.
.
.
.
.
INTRODUÇÃO RESMUNGADA POR UMA TERCEIRA VOZ
"Sapatos voadores pelo céu envolviam os pés de João N.
Talvez ele tenha sido invadido por alguma doença; por um desequilíbrio do seu corpo, que parecia não mais funcionar direito; talvez estivesse desgastado pelos anos de dores.
Uma indisposição.
Uma doença repentina, tropical.
Quem sabe...
Sapatos voadores? isso só pode ser sonho ou delírio. Certo, eu não poderia ter pensado em coisa mais absurda. Mas tudo sempre pode ser nada mais que ilusão. No caso de João N, alucinação; resultado de tantos vícios químicos de outrora. Esse cara nunca foi fácil.
Meus sapatinhos, ele falava dormindo. Meus sapatinhos, presentes de Deus.
Quando eu colocava os pés naqueles frágeis sapatos de papel, eu me sentia invadido por uma insuportável vontade de voar. Nada mais humano que esse desejo, mesmo na loucura: desejo de dominar o que nem se pode alcançar”.
Tente começar a fazer o que fiz, se tiver certo gosto para a escrita; se gostar de passar o tempo a escrever doces bobagens. Escreva essas bobagens em folhas de papel que resistam ao tempo; que resistam aos anos tanto quanto pode resistir a sua própria pele. Se bem olharmos, nossa pele é como uma grande página escrita que nos encobre. Agora, busque por esconderijos invioláveis pela casa; depois esqueça completamente desse tesouro e, continue vivendo o seu dia após dia.
Deixe que se passe a vida quase inteira, então, se ainda estiver vivo, desconfiando que muito já não durará e, com forças suficientes para vagar pela casa, dê início a uma busca histórica pelos compartimentos secretos. Nada de viagens exploratórias para distantes Egitos, Grécias ventiladas e belas ou norte de Áfricas cheias de pegadas e desertos. Todo o mundo ficará pequeno, menor que sua casa. Os mistérios da vida estão enterrados no seu próprio domínio e isso não poderia ser mais fascinante. Diversão lenta e tranquila, emoção garantida pra uma velhice que só seria cheia de tédio. Os seus escritos de menino serão sua última salvação, seu último rito.
Durante minhas explorações encontrei muitos blocos de folhas de papel no sótão. Ao todo, conferi 3.203 folhas datilografadas, separadas por poéticos títulos; rabiscadas, repetidamente corrigidas e, muitas quase que completamente destruídas pelo passar dos milhares de dias. Mas por agora, começo a tentar me entender pelo achado mais bem conservado, a respeito do qual estou escrevendo agora. Mais ou menos cem folhas, amarradas com barbante. SAPATOS DE PAPEL, um título bonito. Faz com que apareçam imagens na minha cabeça.
As folhas estão numeradas e embaralhadas. Num primeiro exame notei que a organização dos textos pelo autor superou a mera ordem numérica das páginas. Ou era um menino trapalhão, que não sabia começar ou terminar algo organizadamente.
Concordo com a segunda suposição. Um pequeno profeta atrapalhado, que escrevia para si mesmo no futuro. Não mudei muito. Pelo que me lembro, enquanto menino eu fui, em nada diferente do que sou agora eu era.
"Logo se viu rodeado por nuvens flocadas, sobre a chuva, sobre o tudo, sobre todos. Imaginou-se infinitamente superior. Ocorreu-lhe, devido a euforia do momento, o desejo de não mais despertar. Mas se os sonhos não possuírem fim, deixam de ser sonhos?
A vontade de Doroty voltar pra casa?
Ah, isso sim é fantasia".
Eu estou aqui nesta minha velha casa, onde morei por toda minha vida, descobrindo com doçura o que fui, em indeterminado passado. É claro que escrevi com os olhos conformados nas dimensões do meu próprio universo. Tesouros encontrados no próprio quintal. Quais dores e alegrias se escondem nessas palavras escritas?
Sapatos de papel, a fragilidade diante de uma missão brutal.
Um menino da realidade fora presenteado pelo pai com botinas muito bonitas, pretas, bordadas, brilhantes. Ele ganhara a oportunidade única de ter algo novo, com o qual ele pudesse se sentir orgulhoso de si mesmo diante de seus amiguinhos da escola. Mas eram sapatos de papel. Desmancharam-se logo na primeira chuva, no caminho de volta pra casa. Foi um caminho de zombaria. O menino chegou em casa e enterrou seus sapatos novos no quintal. Quando indagado pela mãe, ele não pode manter tudo em segredo ou inventar uma mentira que pudesse sustentar como um adulto. O fato fez com que aquela mulher se enfurecesse.
