segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

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Se eu tivesse que colher as lembranças, deixaria secando ao sol como renegadas as que mais me acompanham. Dentre elas estaria a lembrança do olhar do primeiro homem do qual tirei a vida. Era de início um olhar de descrença; um olhar de quem indaga: “não ouvistes falar de um profeta galileu que pregava uma paz nas boaventuras do bem?”

Apesar de corajoso em si mesmo, o homem tentava se defender agarrando a lâmina. Um fim desastroso para suas mãos. Há quem seja assim no dia a dia de sua vidinha mansa; agarra o objeto que lhe trará a morte, como se agarrasse a um tesouro. Vejo assim porque sei. Quando o homem soltou finalmente a lâmina, apertei a ponta da faca contra seu peito. Eu poderia parar. Eu poderia desistir. Ele poderia gritar por clemência e deixar de me olhar como se eu fosse o condenado. Nada disso ocorreu.

Encostei meus ouvidos no seu peito e ouvi. Aos poucos seu coração parava e finalmente veio o silêncio mórbido. Não me senti um libertador. Por dois segundos apenas deixei de pensar em tudo. Mas no tempo restante seguinte, tratei de limpar de mim as marcas que o corpo que esfacelei me imprimira na pele.

Quantas criaturas matamos dentro de nós?


Quantos nós nos atam para sempre a essas criaturas mortas?

Nos meus mandamentos que aprendi nas ruas, na infância perversa da grande feira, não havia um que nos ordenasse a não matar.

Matas um mundo melhor quando matas os teus sonhos, diria Velhuomem. Deixas por vir um mundo pior, quando poupas um desgraçado.

O primeiro homem que matei tinha um olhar desentendido antes da morte. Uma alma perdida presa a um coração perdido. Um corpo doente e febril dentro de linhos e disfarçado com fragrâncias estrangeiras. Uma cabeça cheia de miséria, coberta por um panamá novinho em folha.

Lavei-me do sangue no rio diante da grande feira. Naquela noite de maré baixa dormi aliviado na tranquila toca dos morcegos. Havia um certo medo em mim. Havia sim. Mas do medo eu não me lembro. arrependo-me de não ter tomado posse daquele chapéu panamá, novo, que nem tinha ainda se apegado à forma da cabeça viva que por tão pouco tempo cobrira.
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Se eu tivesse que colher as lembranças, deixaria secando ao sol como renegadas as que mais me acompanham. Dentre elas estaria a lembrança do olhar do primeiro homem do qual tirei a vida. Era de início um olhar de descrença; um olhar de quem indaga: “não ouvistes falar de um profeta galileu que pregava uma paz nas boaventuras do bem?”

Apesar de corajoso em si mesmo, o homem tentava se defender agarrando a lâmina. Um fim desastroso para suas mãos. Há quem seja assim no dia a dia de sua vidinha mansa; agarra o objeto que lhe trará a morte, como se agarrasse um tesouro. Vejo assim porque sei. Quando o homem soltou finalmente a lâmina, apertei a ponta da faca contra seu peito. Eu poderia parar. Eu poderia desistir. Ele poderia gritar por clemência e parar de me olhar como se eu fosse um condenado. Nada disso ocorreu.

Encostei meus ouvidos no seu peito e ouvi. Aos poucos seu coração parava e finalmente u silêncio mórbido. Não me senti um libertador. Por dois segundos apenas deixei de pensar em tudo. Mas no tempo restante seguinte, tratei de limpar de mim as marcas que o corpo que esfacelei deixara em mim.

Quantas criaturas matamos dentro de nós?


Quantos nós nos atam para sempre a essas criaturas mortas?

Nos meus mandamentos que aprendi nas ruas, na infância perversa da grande feira, não havia um que nos ordenasse a não matar.

Matas um mundo melhor quando matas os teus sonhos, diria Velhuomem.

O primeiro homem que matei tinha um olhar desentendido antes da morte. Uma alma perdida presa a um coração perdido. Um corpo doente e febril dentro de linhos e disfarçado com fragrâncias estrangeiras. Uma cabeça cheia de miséria, coberta por um panamá novinho em folha.
Lavei-me do sangue no rio diante da grande feira. Naquela noite de maré baixa dormi aliviado na tranquila toca dos morcegos. Havia um certo medo em mim. Havia sim. Mas do medo eu não me lembro.

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Se eu tivesse que colher as lembranças, deixaria secando ao sol como renegadas as que mais me acompanham. Dentre elas estaria a lembrança do olhar do primeiro homem do qual tirei a vida. Era de início um olhar de descrença; um olhar de quem indaga: “não ouvistes falar de um profeta galileu que pregava uma paz nas boaventuras do bem?”

