sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Murros e pontas afiadas 12

Puto, ao sair da editora fiquei pensando que no fundo a verdade prevaleceria. 

Escrever sempre me foi um refúgio  modesto, que nada me gerou de ganho real  senão um espírito mais leve. Mas fui levado a aceitar uma troca disso por dinheiro. No começo foi fácil, pois as vendas faziam rir, Agora a complicação aumenta porque não posso ter o controle e, pra ser honesto, não quero ter controle algum disso nem quero que ninguém assuma-o por mim. Arrr, Não quero saber quantos loucos botam os olhos nesses escritos anômalos. Eu não.

A burocracia me levaria a esperar mais algum tempo pelos espólios  que os escritos do ano passado ainda me proporcionam este ano, não é pouca coisa. A grana serviria para sustentar a casa por quase um ano, com gastos muito esquisitos e incomuns .

E qual a verdade? a verdade é que me irrita muito esperar os níqueis por algum trabalho que eu faça, mesmo que seja um trabalho que me cause algum prazer, como me é a atividade da escrita. Paciência. Pelo menos não saí de bolsos vazio e com o cheque que carrego nos bolsos, posso resolver problemas imediatos. Minha falta de tato com a grana me deixou sem comida e eu e a menina estamos há dois dias comendo ovos fritos.

Escrever me cansa, apesar do prazer. É algo como o sexo. Não me cansa a literatura que faço ou pretendo fazer, o que me cansa é apertar as teclas, observar a tela, corrigir, reler cinco mil vezes, fazer de novo e de novo. Como no sexo, da segunda vez em diante bate uma imensa vontade de parar. 

Quando eu escrevia em máquinas datilográficas era ainda pior. Nas madrugadas eu caía na piração de achar que aquele barulho que eu fazia incomodava os vizinhos. Vez ou outra eu parava e ficava em silêncio, rodando as orelhas como um gato, achando que alguém tinha dado  gritos como: Doido! Olha o Baruuuulho aí!!! Vai dormir!!!!

E a quantidade de papel rabiscado e sujo, amassado e esfolado a cobrir o chão fazia com que Markova quisesse me matar, principalmente quando eu ordenava que ela não tirasse nada do lugar, muito menos as folhas amassadas sobre o chão. "Mas como menino? Ela me indagava com os olhos arregalados.

A coisa ficou tão séria que cheguei a procurar um psiquiatra, que me disse que o problema poderia estar sendo causado pelo sono, que distorcia os ruídos das teclas e me fazia acreditar estar ouvindo gritos noturnos. Até cheguei, para cúmulo, a certa vez responder aos gritos, como um insano de cuecas e olhos vermelhos de sono que gritava ameaças na madrugada. O psiquiatra me aconselhou a dormir mais e a trocar minha hemington por um computador pessoal. Aceitar o conselho me custou muito. Fui até uma loja mas desisti. Comprei uma velha Olivetti elétrica que era ainda mais barulhenta que a hemington e, em pouco tempo os gritos dos fantasmas recomeçaram.

Pra não pirar comprei o computador.

E que merda é o computador. Mas com o tempo me acostumei e passei a produzir muito mais e com menos prejuízos psicológicos.

Agora, cá estou, e retorno pra casa com um cheque de quatro mil. Não posso dizer que vivo do que escrevo, isso é recente demais pra que eu me deleite com o luxo dessa certeza. Sempre me sustentei com que as tintas me proporcionaram. Agora a coisa está mudando. Tenho sido muito mais lento nos meus trabalhos manuais. As tintas parecem me irritar e perdi um pouco da coragem. Tenho me tornado metódico e purista, chato e entediante. Na tela na qual estou trabalhando já consumi sete longos meses. Ironicamente chamo a tela de passos de formiga.  É a segunda da espécie. A primeira fiz há dois anos e está exposta no Castro e foi lá que tive uma experiência formidável certa vez, quando sentei-me ao lado de um jovem estudante, que num bloco de papel desenhava e anotava os detalhes do que via da pintura. Vários outros jovens passavam por ali, mas estes se armavam com aparelhos celulares para registar a imagem. O primeiro jovem, o do bloco de papel, desenhava à mão livre o que via. Sua tarefa durou horas. Não se deu conta de mim, a não ser por se mostrar desconfiado com a presença de um tio que não se levantava do lado dele.