Ora vejam só. Os tesouros encontrados começam a mostrar sua preciosidade; meus olhos se umedecem.
Naquele dia o menino descobriu que seu pai podia chorar. Seu herói podia se sentir humilhado a ponto de gaguejar e perder a voz. Seu herói podia lhe olhar nos olhos e lhe pedir perdão? O menino também descobriu o gosto do pecado de desejar que sua própria mãe morresse.
Meu pai...
Meu pai...
"Concluiu que tais sapatos eram o presente de algum deus. Quem sabe Horus ou Hermes; o menino já ouvira falar deles. O menino também já tinha ouvido falar de Ícaro e por causa disso ficou procurando por seu pai.
Imaginou-se parte de uma fantasia.
Ao calçar os pés com aqueles frágeis sapatos de papel, sentiu-se invadido por uma insuportável obsessão pelo voo... Um desejo há muito enterrado no fundo do quintal pelas frustrações; um sonho irrealizado. Algo humano...
Logo se viu rodeado por nuvens flocadas, sobre a chuva, sobre o tudo, sobre todos. Imaginou-se infinitamente superior. Ocorreu-lhe, devido a euforia do momento, o desejo de não mais despertar. Mas se os sonhos possuírem fim, deixam de ser sonhos?
A vontade de Doroty voltar pra casa?
Ah, isso sim é fantasia.
Ao calçar os pés com aqueles frágeis sapatos de papel, sentiu-se invadido por uma insuportável obsessão pelo voo...
Alguns vislumbram
Por algum motivo
O imposível
O sonho
Vencer o monstruoso
O invencível...
Pesadelo".
O sol, ao que me parece, resolveu mostrar sua pequena cara amarela.O sol. Astro deus, que nos leva à nova fase cósmica.
De início sei que está viagem irá maltratar meu coração, pois vou trazer velhas dores, ainda que com elas e em maior número, venham possíveis alegrias e lembranças amáveis.
Mas é forte o coração de um homem velho, tão forte a ponto de estar preparado para deixar de bater.
"Ai!
Pode não ser tal exclamação conveniente para dar começo à minha história. Perdão, distante leitor do futuro... Não há remédio que me cure. Nada me seria eficiente para que eu tivesse a capacidade de tornar minhas dores escondidas por disfarces.
No início desses incômodos gélidos, os meus ais logo despertaram uma comoção generalizada, exatamente como eu sonhara nalgum dia de minha infância, quando a insegurança minha diante dos meus dias e dos meus amores, faziam-me falsificar febres, como maneira eficaz de medir o que por mim sentiam os que ao meu redor viviam.
Logo no começo, na primeira vez, que caí de uma escada, após uma inesperada tontura, vieram até mim com os olhos cheios de lágrimas os meus pimpolhos. Eles me cobriram de carinhos e palavras de amor. Ah, agradeci ao deus sol, pelo dia dessa grata tontura; dessa milagrosa queda. Eu era amado. Pro inferno com todas as outras coisas, eu era amado.
Ainda assim, uma outra dor, bem mais verdadeira, sem a ajuda de minha exageração, crescia dentro de mim. O meu fim se aproximava. Estranha certeza, meu fim batia à porta.
Não sei até que ponto esse acontecimento, da queda da escada, foi uma fatalidade. Em verdade, o que penso disso, é que a queda tornou-se um marco, um despertar para minha nova condição de moribundo.
Os filhos meus, que no início se mostraram preocupados, com o passar de tanto tempo, com esse lenga lenga em que me meti, onde eu nem saro e nem pioro, passaram a desejar a minha morte. Eles não mais me suportavam. Eu era aquela planta velha e feia colocada à janela, completamente dependente do regador.
Os regadores estavam cansados. A planta murchava; o verde se esvaía em cinza, o brilho das folhas ressecava.
Certa vez, os ouvi a cochichar supondo que eu dormia. Por que não morre de uma vez e não nos deixa em paz? Foi o que ouvi daquelas bocas.Uma apunhalada. Eu me tornara um estorvo a meus filhos. Um estorvo quase maldito".
.
.
.
.
.