Apesar de corajoso em si mesmo, o homem tentava se defender agarrando a lâmina. Um fim desastroso para suas mãos. Há quem seja assim no dia a dia de sua vidinha mansa; agarra o objeto que lhe trará a morte, como se agarrasse um tesouro. Vejo assim porque sei. Quando o homem soltou finalmente a lâmina, apertei a ponta da faca contra seu peito. Eu poderia parar. Eu poderia desistir. Ele poderia gritar por clemência e parar de me olhar como se eu fosse um condenado. Nada disso ocorreu.
Encostei meus ouvidos no seu peito e ouvi. Aos poucos seu coração parava e finalmente u silêncio mórbido. Não me senti um libertador. Por dois segundos apenas deixei de pensar em tudo. Mas no tempo restante seguinte, tratei de limpar de mim as marcas que o corpo que esfacelei deixara em mim.
Quantas criaturas matamos dentro de nós?
Quantos nós nos atam para sempre a essas criaturas mortas?

Nos meus mandamentos que aprendi nas ruas, na infância perversa da grande feira, não havia um que nos ordenasse a não matar.
Matas um mundo melhor quando matas os teus sonhos, diria Velhuomem.
O primeiro homem que matei tinha um olhar desentendido antes da morte. Uma alma perdida presa a um coração perdido. Um corpo doente e febril dentro de linhos e disfarçado com fragrâncias estrangeiras. Uma cabeça cheia de miséria, coberta por um panamá novinho em folha.
Lavei-me do sangue no rio diante da grande feira. Naquela noite de maré baixa dormi aliviado na tranquila toca dos morcegos. Havia um certo medo em mim. Havia sim. Mas do medo eu não me lembro.

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

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Depois de quase desistir e voltar à insônia, dissolvi o resto da noite nesses bocejos que enchem os olhos de lágrimas. Tive quase que me arrastar na busca dos remédios cor de contas. Eles se escondiam nas dezenas de velhas e trancafiadas gavetas do meu quarto, onde blatídeos a tudo empesteavam. 

Se quase tudo tinha um cheiro entre o mofo e a naftalina, era porque tudo, inclusive eu, estava guardado ali, como num baú de insignificâncias, cultivadas na vã espera de ressecar aos poucos ao invés de simplesmente morrer.

Ressecar e permanecer eterno, suspeito, é como um sonho dos que envelhecem. 

Como negar um medo, o mesmo que até há pouco chamei de infantil, um medo que me acompanha como uma tocha que mesmo nos ventos mais fortes não se apaga?

E os remédios também davam ares de insuficiências. A última dose, anterior à noite de agonias, não tivera efeito e por causa disso não apaguei como desejara. E eu me vi apenas impotente, como se enterrado vivo, sentindo na inércia, os insetos me  roubarem  em agonia, o sangue, sem que eu os pudesse esmagar.

 Desapontado, concluí que eu carecia adicionar mais cores ao punhado de psicotrópicos, barbitúricos, calmantes... antidepressivos... analgésicos inúteis e fugas.

Adicionar mais e mais cores às minhas fugas. Uma alegre ironia dos planos.

Enfim, engoli a dose seguinte, três goles a mais, a garganta seca. 

No peito a suspeita: não seria apenas covardia? E se fosse um tiro? Na garganta? Uma corda que separasse o pescoço da espinha, ou mesmo um gás que me estourasse o peito? 

O amargo da química escorregava como um bolo travoso e insuportável. Por dois segundo fui senhor de minha razão, senhor das minhas últimas decisões.

E tudo veio surgindo. Fantasmas em mim. Vinham surgindo como surgem os arrepios...

E o arrependimento, apenas um sonho distante no qual eu poderia ter me agarrado, uma quimera invencível diante de um fraco...

Aos heróis de si mesmos, tudo o que afaga mora no passado.

E foi assim...

Descobri que o futuro é um não querer pensar por já se estar farto da espera; um tecido negro que encobre o jardim florido; um pássaro livre que nunca voa porque não se reconhece sem a flor do chão.
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Somente a ponta dos seus dedos na minha pele
E se me toca
E se acredito que há outros universos
E se me entende
E se encontra o meu olhar no que digo
E se ouve a minha voz
E se divide comigo o ar de toda a terra

Somente a ponta dos seus dedos na minha pele
E se cada célula de meu corpo se sentir viva
E se minha saliva ressecar sobre minha língua
E se meu coração se despedaçar sem ânimo
E se eu perder a minha alma antes do  por do sol
E se depois da alvorada descobrirmos que somos os últimos

Somente a ponta dos seus dedos na minha pele
E se quisermos libertar o mundo de tudo o que fomos
E se quisermos decretar o fim dos tempos
E se nos tornarmos cegos para as luzes do dia
E se o espaço não puder mais ser medido
E se todas essas nossas lanternas não nos livrarem do escuro
E se descobrirmos que somos inseparáveis

Somente a ponta dos seus dedos na minha pele
E se não restar mais sono entre o fim do dia e o fim da noite
E se o mais negro oceano não mais carecer de nossas travessias
E se a liberdade enfim se tornar uma palavra vazia
E se a vida realmente perder toda a sua vida
E se eu entender que do ar eu jamais deveria ter saído
E se me vier a certeza de que vou continuar pra sempre caindo
E se eu cair assim preso à pedra que é este planeta
E se eu  der a tudo isso que sinto um nome simples
E se esse nome simples for a razão de tudo o que faço
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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

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INTRODUÇÃO RESMUNGADA POR UMA TERCEIRA VOZ

"Sapatos voadores  pelo céu envolviam os pés de João N.

