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Ela estava completamente de costas, envolvida por um vestido de renda branca, encostada a um dos esteios do gazebo. estava o rio tão agitado, que as relíquias ancoradas no porto velho pareciam criar vida novamente. estava ali, diante de mim, o velho veleiro preso, à lama; o mesmo que em minha imaginação e meus escritos foi ressuscitado pelos desejos de Maricéu. Eu e essa obsessão por veleiros, vivos ou mortos.
A fragata de guerra, as garças pousadas nas cordas de atracação, o casario antigo que se desmancha aos poucos, os canhões deitados na grama como se fossem velhos soldados cansados, as escadas de ferro, o vento incessante, viajante dos oceanos...
Cismei de seu vestido branco de renda, em outros tempos jamais se poderia imaginar que algo assim pudesse envolver seu corpo. Detive-me nesse estágio de não tomar iniciativa alguma; detive-me entre a multidão de signos que brotavam de meus pensamentos. Até então tudo era como um grande deserto apenas com um oásis que me mantinha vivo nas temporadas de sede cruel. Até mesmo os espinheiros florescem nesses Édens que criamos vezou outra. Meu deserto se enchia de criaturas:
Serafin, Maricéu, Lili, o grande moinho, o imenso castanheiro, a casa verde de alpendre, a janela de vidros coloridos, Santiago ancorado ao leu. a criança da casa sob o castanheiro, o trigal, a praia do sossego, o barco sem remos, o Herr Ober do café imaginário, um Benário sem alma, os mendigos do porto, o parque dos madrugantes, Antrofazia, a cidade de circos; o bom amigo Baudelaire; Pirilampo; a grande procela ao longe; Tefnutt Delatoriata; Belleine; o passarinho do porto; a velha senhora; Dirce a lamentar pelo filho imaginário; o quebracaceças de cinco mil peças espalhado pela casa...
incontáveis criaturas que preenchiam o vazio do deserto se apresentavam diante de mim depois daquele portal intransponível. bastava que minhas mãos se levantassem e tocassem seu ombro; ou que eu, sendo mais agressivo como num filme lhe virasse o corpo, olhasse bem fundo de seus olhos e lhe apertasse contra mim, de um lugar de onde ela jamais deveria ter se afastado. Mil entidades criei para lhe substituir e agora, nesse ano bissexto venho lhe buscar, sei que está com outro nome, com outros gostos, mas vim lhe buscar.
Ela se virou e deu comigo.
Eram os mesmo olhos da minha profecia. quem poderia olhar fundo naqueles olhos sem perceber que a vida é apenas um nome dado ao espaço reservado a reencontros das energias que impulsionam o universo?
Num gesto humano dobrei minhas pernas e abracei as suas. ela enfiou suas mãos em meu cabelos. eu chorei.
Pra quem entende o que é uma extrema loucura, para quem a experimentou um dia, só tenho a dizer que a lucidez é algo que já não importa. Todas as boas criações do criador se depositam puras como pepitas na mente de um louco. o louco é capaz de andar sobre as águas, é capaz de dividir os mares, é capaz de subir aos céus numa carruagem de fogo. os loucos são os primeiros portadores da verdade.
Qual o seu nome agora? indaguei.
Qual deles você escolhe pra mim?
Quem sou para escolher um nome no qual você caiba?
Não veio para cá a me chamar de Lola?
Eu ouvi alguém falar deste nome e o achei tão apropriado.
Então me chame assim, agora.
Está com medo? Lola indagou
Eu estou preparado.
Havia um pequeno bote sem remos ao fim da escada do cais. Eu agora parecia estar cercado pelos frutos de minha condição. criei um mundo entre meus olhos e os olhos da pequena senhora. Eu nunca a poderia ter encontrado na ilha que criei; era preciso um tempo de depuração de minha alma para que eu mesmo, o próprio criador pudesse finalmente cruzar, ao lado de kleine Frau, o portal que nos levaria ao mundo de minhas criaturas.
Veio à minha cabeça as cenas da peça que eu acabara de assistir antes de estar aqui com Lola, neste bote sem remos, que me vai levar de volta ao meu sossego.
Em alguns lugares chamam esta travessia de outra coisa.
Vou chamar agora de ressurreição, um direito universal das energias humanas.
Lola, de olhos fixos em mim colocou algo em minhas mãos, uma pequena peça de madeira, era uma alma. ela sorriu. era a alma perdida de meu Bennário.
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