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Ouço trovões e relâmpagos e o som da chuva que golpeia a terra. Sinto-me impelido a ajeitar meu corpo de modo que eu, ainda no colo da desconhecida, observe o que acontece.
Estamos todos no mar. num mar chuvoso, tempestuoso, distante, aparentemente invencível. as vagas são violentas, altas, me aproxima da sensação de que a vida está no limite de seu fim, ou que estou, acompanhado de rostos estrangeiros, num sonho, afinal adormeci no colo da desconhecida. sinto que ela me afaga, e com isso, uma dor antiga me ressurge. uma melodia tão extremamente triste persevera no fundo. minha nossa! estamos mesmo todos bem no meio do mar, como se todos nós fôssemos náufragos em nossas próprias vidas. A dor trazida por essa sensação me atravessa a alma. penso em todas as boas coisas que perdi. penso nas muitas pessoas que amei. e vejam só! estou aqui no meio desse mar, completamente naufragado, sem esperança alguma, como se a vida se tivesse perdido por completo.
"meu único porto é o seu colo", senti vontade de dizer isso à desconhecida, que naquele instante era a minha mãe, a minha tão amada velha senhora, que se foi e eu nunca mais vi. não pude me conter. ao perceber meus soluços, um tanto idiotas, a desconhecida me apertou um pouco, e isso me deixou num estado ainda pior. tentei me controlar para que os outros não me tomassem com o espectador louco e profano, mas percebi que eu não era o único num estado mágico de êxtase e letargia. todos pareciam se transportar para seus universos e oceanos particulares.
Afinal, uma voz sussurrou quase colada a meu rosto. Era uma jovem envolvida em leves tecidos brancos e translúcidos, como um anjo andando sobre as águas. ela apaziguava o medo dizendo doces frases em cada um dos ouvidos dos que estavam naquele mar agitado: "Não sinta medo de flutuar, menino. Quando chove sobre esta rua, quando chove na rua da sua infância, um mar tempestuoso se forma, porque a infância é apaziguamento". Quando ela me disse isso, olhando bem fundo nos meus olhos, senti que as lembranças poderiam se tornar menos doloridas. ela passou as mãos no meu rosto como quem enxuga lágrimas e me sorriu.
Tornei-me inteiro naquele mar.
Sim, eu adquiri o direito de andar sobre as águas.
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