Talvez ele tenha sido invadido por alguma doença; por um desequilíbrio do seu corpo, que parecia não mais funcionar direito;  talvez estivesse desgastado pelos anos de dores.

Uma indisposição. 

Uma doença repentina, tropical.

Quem sabe...

Sapatos voadores? isso só pode ser sonho ou delírio. Certo, eu não poderia ter pensado em coisa mais absurda. Mas tudo sempre pode ser nada mais que ilusão. No caso de João N, alucinação;  resultado de tantos vícios químicos de outrora. Esse cara nunca foi fácil.

Meus sapatinhos, ele falava dormindo. Meus sapatinhos, presentes de Deus.

Quando eu colocava os pés naqueles frágeis sapatos de papel, eu me sentia invadido por uma insuportável  vontade de voar.  Nada mais humano que esse desejo, mesmo na loucura: desejo de dominar o que nem se pode alcançar”.


       
Tente começar a fazer o que fiz, se tiver certo gosto para a escrita; se gostar de passar o tempo a escrever doces bobagens. Escreva essas bobagens em folhas de papel que resistam ao tempo; que resistam aos anos tanto quanto pode resistir a sua própria pele. Se bem olharmos, nossa pele é como uma grande página escrita que nos encobre. Agora, busque por esconderijos invioláveis pela casa; depois esqueça completamente desse tesouro e, continue vivendo o seu dia após dia.

Deixe que se passe a vida quase inteira, então, se ainda estiver vivo, desconfiando que muito já não durará e, com forças suficientes para vagar pela casa, dê início a uma busca histórica pelos compartimentos secretos. Nada de viagens exploratórias para  distantes Egitos, Grécias ventiladas e belas ou norte de Áfricas cheias de pegadas e desertos. Todo o mundo ficará pequeno, menor que sua casa. Os mistérios da vida estão enterrados no seu próprio domínio e isso não poderia ser mais fascinante. Diversão lenta e tranquila, emoção garantida pra uma velhice que só seria cheia de tédio. Os seus escritos de menino serão sua última salvação, seu último rito.

Durante minhas explorações encontrei muitos blocos de folhas de papel no sótão. Ao todo, conferi 3.203 folhas datilografadas, separadas por poéticos títulos; rabiscadas, repetidamente corrigidas e, muitas quase que completamente destruídas pelo passar dos milhares de dias. Mas por agora, começo a tentar me entender pelo achado mais bem conservado, a respeito do qual estou escrevendo agora. Mais ou menos cem folhas, amarradas com barbante. SAPATOS DE PAPEL,  um  título  bonito. Faz com que apareçam imagens na minha  cabeça.

As folhas estão numeradas e embaralhadas. Num primeiro exame notei que a organização dos textos pelo autor superou a mera ordem numérica das páginas. Ou era um menino trapalhão, que não sabia começar ou terminar algo organizadamente. 

Concordo com a segunda suposição. Um pequeno profeta atrapalhado, que escrevia para si mesmo no futuro. Não mudei muito. Pelo que me lembro, enquanto menino eu fui, em nada diferente do que sou agora eu era.





"Logo se viu rodeado por nuvens flocadas, sobre a chuva, sobre o tudo, sobre todos. Imaginou-se infinitamente superior. Ocorreu-lhe, devido a euforia do momento, o desejo de não mais despertar. Mas se os sonhos não possuírem fim, deixam de ser sonhos?


A vontade de Doroty voltar pra casa?


Ah, isso sim é fantasia".

Eu estou aqui nesta minha velha casa, onde morei por toda minha vida, descobrindo com doçura o que fui, em indeterminado passado. É claro que escrevi com os olhos conformados nas dimensões do meu próprio universo. Tesouros encontrados no próprio quintal. Quais dores e alegrias se escondem nessas palavras escritas?

Sapatos de papel, a fragilidade diante de uma missão brutal. 

Um menino da realidade fora presenteado pelo pai com botinas muito bonitas, pretas, bordadas, brilhantes. Ele ganhara a oportunidade única de ter algo novo, com o qual ele pudesse se sentir orgulhoso de si mesmo diante de seus amiguinhos da escola. Mas eram sapatos de papel. Desmancharam-se logo na primeira chuva, no caminho de volta pra casa. Foi um caminho de zombaria.  O menino chegou em casa e enterrou seus sapatos novos no quintal. Quando indagado pela mãe, ele não pode manter tudo em segredo ou inventar uma mentira que pudesse sustentar como um adulto. O fato fez com que aquela mulher se enfurecesse. 

Ora vejam só. Os tesouros encontrados começam a mostrar sua preciosidade; meus olhos se umedecem. 

Naquele dia o menino  descobriu que seu pai podia chorar. Seu herói podia se sentir humilhado a ponto de gaguejar e perder a voz. Seu herói podia lhe olhar nos olhos e lhe pedir perdão? O menino também descobriu o gosto do pecado de desejar que sua própria mãe morresse.

Meu pai...

Meu pai...