Muito engraçado como todos passavam por mim sem me reconhecer, sem saber quem eu era. Eles amavam minha pintura mas não me amavam, nem sequer reconheciam a minha cara. Sempre achei isso sensacional. Foi um tempo bom de viver.

Quando cheguei na caixa azul fui recebido com festa por Canvas. Ela pulou, abanou o rabo e quase conseguiu me jogar ao chão. Pelo clima do lugar e pela energia que emanava dele, soube que Nora estava lá. Não lhe quis incomodar, mantive-me silencioso. Ao olhar através dos cobogós percebi que a menina não estava sobre os pisos verdes. "Talvez esteja vendo um filme". Estou quase só, é quase uma maravilha. Coloquei as compras sobre o balcão e tirei lá de dentro uma tangerina.

Canvas deitou ao meu lado e deu um suspiro profundo. 

A menina entrou sinuosamente em silencio e sorriu ao me ver. Enrolou-se sentando no braço da poltrona onde eu estava e me abraçou. "Trouxe algo pra você", eu disse. "Está dentro daquela sacola ali". Ela correu à sacola abrindo-a e olhando lá dentro, dando um sorriso muito mais contente. Voltou-se novamente pra mim e disse com a voz mais doce do mundo: "Você é mesmo um bobinho. Obrigado". Saltou pra fora dos pisos verdes e desapareceu de minha vista. Antes de cochilar, ouvi os clangs do portão e murmúrio entre Markova e Nora. Tinha sido um dia comum... 

-Resolveu finalmente aposentar a besourossuco? -Nora estava vestida com flores amarelas num fundo azul real. Era assim que ela chamava minha velha amiga branca, que sempre me levou pra onde quis. Ou quase sempre me levou.

-Não.- Respondi travessamente sem abrir os olhos - Aquela eu trouxe pra você. Trate de vestir uma roupa confortável. Deixe eu descansar um pouco... hoje vou ensinar você a andar de bicicleta.

Nora riu alto. Mas eu estava tão cansado que me deixei adormecer.





quarta-feira, 20 de agosto de 2014

o passeio da alma nua 11

Enquanto a mulher fala de almas, eu entrego a minha ao espasmo que me tomou?

volto minha cabeça para o lado e não posso enxergá-la no escuro da platéia, as luzes contrárias me cegam, mas sei que lá ela não está a esperar que eu  note sua presença e por força dos olhos apertados lhe jogue para o claro. ela espera sim que aquilo que agora está em seu redor mude, e que eu reconheça aquilo que ela reconhece. assim desse modo sua vida inteira seria a sua vida, sem carecer da minha.
devo encontrá-la no mesmo escuro onde estou. Dois perdidos a tatear os caminhos. as retinas a permanecer dilatadas em busca de uma figura que se possa definir.
suas mãos tocam algo. faz isso para perceber que deve permanecer assim? ou faz isso para se certificar que de si mesma já se sente em dois mundos? uma aflição isso, uma perda de controle.

nos desvarios da cena só me aprimoro em apertar os olhos... e buscar disfarçadamente por ela


apenas isso. imploro por um acorde.

desejo...

mas a emoção disso não habita somente o corpo. nisso o corpo é pequeno... para a alma sobra o tamanho desse universo novo.


magnífica contradição não imaginar o oposto: é a alma que possui ao corpo. É a alma que possui ao corpo...




