segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

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Se eu tivesse que colher as lembranças, deixaria secando ao sol como renegadas as que mais me acompanham. Dentre elas estaria a lembrança do olhar do primeiro homem do qual tirei a vida. Era de início um olhar de descrença; um olhar de quem indaga: “não ouvistes falar de um profeta galileu que pregava uma paz nas boaventuras do bem?”

Apesar de corajoso em si mesmo, o homem tentava se defender agarrando a lâmina. Um fim desastroso para suas mãos. Há quem seja assim no dia a dia de sua vidinha mansa; agarra o objeto que lhe trará a morte, como se agarrasse um tesouro. Vejo assim porque sei. Quando o homem soltou finalmente a lâmina, apertei a ponta da faca contra seu peito. Eu poderia parar. Eu poderia desistir. Ele poderia gritar por clemência e parar de me olhar como se eu fosse um condenado. Nada disso ocorreu.
Encostei meus ouvidos no seu peito e ouvi. Aos poucos seu coração parava e finalmente u silêncio mórbido. Não me senti um libertador. Por dois segundos apenas deixei de pensar em tudo. Mas no tempo restante seguinte, tratei de limpar de mim as marcas que o corpo que esfacelei deixara em mim.
Quantas criaturas matamos dentro de nós?
Quantos nós nos atam para sempre a essas criaturas mortas?

Nos meus mandamentos que aprendi nas ruas, na infância perversa da grande feira, não havia um que nos ordenasse a não matar.
Matas um mundo melhor quando matas os teus sonhos, diria Velhuomem.
O primeiro homem que matei tinha um olhar desentendido antes da morte. Uma alma perdida presa a um coração perdido. Um corpo doente e febril dentro de linhos e disfarçado com fragrâncias estrangeiras. Uma cabeça cheia de miséria, coberta por um panamá novinho em folha.
Lavei-me do sangue no rio diante da grande feira. Naquela noite de maré baixa dormi aliviado na tranquila toca dos morcegos. Havia um certo medo em mim. Havia sim. Mas do medo eu não me lembro.

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