"Concluiu que tais sapatos eram o presente de algum deus. Quem sabe Horus ou Hermes; o menino já ouvira falar deles. O menino também já tinha ouvido falar de Ícaro e por causa disso ficou procurando por seu pai.

Imaginou-se parte de uma fantasia.

Ao calçar os pés com aqueles frágeis sapatos de papel, sentiu-se invadido por uma insuportável obsessão pelo voo...  Um desejo há muito enterrado no fundo do quintal pelas frustrações; um sonho irrealizado. Algo humano...

Logo se viu rodeado por nuvens flocadas, sobre a chuva, sobre o tudo, sobre todos. Imaginou-se infinitamente superior. Ocorreu-lhe, devido a euforia do momento, o desejo de não mais despertar. Mas se os sonhos possuírem fim, deixam de ser sonhos?


A vontade de Doroty voltar pra casa?

Ah, isso sim é fantasia.





Ao calçar os pés com aqueles frágeis sapatos de papel, sentiu-se invadido por uma insuportável obsessão pelo voo... 




Alguns vislumbram
Por algum motivo
O imposível
O sonho
Vencer o monstruoso
O invencível...
Pesadelo".


O sol, ao que me parece, resolveu mostrar sua pequena cara amarela.O sol. Astro deus, que nos leva à nova fase cósmica. 

De início sei que está viagem irá maltratar meu coração, pois vou trazer velhas dores, ainda que com elas e em maior número, venham possíveis alegrias e lembranças amáveis.

Mas é forte o coração de um homem velho, tão forte a ponto de estar preparado para deixar de bater.


"Ai!
Pode não ser tal exclamação conveniente para dar começo à minha história. Perdão, distante leitor do futuro...  Não há remédio que me cure. Nada me seria eficiente para que eu tivesse a capacidade de tornar minhas dores escondidas por disfarces.


No início desses incômodos gélidos, os meus ais logo despertaram uma comoção generalizada, exatamente como eu sonhara nalgum dia de minha infância, quando a insegurança minha diante dos meus dias e dos meus amores, faziam-me falsificar febres, como maneira eficaz de medir o que por mim sentiam os que ao meu redor viviam.

Logo no começo, na primeira vez, que caí de uma escada, após uma inesperada tontura, vieram até mim com os olhos cheios de lágrimas os meus pimpolhos. Eles me cobriram de carinhos e palavras de amor. Ah, agradeci ao deus sol, pelo dia dessa grata tontura; dessa milagrosa queda. Eu era amado. Pro inferno com todas as outras coisas, eu era amado.

Ainda assim, uma outra dor, bem mais verdadeira, sem a ajuda de minha exageração, crescia dentro de mim. O meu fim se aproximava. Estranha certeza, meu fim batia à porta.
Não sei até que ponto esse acontecimento, da queda da escada, foi uma fatalidade. Em verdade, o que penso disso, é que a queda tornou-se um marco, um despertar para minha nova condição de moribundo.

Os filhos meus, que no início se mostraram preocupados, com o passar de tanto tempo, com esse lenga lenga em que me meti, onde eu nem saro e nem pioro, passaram a desejar a minha morte. Eles não mais me suportavam. Eu era aquela planta velha e feia colocada à janela, completamente dependente do regador.

Os regadores estavam cansados. A planta murchava; o verde se esvaía em cinza, o brilho das folhas ressecava.

Certa vez, os ouvi a cochichar supondo que eu dormia. Por que não morre de uma vez e não nos deixa em paz? Foi o que ouvi daquelas bocas.Uma apunhalada. Eu me tornara um estorvo a meus filhos. Um estorvo quase maldito".  
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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

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Estranho como meu coração pulsa 

Ao perceber a mim mesma em sua margem
Estranho como eu ainda sinto
Minha perda de conforto que se foi anteriormente.

Ondas frescas correm
e são levadas para longe com sonhos da juventude.
Então o tempo é roubado,
Eu não consigo te segurar o suficiente.

E então neste lugar é onde eu deveria estar agora.
Dias e noites passando,
Dias e noites passando por mim.
Eu sei de um sonho que eu deveria estar guardando.
Dias e noites passando,
Dias e noites passando por mim.

Horizontes azuis suaves
Estendem-se muito longe nos meus dias de infância.
Enquanto você está se erguendo,
Para me trazer meus costumes esquecidos.

Estranho como eu hesito
Ao perceber que estou parada em águas profundas.
Estranho como meu coração pulsa
Ao perceber que estou parada em sua margem
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Então tudo me bastou?

Tudo já lhe basta?

Sim.


 



O continente está entre as brumas. deixo meu olhar repousar nos olhos de Lola.

Finalmente... eu digo.

ela me sorri, é mesmo o ar ridente e eterno de uma Kleine Frau

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Como eles dirão a meu respeito?

Eles dirão que você morreu.

Ficarão tristes?

será como uma espada cortando seus corações. mas de algum jeito sobreviverão ainda em sua sombra e depois, dela também sairão. com o tempo, estarão tão livres que se surpreenderão quando não pensarem  por uma vez sequer no dia...  em você.

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Mágica.

Escrevi essa palavra num desenho que fiz para Minzy.