Ela reconhece o mundo nesse modo de ver que também é meu? não encontro seus olhos pois sei estão já em mim e se manterão assim até o último dia no qual mais nada conseguirei manter sob o tecido? ou será tolice?


se me obrigarem a dar um nome a isso que me faz buscá-la, a isso darei um singelo nome, um singelo qualquer nome. mas um nome qualquer não é qualquer coisa.faço-o como modo único de trazer à luz tal coisa que desconheço de semblante. sensação risível de nem ter. subjulgo total do que é substância. O que digo? O que penso?

ela dorme na minha procura. dorme como dorme um velho vigia do cemitério. dorme tranquila que nada lhe pode acordar.


e já me cabe na idéia o nome daquilo que por ela  tenho, mas ainda é o som desse nome o que me falta.


portanto, no silencio habita o que significa o que por ela tenho.
que fique o silencio com essa missão de calar a fraqueza dos verbos.





estamos todos num teatro. Um grande espetáculo acontece.

diante de nós uma mulher se enrola num tecido preto e fala de almas. penso que por muito tempo tenho tentado entender esse universo que digo divino das almas. e nisso penso que por muito tempo tenho entendido que me senti sozinho numa busca tola. e essa sensação tinha algo muito próximo de meu ânimo, como tal ânimo fosse esse sentir que não compreendo. pois diante do que me é incompreensível, sinto minha alma me surgir como se realmente fosse minha alma. como se eu fosse seu dono.
a tranquilidade da voz da mulher sobre o palco me revela coisas que eu nunca pensei que acreditasse. e assim fecho os olhos como a saber sem precisar ouvir. ter o entendimento claro sem precisar ouvir. ter o entendimento claro sem precisar ver. ter entendimento claro sem precisar sentir na pele. ter o entendimento claro sem precisar entender. ter o entendimento claro sem dele precisar.
respirar apenas.

e assim nem me dou conta, está nua por debaixo do tecido. assim como estamos nus todos nós. a mulher das almas está nua.

seu falar é compassado, é a voz de um rabi que se aproxima dos  ouvidos do tolo e diz verdades de um olho só, que parecem ter sido em tempo longo apenas suspeitas de antigos eremitas.

e eu sei que ela está a assistir e ouvir também a mulher nua do lençol e das almas, e que nos seus pensamentos parte de minha presença se movimenta como o corpo nu da atriz. seu olhar malmente me busca por dentro da mente, ela não se move. não move o olhar. deve se deliciar com a viagem que faz naquilo que suspeita ser o que sinto ao estar também ali. ou será que esses labirintos imaginários são meus, somente meus? percebo isso com um contentamento retraído, como se ainda soubesse que apesar de me movimentar dentro daquele corpo, ainda assim, essa movimentação não lhe seria capaz de libertar como eu sei que poderia.


muito devo ao olhar que me criou

pedras soltas.o olhar.tomou-me como primeira expectativa e nela manteve-se vivo.
assim ressuscita o que de melhor no bosque floresceu.



das cartas de papel o jogador noturno e solitário fazia um simples castelo


levou a mera distração como missão maior. assim se seguiu o tempo...


com o que sentiu construiu um lugar cômodo

silencioso.


espécie esquisita de refugio sem fuga



exílio distante que não causa afastamento corpóreo

espécie branda de corpo e alma...
corpo escondido em tecidos


e alma nua.

O velho velhuomem 10

"Matas um mundo melhor quando matas os teus sonhos, diria Velhuomem. Deixas por vir um mundo pior, quando poupas um desgraçado".

Insônia 9

De folhear e folhear em meus escritos, a menina recitou a meus ouvidos as palavras que escrevi há muito tempo:

Por tanto tenho cismado que a verdade e o tempo se sustentam embriagados

quando o teclado preto me ilumina os tipos, na insônia
fico certo que nasci pra perder o sono
que acordo pra lembrar dos sonhos

melhor morrer que esquecer quem fomos


controlo na cabeça o remoto temor da tua feiura
esqueço o tropeço que arrancou-me a unha no caminho de seixo
resmungo e me queixo que não sou qualquer coisa
pra que se guardem meus passos em caixas de brinco
pra que ressecado o beijo refloresça e me vingue


No som da sala de cinema tocava uma música pop. Foi como me ver idiotizado numa vitrine ou assombrado por inspirações passadas.

De qualquer modo pude sentir na respiração da declamante um pedaço do respirar profundo que me fez outrora sucumbir em sentimentalidades.

A consequência 8




Não sei o que levou você a acertar dessa vez. Foi por sua culpa que ela se aproximou de mim. E por essa culpa devo agradecer.

