quarta-feira, 20 de agosto de 2014

andaimes 7

É assim que eu sou?

Estou bem?

Talvez eu deva me fazer essa pergunta do alto de uma colina, mirando o vasto mundo muito abaixo dos meus pés. Inconquistável. Inquestionável.

Ou quem sabe eu deva me fazer essa pergunta a olhar uma pintura perdida e triste numa galeria de paredes brancas. Como se por uma maldição eu enxergasse ao invés de traços em acrílicas, óleos e nanquins, pedaços sangrentos da carne do pintor. Um inconseqüente inconformado que arranca pedaços de si mesmo pra dizer ao mundo os resultados de sua egocentria.

Estou bem?

Pense...

Eu poderia responder qualquer coisa entre uma tarefa e outra de minha vida, de minha rotina. Para encurtar a conversa respondo então  que sim, que estou bem, porque não poderia haver outra maneira de estar, já que as escolhas nunca foram somente minhas. Tive que entender os caminhos que tomei. Tive que cerrar os dentes para suportar escolhas que não eram minhas, que eram contrárias a minha felicidade.

Melhor seria responder onde estou e onde está você. Eu diria: aqui você não está... e isso poderia encher seu espírito de orgulho ou de lástima. De orgulho, se sofro sem sua presença onde estou e você não está; lastimoso, se estou feliz onde estou e você não está.

Caso me indagassem ainda ontem a respeito de meus sabores a respeito de suas marcas no resto de minha vida, eu responderia que tais coisas, estas marcas, são do universo inteiro as únicas  que eu gostaria de extrair completamente de meu ânimo, de minha alma. Mas a lógica é que depois dessa extração de tais marcas, todas as consequências delas me seriam também arrancadas.

-Quando você fala de conseqüências, pai, você fala de mim?

Ela me fez essa pergunta com algumas veias avermelhadas em seus olhos.

-Sim. Não que você seja uma conseqüência disso assim... diretamente. Mas se você parar e pensar, verá que nossa separação definitiva foi sim uma consequência disso. E essa separação, todos esses anos em que não pude ver você crescer causaram esse agora, esse momento de descoberta um do outro, que estamos vivendo.

Deixou escapar um leve gemido, desses que executamos depois de ter entendido algo em parte – Você gostaria então que ela estivesse ainda aqui? – Perguntou.

Eu precisaria de muito tempo pra pensar de quem ela estava falando. E minha resposta depois de tanto tempo pra pensar, possivelmente não seria honesta.

Se naquela noite o medo não me tivesse roubado da estrada, eu apertaria o pedal da direita do pequeno carro azul, passaria por sua janela...
Se antes disso  eu não tivesse escancarado as portas pro farsante e seu disfarce de donzela... Se eu não tivesse acreditado nas minhas profecias... Se eu tivesse seguido em frente em muitos projetos que abandonei...

Mudariam os passos dos fatos?

Agora tenho que ficar supondo quais seriam as perguntas que você me faria, já que sua presença ruiu ao meu redor. Tive que supor você quase sempre, diante  a todas as minhas respostas. Você se tornou o subjuntivo dessa literatura.

Tive que dizer a minha filha uma coisa qualquer a respeito da panela de pressão. Ela sacou logo que eu não queria mais falar a respeito daquilo.

Ela sabia o que aquilo me causava. Mal começara a ler meus textos e já sabia disso.

...

Pelas minhas contas ainda estou no prejuízo, apesar de que logo ali a menina brinca com os gatos que moram no que sobrou do jardim. E pensar que quase vendi a casa; e pensar que a folhinha pendurada no corredor me conta mais de duzentos dias. A ferida está aberta e tudo é fuga, analgésicos e procura por sombra. Estar aposentado não pode ser tão ruim. Sobra-me tempo para cultivos bobos, para me exercitar em viver de um modo que aponte os dedos para as culpas das novas gerações. Todas piores que a minha, é bom que se diga.