Com esferográfica eu lhe desenhara uma árvore, em traços fortes de furar a folha. falava alguma coisa a respeito do movimento das árvores, tão lento para nós, que não o podemos perceber com essa visão construída para as velocidades humanas.


Lola molha as mãos nas águas do rio. Conhece todos os meus pensamentos?


Mágica. 


Sensação doce de que a vida é puramente um milagre, que tanto quanto o desabrochar de uma flor, tem um tempo e um fim.


eu não sinto tristeza, eu não sinto dor. na cidade que criei, destruí e reconstruí, deixei a minha vida. mas trago todos comigo, em amplos salões de minha nova casa,todos dançam; minha renovada alma. estou aqui sem tudo  que me formou, que eu julgava parte de minha carne. estejam glorificados por mim em minha ausência, eu diria. pequena Pirilampo de riso pueril e cheia de amor, glorifique-se! orquídea da qual tanto cuidei, que floresceu nos dias quentes de verão, glorifique-se! meu bom companheiro de pelos em lã, amigo de olhar profundo e carente, glorifique-se! a vida como a entendemos por um tempo já não habita em mim. tudo que deixei no continente, glorifique-se!


não cabe mais em mim a sensação de ser mera parte.


sem remos o pequeno barco enfrenta as vagas, precipita-se agarrado às paredes de dimensões abismais. não há medo em meu coração. nada mais me pode molestar pois tudo existe ao meu lado.


desde quando encontrei seus olhos cismei: porventura já se foram de mim as ligações com este mundo?


desde quando seus olhos me tocaram percebi o extravio que era deixar-me tão preso a essas suposições que me traçam.


vamos nós a cortar as águas. ao final desse desrrumo vamos encontrar o sossego...


a paz esperada...



o silêncio bendito para todas as canções,


as horas sem fim.


Mágica. Minzy um dia sentirá o que corre em mim agora


e entenderá a sorrir o movimento das árvores.

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Ela estava completamente de costas, envolvida por um vestido de renda branca, encostada a um dos esteios do gazebo. estava o rio tão agitado, que as relíquias ancoradas no porto velho pareciam criar vida novamente. estava ali, diante de mim, o velho veleiro preso, à lama; o mesmo que em minha imaginação e meus escritos foi ressuscitado pelos desejos de Maricéu. Eu e essa obsessão por veleiros, vivos ou mortos.

A fragata de guerra, as garças pousadas nas cordas de atracação, o casario antigo que se desmancha aos poucos, os canhões deitados na grama como se fossem velhos soldados cansados, as escadas de ferro, o vento incessante, viajante dos oceanos...

Cismei de seu vestido branco de renda, em outros tempos jamais se poderia imaginar que algo assim pudesse envolver seu corpo. Detive-me nesse estágio de não tomar iniciativa alguma; detive-me entre a multidão de signos que brotavam de meus pensamentos. Até então tudo era como um grande deserto apenas com um oásis que me mantinha vivo nas temporadas de sede cruel. Até mesmo os espinheiros florescem nesses Édens que criamos vezou outra. Meu deserto se enchia de criaturas:

Serafin, Maricéu, Lili, o grande moinho, o imenso castanheiro, a casa verde de alpendre, a janela de vidros coloridos, Santiago ancorado ao leu. a criança da casa sob o castanheiro, o trigal, a praia do sossego, o barco sem remos, o Herr Ober do café imaginário, um Benário sem alma, os mendigos do porto, o parque dos madrugantes, Antrofazia, a cidade de circos; o bom amigo Baudelaire; Pirilampo; a grande procela ao longe; Tefnutt Delatoriata; Belleine; o passarinho do porto; a velha senhora; Dirce a lamentar pelo filho imaginário; o quebracaceças de cinco mil peças espalhado pela casa...

incontáveis criaturas que preenchiam o vazio do deserto se apresentavam diante de mim depois daquele portal intransponível. bastava que minhas mãos se levantassem e tocassem seu ombro; ou que eu, sendo mais agressivo como num filme lhe virasse o corpo, olhasse bem fundo de seus olhos e lhe apertasse contra mim, de um lugar de onde ela jamais deveria ter se afastado. Mil entidades criei para lhe substituir e agora, nesse ano bissexto venho lhe buscar, sei que está com outro nome, com outros gostos, mas vim lhe buscar.

Ela se virou e deu comigo.

Eram os mesmo olhos da minha profecia. quem  poderia olhar fundo naqueles olhos sem perceber que a vida é apenas um nome dado ao espaço reservado a reencontros das energias que impulsionam o universo?

Num gesto humano dobrei minhas pernas e abracei as suas. ela enfiou suas mãos em meu cabelos. eu chorei.

Pra quem entende o que é uma extrema loucura, para quem a experimentou um dia, só tenho a dizer que a lucidez é algo que já não importa. Todas as boas criações do criador se depositam puras como pepitas na mente de um louco. o louco é capaz de andar sobre as águas, é capaz de dividir os mares, é capaz de subir aos céus numa carruagem de fogo. os loucos são os primeiros portadores da verdade.