Imagine que depois de uma longa batalha, depois do muito sangue ao chão e morte colorindo os campos, dois guerreiros feridos se encontram e percebem que precisam juntos fazer o caminho de volta pra casa. Ambos feridos, ambos apoiando o corpo cambaleante e febril do outro, ambos tendo que cuidar das feridas de seu companheiro. Já na metade do longo caminho, os dois sobreviventes percebem que devem um ao outro o dom da vida e o milagre valioso da sobrevivência.

A caixa azul comporta nossos sonhos. E nossos sonhos voam da caixa azul para o mundo.

Neste exato momento, Nora respira dentro da caixa azul. Eu estou aqui fora como quem prende a respiração. O ar daqui é contaminado. O ar de lá é puro, exala de nossos corpos. Exala de nossas criações e suspeitas.
A dois passos da caixa azul, no teatro velho, tudo o que criamos na caixa azul ganha o tempo e a ação. E essa mágica eu não divido com mais ninguém que não seja Nora.

Nora já teve outros nomes. Mas nunca deixou de ser quem era. Quando ela olhou dentro de meus olhos depois que a convidei a entrar na caixa azul comigo, vi lá dentro a paz da qual sempre fui carente. Ela não me fez promessas e ainda assim se entregou. Todas suas solenes palavras de amor nunca foram  farsa e momento. E todas suas solenes palavras de amor sempre tiveram o dom da sobriedade sem cismas.

Com Nora, surgiu em mim o que nos leva a querer doar parte do que somos a quem não tem quase nada de si mesmo. E toda vez que nos finais de tarde sento-me na cadeira de balanço e me deixo fruir o tecido que tecemos... percebo suas marcas no azul da caixa azul.

-O que é ela pra você? – Certa vez a menina indagou.

-O que eu não sou sem ela... – respondi

-E que você não é sem ela? – insistiu minha menina.

-Nem um terço disso. - Apontei para as grandes paredes azuis. -E isso nem é tudo. Isso é apenas o que podemos ver. Se você pudesse entender tudo o que ela é em mim, veria que sem ela tudo seria ainda a mesma velha decepção. Pessoas que abandonei, que me abandonaram... promessas que não cumpri, mentiras que me disseram...

andaimes 7

É assim que eu sou?

Estou bem?

Talvez eu deva me fazer essa pergunta do alto de uma colina, mirando o vasto mundo muito abaixo dos meus pés. Inconquistável. Inquestionável.

Ou quem sabe eu deva me fazer essa pergunta a olhar uma pintura perdida e triste numa galeria de paredes brancas. Como se por uma maldição eu enxergasse ao invés de traços em acrílicas, óleos e nanquins, pedaços sangrentos da carne do pintor. Um inconseqüente inconformado que arranca pedaços de si mesmo pra dizer ao mundo os resultados de sua egocentria.

Estou bem?

Pense...

Eu poderia responder qualquer coisa entre uma tarefa e outra de minha vida, de minha rotina. Para encurtar a conversa respondo então  que sim, que estou bem, porque não poderia haver outra maneira de estar, já que as escolhas nunca foram somente minhas. Tive que entender os caminhos que tomei. Tive que cerrar os dentes para suportar escolhas que não eram minhas, que eram contrárias a minha felicidade.

Melhor seria responder onde estou e onde está você. Eu diria: aqui você não está... e isso poderia encher seu espírito de orgulho ou de lástima. De orgulho, se sofro sem sua presença onde estou e você não está; lastimoso, se estou feliz onde estou e você não está.

Caso me indagassem ainda ontem a respeito de meus sabores a respeito de suas marcas no resto de minha vida, eu responderia que tais coisas, estas marcas, são do universo inteiro as únicas  que eu gostaria de extrair completamente de meu ânimo, de minha alma. Mas a lógica é que depois dessa extração de tais marcas, todas as consequências delas me seriam também arrancadas.

-Quando você fala de conseqüências, pai, você fala de mim?

Ela me fez essa pergunta com algumas veias avermelhadas em seus olhos.

-Sim. Não que você seja uma conseqüência disso assim... diretamente. Mas se você parar e pensar, verá que nossa separação definitiva foi sim uma consequência disso. E essa separação, todos esses anos em que não pude ver você crescer causaram esse agora, esse momento de descoberta um do outro, que estamos vivendo.