Se a menina me indagasse se eu estava preparado para sua volta repentina eu diria que ainda não. Talvez por isso ela tenha vindo sem me avisar. É silenciosa, tranquila... se eu tivesse um terço da sua  sabedoria caberia muito mais serenismo em mim. Quem sabe até mais bonito. Mais moço.

O cara que eu não fui está lá fora ganhando a vida, com conversas enlatadas e sonhos em conserva, num bom emprego,  dizendo que não sentir falta de grana permite a qualquer um que tenha ímpetos criativos tornar-se um criador melhor. Então, a nuance de mendigo em mim diminuída, melhoraria aos olhos dos outros a minha arte. E quem não entendesse minha arte seria tomado por mim como incapaz, mal informado e, inculto. Ontem a menina,  depois de me observar por muito tempo a trabalhar numa tela de três metros de altura e cinco de largura, sussurrou-me alguma coisa que dizia algo como ter orgulho. Se você abrir a geladeira vai ver que hoje almoçaremos ovos fritos. Como pode você ter orgulho disso? Ela sorriu pra mim sem tirar os olhos do livro que lia. Lá estava ela, numa bancada do atelier, lendo originais ainda escritos numa hemington. No começo ela riu por saber que eu cheguei a usar diariamente uma máquina datilográfica. Ela nunca tinha visto uma. Fez uma festa dos diabos quando lhe mostrei uma Olivetti mais recente, que só usei durante uns dois anos antes do primeiro computador.

-Escrevi isso quando tinha a sua idade – Falei de costas utilizando um pincel largo molhado numa mistura que parecia não estar dando certo. Ela pareceu não ter me ouvido. Vi que aquelas duas primeiras pinceladas não funcionaram. Quando isso acontece, devo decidir parar ou continuar, se eu continuar, o processo pode durar horas. Resolvi parar pra cuidar do almoço.

-Você nunca teve a minha idade, pai – Quando ela disse isso,  estava tão perto de mim, que chegou a me assustar. Eu acabara de descer do andaime. Fez-me parar, agasalhando minha cara entre suas mãos e sorriu. Para olhar pros seus olhos, tive que olhar pra cima. Era uma filha muito mais alta que seu pai, talvez por causa dessas comidas modernas. Esfregou com os polegar os cantos dos meus olhos – Deixe que eu faço isso – sentenciou sem me dar a chance de negar. –Sei que você precisa continuar o que está fazendo. Já conversamos sobre isso e eu entendo o seu processo.

Quis que ela fosse embora. Quis que ela largasse tudo ali e me deixasse ficar sozinho. Ela estava me impressionando. Pra ser mais dramático, minha menina estava me assustando.


Mas como respirar sem ela a salvo?

Ela não cozinha muito bem. Se sou sincero com todo mundo, não posso deixar de ser com essa menina.

-Vamos fazer juntos. Sua comida precisa melhorar. Além do mais preciso deixar secar aquelas pinceladas ali ó. Ta vendo? Errei, vai demorar muito pra consertar, talvez a noite toda,  se eu não parar pra me alimentar agora, vou passar pela madrugada com uma sensação horrível de que existe um buraco no meu abdômen.

...

Estou bem?

Faço-me essa pergunta, mas coloco nela a sua voz. 

Foda-se. Amanhã vou naquela porra de editora, vou sair dela com um cheque e vou mergulhar no mundo. No final do dia estarei dormindo numa sala de cinema, entediado com uma aventura qualquer, ao lado da menina, que tem uma idade que eu nunca tive.

-Estão prontos,- ela gritou.Os ovos ainda gemiam na frigideira. Pareciam ter um gosto horrível.- São quatro horas, você precisa comer.

-Não encha o saco! Vá dormir, como uma adolescente normal!


Ela riu. Já estava aos pés do andaime com uma xícara de chocolate quente e um prato com ovos, queijos e azeitonas fatiadas. Desci e lhe apertei, pois naquele momento o meu amor por ela não se conteve em mim.

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