Qual o seu nome agora? indaguei.
Qual deles você escolhe pra mim? 
Quem sou para escolher um nome no qual você caiba?
Não veio para cá a me chamar de Lola?
Eu ouvi alguém falar deste nome e o achei tão apropriado.
Então me chame assim, agora.

Está com medo? Lola indagou

Eu estou preparado.

Havia um pequeno bote sem remos ao fim da escada do cais. Eu agora parecia estar cercado pelos frutos de minha condição. criei um mundo entre meus olhos e os olhos da pequena senhora. Eu nunca a poderia ter  encontrado na ilha que criei; era preciso um tempo de depuração de minha alma para que eu mesmo, o próprio criador pudesse finalmente cruzar, ao lado de kleine Frau, o portal que nos levaria ao mundo de minhas criaturas.

Veio à minha cabeça as cenas da peça que eu acabara de assistir antes de estar aqui com Lola, neste bote sem remos, que me vai levar de volta ao meu sossego.

Em alguns lugares chamam esta travessia de outra coisa.

Vou chamar agora de ressurreição, um direito universal das energias humanas.

Lola, de olhos fixos em mim colocou algo em minhas mãos, uma pequena peça de madeira, era uma alma. ela sorriu. era a alma perdida de meu Bennário.
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domingo, 9 de dezembro de 2012

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Quando a chuva se precipitava na Curuçá, uma grande depressão  se enchia, juntava-se nela as águas das vilas mais altas. A rua por um instante após as tempestades, para nós,  tornava-se um grande mar bravo. 

A boca de lobo, na esquina da Lava-pés, fazia com que se abrisse um grande redemoinho que sugava a tudo o que se podia flutuar. Uma lenda dizia que um homem morrera ali, quando insistiu em  andar entre as águas; foi levado pela correnteza da enxurrada e acabou sugado pela boca de lobo.

Por conta desse mito, a velha senhora não permitia que eu interagisse com o fluxo pluvial. Morávamos numa casa de duas grandes janelas e eu costumeiramente gostava de ficar numa delas, observando  a pequena fúria das águas da chuva, que lambiam a rua  com sua certa majestade.

O tecido dentro da sala é mesmo a rua de minha infância. vejo crianças brincando com artefatos de lata, brilhantes, luminosos. algumas se deixam deitadas na superfície das águas; outras apenas observam, riem, correm, tentando conter um certo medo, entre sustos com os trovões e relâmpagos. 



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Ouço trovões e relâmpagos e o som da chuva que golpeia a terra. Sinto-me impelido a ajeitar meu corpo de modo que eu, ainda no colo da desconhecida, observe o que acontece.

Estamos todos no mar. num mar chuvoso, tempestuoso, distante, aparentemente invencível. as vagas são violentas, altas, me aproxima da sensação de que a vida está no limite de seu fim, ou que estou, acompanhado de rostos estrangeiros, num sonho, afinal adormeci no colo da desconhecida. sinto que ela me afaga, e com isso, uma dor antiga me ressurge. uma melodia tão extremamente triste persevera no fundo. minha nossa! estamos mesmo todos bem no meio do mar, como se todos nós fôssemos náufragos em nossas próprias vidas. A dor trazida por essa sensação me atravessa a alma. penso em todas as boas coisas que perdi. penso nas muitas pessoas que amei. e vejam só! estou aqui no meio desse mar, completamente naufragado, sem esperança alguma, como se a vida se tivesse perdido por completo.

"meu único porto é o seu colo", senti vontade de dizer isso à desconhecida, que naquele instante era a minha mãe, a minha tão amada velha senhora, que se foi e eu nunca mais vi. não pude me conter. ao perceber meus soluços, um tanto idiotas, a desconhecida me apertou um pouco, e isso me deixou num estado ainda pior. tentei me controlar para que os outros não me tomassem com o espectador louco e profano, mas percebi que eu não era o único num estado mágico de êxtase e letargia. todos pareciam se transportar para seus universos e oceanos particulares.

Afinal, uma voz sussurrou quase colada a meu rosto. Era uma jovem envolvida em leves tecidos brancos e translúcidos, como um anjo andando sobre as águas. ela apaziguava o medo dizendo  doces frases em cada um dos ouvidos dos que estavam naquele mar agitado: "Não sinta medo de flutuar, menino. Quando chove sobre esta rua, quando chove na rua da sua infância, um mar tempestuoso se forma, porque a infância é apaziguamento". Quando ela me disse isso, olhando bem fundo nos meus olhos, senti que as lembranças poderiam se tornar menos doloridas. ela passou as mãos no meu rosto como quem enxuga lágrimas e me sorriu.

Tornei-me inteiro naquele mar.

Sim, eu adquiri o direito de andar sobre as águas.

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"Ainda não começou", a voz doce da desconhecida, seu hálito amargo de quem é fumante; sua boca sussurrava em meu ouvido direito.

"Te enrola neste tecido", ela continuou. O tecido que a estranha das sombras me indicava estava aquecido pois estivera sob ela por algum tempo. Então ela pediu pra que eu deitasse em seu colo, eu deitei, pois dela eu não sentia pudor algum; aquela sala onde estávamos era como uma roupa limpa que ocultava de todos nós, que estávamos ali escondidos também das vergonhosas de nossas vergonhas. Foi quando algumas luzes se acenderam e a mesma sonoridade da chuva lá de fora invadiu o lugar.

