, tanto quanto o egocentrismo.

Olhei rapidamente ao meu redor e vi muitos homens habitando corpos com vagina. Mulheres embonecadas carregando entre as pernas pênis grossos e enormes.Surpreendi-me com esses pensamentos e isso me fez rir. Minha paixão por mulheres não esperava por essa. Ah essas mulheres com a percepção sensível de um brucutu.

Mirei meu lado e senti que a presença de Nina é em demasia feminina. Ela se nega aos floreios impostos ao seu gênero pela tradição machista. Nega-se aos folhos de cetim ou às escovas de cabelo ou chapinhas medonhas. Ela parece-me livre e anda com todos os nervos sensíveis à flor de seus olhos lagrimosos. Nestes últimos dias ela trafegou num caminho emocionalmente tumultuado ao tempo em que tive que me mostrar forte. Percebi-me precisando dela como um cara que se afoga se nota precisar de algo que flutue.

Felicita-me essa percepção. 

As mulheres de minha vida são essencialmente femininas.

Por muito tempo estive procurando a parte feminina que completaria a potencia do que crio. Acho que não procuro mais. Pergunto-me se estou procurando ainda, suponho que não mais. Não que eu tenha encontrado. 

Talvez ... que eu faça gritos ou clame por um complemento. Tenho percebido que esse complemento tem vindo de forma natural e isso tem me agradado porque tenho exercitado o desapego.



Menos triste hoje...

Acordei menos triste - afinal dias se passaram - com o corpo dolorido por ter me obrigado a descansar por mais de quarenta e oito horas. O mundo tem vindo a mim através dos que me rodeiam. Penso nisso observando Rainha Vitória que insiste em dormir aos meus pés.

Há muito a fazer.

Na rua do atelier as crianças já me tem perguntado quando começam os espetáculos.

Talvez seja assim que defino Deus. Ele não está em mim nem se alegra ou se lamenta pelos meus passos escolhas ou conquistas. Ele nem é ele ou ela, talvez nem caiba  no meu modo de dizer, ou nessa vaidade comum de muitos que dizem ser fruto do olhar dele. De algum modo, com sua fisionomia de universo, ele habita esse olhar de expectativa, que não é só meu, que não me pertence, de quem anseia pelas coisas que crio, mas que não são minhas...

Afinal não há nada que eu crie que já não exista.

Eu ficaria feliz se alguém que eu amo chegasse a mim e dissesse com a maior certeza do mundo:

Deus é feminino.

Talvez eu começasse a rir disso.

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