Deixou escapar um leve gemido, desses que executamos depois de ter entendido algo em parte – Você gostaria então que ela estivesse ainda aqui? – Perguntou.

Eu precisaria de muito tempo pra pensar de quem ela estava falando. E minha resposta depois de tanto tempo pra pensar, possivelmente não seria honesta.

Se naquela noite o medo não me tivesse roubado da estrada, eu apertaria o pedal da direita do pequeno carro azul, passaria por sua janela...
Se antes disso  eu não tivesse escancarado as portas pro farsante e seu disfarce de donzela... Se eu não tivesse acreditado nas minhas profecias... Se eu tivesse seguido em frente em muitos projetos que abandonei...

Mudariam os passos dos fatos?

Agora tenho que ficar supondo quais seriam as perguntas que você me faria, já que sua presença ruiu ao meu redor. Tive que supor você quase sempre, diante  a todas as minhas respostas. Você se tornou o subjuntivo dessa literatura.

Tive que dizer a minha filha uma coisa qualquer a respeito da panela de pressão. Ela sacou logo que eu não queria mais falar a respeito daquilo.

Ela sabia o que aquilo me causava. Mal começara a ler meus textos e já sabia disso.

...

Pelas minhas contas ainda estou no prejuízo, apesar de que logo ali a menina brinca com os gatos que moram no que sobrou do jardim. E pensar que quase vendi a casa; e pensar que a folhinha pendurada no corredor me conta mais de duzentos dias. A ferida está aberta e tudo é fuga, analgésicos e procura por sombra. Estar aposentado não pode ser tão ruim. Sobra-me tempo para cultivos bobos, para me exercitar em viver de um modo que aponte os dedos para as culpas das novas gerações. Todas piores que a minha, é bom que se diga.

Se a menina me indagasse se eu estava preparado para sua volta repentina eu diria que ainda não. Talvez por isso ela tenha vindo sem me avisar. É silenciosa, tranquila... se eu tivesse um terço da sua  sabedoria caberia muito mais serenismo em mim. Quem sabe até mais bonito. Mais moço.

O cara que eu não fui está lá fora ganhando a vida, com conversas enlatadas e sonhos em conserva, num bom emprego,  dizendo que não sentir falta de grana permite a qualquer um que tenha ímpetos criativos tornar-se um criador melhor. Então, a nuance de mendigo em mim diminuída, melhoraria aos olhos dos outros a minha arte. E quem não entendesse minha arte seria tomado por mim como incapaz, mal informado e, inculto. Ontem a menina,  depois de me observar por muito tempo a trabalhar numa tela de três metros de altura e cinco de largura, sussurrou-me alguma coisa que dizia algo como ter orgulho. Se você abrir a geladeira vai ver que hoje almoçaremos ovos fritos. Como pode você ter orgulho disso? Ela sorriu pra mim sem tirar os olhos do livro que lia. Lá estava ela, numa bancada do atelier, lendo originais ainda escritos numa hemington. No começo ela riu por saber que eu cheguei a usar diariamente uma máquina datilográfica. Ela nunca tinha visto uma. Fez uma festa dos diabos quando lhe mostrei uma Olivetti mais recente, que só usei durante uns dois anos antes do primeiro computador.

-Escrevi isso quando tinha a sua idade – Falei de costas utilizando um pincel largo molhado numa mistura que parecia não estar dando certo. Ela pareceu não ter me ouvido. Vi que aquelas duas primeiras pinceladas não funcionaram. Quando isso acontece, devo decidir parar ou continuar, se eu continuar, o processo pode durar horas. Resolvi parar pra cuidar do almoço.

-Você nunca teve a minha idade, pai – Quando ela disse isso,  estava tão perto de mim, que chegou a me assustar. Eu acabara de descer do andaime. Fez-me parar, agasalhando minha cara entre suas mãos e sorriu. Para olhar pros seus olhos, tive que olhar pra cima. Era uma filha muito mais alta que seu pai, talvez por causa dessas comidas modernas. Esfregou com os polegar os cantos dos meus olhos – Deixe que eu faço isso – sentenciou sem me dar a chance de negar. –Sei que você precisa continuar o que está fazendo. Já conversamos sobre isso e eu entendo o seu processo.