"Alexandre viveu um frenesi de excitação e glória, e a tal ponto amou a guerra que em seu espírito jamais conheceu uma hora de paz". Eu balbuciei essa frase inteira quase no ouvido esquerdo da estranha. eu não sei o que me deu para dizer essa frase, que guardei na memoria por toda minha vida, retirada de um velho livro de história. não recebi nenhuma resposta depois de minha atitude, meu ataque de doidice, e isso me entristeceu um pouco.

Assisti todo o espetáculo e saí de lá já percebendo que a chuva dera lugar ao céu de uma lua soberana. uma mulher de uns sessenta anos   agasalhou meu rosto entre suas mãos, sorriu medindo minha fisionomia, como se me conhecesse de muito tempo e por muito tempo não me reencontrasse. Então ela disse:

"Quem pode nos garantir que sentimos paz alguma vez em nossas vidas?"


Era a mesma mulher desconhecida  a qual havia me dado seu colo para descansar. reconheci seu cheiro e o seu toque das mãos. Os encontros repentinos têm a sua aura de eternidade. E desde o momento em que aquela criatura se afastava de mim, pude sentir dela uma falta absurda, como se ela fosse algo que nascera para que eu perdesse, como um cordão umbilical.

caminhei e vi que o mesmo homem atarracado retirava o cartaz que se prendia na árvore.

Eu não conseguia deixar de pensar no que havia acontecido naquele esquisito teatro. Uma transformação em mim me fazia querer desistir do encontro com Lola. Fiquei até pensando que Lola, para brincar comigo, se disfarçara daquele teatro que cruzara meu caminho, só para tocar meu coração, só para que eu não conseguisse me livrar dessa necessidade que tenho de jamais permitir com ela me  reencontrar. Era como se Lola se escondesse nas coisas que eu amava. Era como se ela só fosse possível de existir escorrendo do viço da essência de tudo o que eu amava..

Quando cheguei ao velho cais abandonado não fiquei surpreso...

Uma figura que de costas pra mim recebia lufadas de vento do rosto. eu havia me esquecido qual a frase ensaiada, qual o modo de não assustá-la com a surpresa de minha presença.

Quando ela voltou seu rosto a mim, tudo o que eu pude dizer quando seus olhos me encontraram se resumiu numa palavra:

"perdão!"

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sábado, 8 de dezembro de 2012

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"Velho mundo cor de sal. palavra alguma de advento diante dessa beleza infinita que é o por do sol.

O que fizeram contigo? Eu indagaria se um Caim eu fosse?

O que fizeram com toda essa beleza intocada que tu foste?

Ao lado dos canhões vejo que nada mudou".

Com essas palavras de um sonho de cochilo, sentado ao pé de uma parede, acordei. Estava tão frio, que fiz o que alguns outros fizeram ao meu lado, cobri-me discretamente com os panos que pareciam ser parte do cenário.

Indaguei à moça que estava ao meu lado a respeito do que acontecia. Ela cochichou no meu ouvido:

"ainda não começou".
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No caminho encontrei um cartaz pregado a uma árvore. A rua estava molhada com a noite chuvosa e eu podia ver refletidos na superfície do asfalto os lumes da noite da cidade. Senti-me nas páginas de "o lobo da estepe", isso deu-me uma certa nostalgia. Ainda faltava muito tempo até que as horas caíssem e chegasse o instante em que eu estivesse perto dos perfumes de Lola.

O cartaz impelia-me a entrar. era um prédio velho com uma grande porta escarlate. Não havia ninguém que me recebesse; visualizei um buraco na parede e por ele enfiei o dinheiro e recebi de volta um papel pequeno. dei mais alguns passos e cheguei até um homem atarracado e sonolento que rasgou o papel e abriu uma porta, quase invisível a mim, que levava a uma ampla sala escura. Senti um certo arrependimento de entrar naquela merda com cheiro de mofo. Mas ali eu poderia tirar um pouco de sono enquanto pensava no que dizer como sendo minhas primeiras palavras à Lola.

 A sala estava fria.

Mal sinal. a sala estava muito fria.

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Minha defesa seria criar um mecanismo, uma proteção. dizer que me foi ruim, buscar as colonias mais distantes, teriam que ser um método eficaz de autopreservação. isso, essa rendição a essa constatação não quer dizer que o contrário desses sentimentos sejam os sentimentos verdadeiros. tudo pode ter sido um desperdício, um derramamento inútil de energia. inútil. mas poderia restar disso uma lembrança boa? que me fizesse curvar os cantos da boca?

É possível.

Mas o dia, hoje, apesar das lembranças plenas e das tentativas de perdão, ainda não é o dia de minha liberdade. liberdade que perdi certa hora e recupero aos poucos, como um homem que impedido outrora, aos poucos, recupera a habilidade de andar. 

A boa nova do dia é que hoje vou ter uma conversa com Lola.
(...)
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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

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Fico a ruminar sonhos enquanto cá estou e três coisas me queimam o juízo:

1- Não lembro, com certeza não lembro,  do rosto de Claudia Cardinale;

2- Não lembro, sequer reconheço, de sua voz;
3- Não sei falar em italiano;

Certamente mal posso ter certeza se sonhei com Cardinale, ela era quem sabe apenas a idéia, alma que movimenta a infinidade de corpos que no sonho se desenhavam diante de mim. quanto ao italiano, indagarei a um colega, ele me dirá se o italiano que Claudia balbuciou era mesmo italiano.


Muitos  que julguei ter amado já não correspondem ao objeto do presente, são outras existências, congeladas, indiferentes ao espaço tempo. as mulheres que amei já não são estas que encontro vez ou outra?


É verdade, elas não existem mais neste espaço físico do toque, estão desaparecidas, sumidas, inexistentes em carne e osso. o espírito do que eram já não repousa na superfície.


As mulheres que amei foram ideias que tive e que ainda amo em lembranças matutinas, pois ainda resistem; habitam meu apertado universo.


A Claudia Cardinale do meu sonho não tinha um rosto definido.


Então, partindo dessa ideia, eu poderia amar sem medo a Fernanda do jeito que Fernanda se mostra a mim. Ela está me oferecendo a sua existência agora? 


"Ame a existência do objeto mais que ao próprio objeto".



Lá fora está tão quente.


Aqui na sala está tão agradavelmente frio.


Tenho o resto do dia para pensar nessas coisas. Talvez, no final da tarde eu pegue a 125 e vá dar uma olhada no rio. Gosto de ver as garças demonstrando sua esperança natural diante da casa das onze janelas, pousadas na corda que prende ao cais a velha fragata de guerra.


Antes disso, agir como um cidadão comum, entre os ruídos de um ponto eletrônico que diz que aquelas horas do dia já não te pertencem, foram compradas, trocadas por dinheiro.


Quanto custa tuas horas do dia?


Quantas horas dos dias do seu passado você trocou pra valorizar estas horas que você vende como uma puta?


Sua puta.


É isso que sou, uma puta.


Mas qual mal? Somos todos pequenas putas de deus.


Cardinale, por favor, liberte o meu juízo!


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Que lástima!


Sonhei com Claudia Cardinale. ela se debruçava na janela de um gran torino e exibia seus olhos faiscantes e sua boca expressiva.



-Você ainda está viva?



Ela respondeu que sim, apenas balançando a cabeça e com a boca ainda fechada deu um sorriso



Depois de certo silêncio ela balbucio como senão falasse comigo: "Sono ancora vivo. e io sono già morto".



Era a voz de Claudia Cardinale. Era a voz que muito ouvi na infância a assistir os filmes prediletos de meu pai.



Vozes do passado agora deram de me perseguir.



Mas se todas essas vozes perseguidoras forem tão excitantes quanto a voz de Claudia Cardinale...



Sempre quis estar dentro de um Gran Torino. Melhor seria estar dentro de um Gran Torino e dentro de Claudia. É Babie... eu também sou machista.





Fiquei olhando praquele decote até acordar.


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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

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Se eu fosse acometido por uma faísca de coragem eu indagaria: como é ser tão bonita? qual é a sensação de se olhar no espelho a saber o tamanho de sua beleza?


Na certa, se eu carregar a imagem de seu rosto, torná-lo uma tiracolo de meus pensamentos, em três dias esse zahir já se terá tornado paixão. Mas, como no filme, se eu fechar os olhos e acreditar na transposição do portal, encontrarei Fernanda com seu sorriso a me cativar, medindo-me disfarçadamente.



Agora, vez ou outra ela deixa escapar o presente. suas frases tornam-se grotescas, apesar de inocentemente incoerentes. sinto que nela há aquela solidão dos asilos, dos que com o passar dos anos vão lentamente se preparando para ficar sozinhos, como as velhas leoas.



O corpo que agora ainda está vivo me é a prova que no passado, cheia de vida, minha musa andava pelo Leblon, atraindo os olhares cheios de pecado, cheios de injúria, inveja e desejos. Por isso a voz de Fernanda me soa como a voz do passado; a voz da formosura do passado.



Como é ser tão bonita assim?



Como é ter sido tão bela? 



Como é saber que a beleza se foi? e o que resta? é esse orgulho de ter sido bela? de ter tido o mundo sob os calcanhares?



eu próprio olho para meu resto e quase já não me reconheço. Isso causa certa tristeza. Minha feiúra agora ainda é mais feia.



Quase chego a pensar que o nosso julgamento de beleza é mera distração. assim, beleza seria apenas juventude.



Então me vem uma outra indagação: quando eu estiver certo de meu último suspiro, qual será nesse instante a imagem que farei de mim mesmo? Qual será o formato de meu rosto? será um rosto do menino que fui? será o rosto cansado e curtido de um velho?



Se alguém viesse a mim e dissesse; Fernanda  morreu!  formaria-se em mim a imagem da bela mulher sob um véu translúcido, como uma bela adormecida, tão viva e tão sem vida?



Se eu passar a amá-la, cheio de um fervor repentino, como virá a mim em sonho o seu rosto?


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