Quis que ela fosse embora. Quis que ela largasse tudo ali e me deixasse ficar sozinho. Ela estava me impressionando. Pra ser mais dramático, minha menina estava me assustando.


Mas como respirar sem ela a salvo?

Ela não cozinha muito bem. Se sou sincero com todo mundo, não posso deixar de ser com essa menina.

-Vamos fazer juntos. Sua comida precisa melhorar. Além do mais preciso deixar secar aquelas pinceladas ali ó. Ta vendo? Errei, vai demorar muito pra consertar, talvez a noite toda,  se eu não parar pra me alimentar agora, vou passar pela madrugada com uma sensação horrível de que existe um buraco no meu abdômen.

...

Estou bem?

Faço-me essa pergunta, mas coloco nela a sua voz. 

Foda-se. Amanhã vou naquela porra de editora, vou sair dela com um cheque e vou mergulhar no mundo. No final do dia estarei dormindo numa sala de cinema, entediado com uma aventura qualquer, ao lado da menina, que tem uma idade que eu nunca tive.

-Estão prontos,- ela gritou.Os ovos ainda gemiam na frigideira. Pareciam ter um gosto horrível.- São quatro horas, você precisa comer.

-Não encha o saco! Vá dormir, como uma adolescente normal!


Ela riu. Já estava aos pés do andaime com uma xícara de chocolate quente e um prato com ovos, queijos e azeitonas fatiadas. Desci e lhe apertei, pois naquele momento o meu amor por ela não se conteve em mim.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Justa 6

-Se você soubesse... 
-Eu sei.
-Não sabe mesmo. Digo... não pode saber sem sentir o que sinto.
-Não foi sua culpa.
-Não é verdade. Mas não interessa mais... o tempo está passando. Preciso tomar conta do teatro velho. Passei a vida negando isso. Tomar conta do teatro velho é como me esconder. Não tenho certeza se é isso que deve ser feito. Numa terra de malditos mamulengos, os marionetes vagam lentos, como dementes amarrados por fios.
- Nunca conheci ninguém que falasse mais coisas estranhas que você. Você acha que as pessoas podem entender o que você está dizendo? O que quer dizer isso de marionetes vagando lentos?
Ela por vezes me irrita. Parece-me insolente. Sei que me levo muito a sério. Talvez eu precise mesmo de alguém que faça piadas de minhas falas dramáticas.
-Não posso levar a sério uma menina que  fala coisas enquanto faz outras.
Ela levantou os olhos e olhou pro céu.


-Pronto, olhei pro céu. Pareceu poético pra você?
Disse isso antes de entrar, quase me deixando a falar sozinho. De repente colocou a cabeça na janela.
-Aquele acidente teria acontecido mesmo se você não estivesse lá. Você não tinha o poder pra fazer aquilo não acontecer.
Eu tinha sim. Eu tinha o poder de não ter deixado aquilo acontecer. Ela pode vir com essas ladainhas juvenis, nada vai mudar o fato de que eu poderia ter evitado aquilo. E isso, essa certeza,   é o que ainda me tira o sono.

sábado, 9 de agosto de 2014

Apologias 5

-Não precisa pedir perdão nenhum - ela disse encostada ainda ao portão. A cadela latiu e em seguida mostrou-se tão contente que eu jurava que ela estivesse rindo. -O marinheiro que cruza o mundo precisa estar com todos os nós das âncoras desatados.

-Quando você saiu?- Perguntei ainda na mesma posição, com uma caixa de papelão no colo ao centro do pequeno gramado. -Devia ter me avisado.

-Se eu tivesse lhe avisado, você passaria os dias planejando coisas pra me dizer.
-E o que quer que eu diga?
-"Entre", seria um bom começo.

Tiver que rir.

-Entre. Ela não vai lhe morder.

A cadela passou a saltar e se enroscar pelo chão tomada por uma felicidade que parecia ser maior que a minha. Só parecia.

Naquele mesmo instante, todo o jardim foi tomado por um outro perfume.