domingo, 25 de setembro de 2011

O MAR

carrego um bojo estranho, mais estranho que a palavra bojo. carrego um vinho que não bebo. distanciado de mim, por esse caminho que a vida toma. um caminho de "irmos" e "voltarmos".

digito este texto aqui de um lugar de onde posso ouvir os risos da platéia, é um ruido como o ruído da arrebentação, fim de um ato, fim de uma suspeita. carrego um vinho que não bebo. aquieto-me distante em terra firme. sem poder para reverter a clepsidra. sou o cara que perdeu milhares de pérolas num trigal.

Depois de escrever a memória número vinte, alguns dias depois, recebi a notícia de que minha mãe não anda bem. disseram-me que sua mente está se apagando, que ela já não é mais quem por inteiro foi. e por estes dias estou a ponto de encontrá-la assim, como quem me olha e nem me entende no que olha.

a imagem do mar me é a imagem materna que se construiu em mim desde essa mulher...
imagem de quem nunca desistiu de me fazer sobreviver...

e eu sobrevivi?
não seria a escrita ao inverso? testar seu heroísmo seria mesmo a tarefa divina deixada em suas mãos?
eu sobrevivi para quê? i
é, pergunta movente, combustível insosso e invisível.

levava-me pelas mãos, todos os dias, desde meus cinco anos numa busca insensata por aulas de desenho e artes. minha busca nunca cessou mesmo depois dela. eu ainda não encontrei o meu traço. rabisco ainda como em cavernas, e ainda nem sequer cheguei diante da possibilidade de conseguir me expressar com estes garranchos nítidos do procênio, do modo como espero.

e eu continuo. ainda continuo. diga-me a verdade antes de partir...

há verdade?




(dedico esta publicação a você, que inspirou a personagem que nomeio de "velha mulher"...)


http://www.youtube.com/watch?v=lU6zbbjiefU

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

ENTRE O VOAR E O CAIR

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Sol radiante


Agora que acordou.
A você, tudo parece ter mudado.
Eu olho para fora,
Mas não há nada, absolutamente.

Pondo meus sapatos, então percebo que
Ela está ainda de pijamas;
Em um sonho agora descoberto,
Estou suspenso num anticlímax.

Ela está com o sol,
Está ela, aqui dentro.

Mas onde está você?...

Sigo na andança
E andando rápido pela rua.
Não consigo ver lá fora
E então uso as estrelas.
Senta-se infinita, ela
E então sobe para fora.

Ensolarada de luz,
Ela vem para fora.
Eu desperto de um pesadelo.
Meu coração está batendo
Fora de controle...

Vivi tanto dentro desta loucura,
Que agora já é compulsório.

E aí está você.

Eu sinto...

E aí está você,
Sol radiante.

E aí está você...


http://www.youtube.com/watch?v=lwQmDvuORY0&feature=related

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 20

A NAU ENTRE O MAR E O CÉU



Eu lembro...


Foi um ruído de algo que se arrastava, estranho, eu reconhecia nele a cuia de boca emborcada. deixei em pouco a colher  suspensa no ar,  examinando atento os ruídos subseqüentes, mas, restava-me um silêncio longo e imutável. descansei a colher ainda cheia de volta ao prato e me aproximei da porta, que da mesa distava não mais que seis passos.

Mamãe?

Nenhuma resposta.

Está com algum problema? Silêncio ainda.

Eu podia, dali, sentir o cheiro da uriza, e o perfume dos óleos de banho que ela costumava usar.

Depois que forcei a porta e entrei, dei com a imagem dela, sentada na tina, elegante, com a mão direita apoiada sobre a cuia e a cabeça descansando no vazio. Nunca eu lhe havia visto tão intimamente, mal pude levantar o rosto, pois ainda resistia em mim um respeito absurdo por aquela nudez... mas a situação era completamente outra, e toda moral fugia-me aos poucos e tanto quanto meu sangue. Sentei-me ao seu lado e lhe completei o banho, enxuguei seus cabelos, cuidei dela ou do que dela era o corpo como quem cuida de um bem precioso além da conta. Ao carregá-la percebi sua leveza com um dó de um filho que não teve tempo suficiente para viver ao seu lado, de modo que saber tudo, de sua velhice, fosse tão natural...

Deitei-lhe, ali, no chão da sala de visitas mesmo, apoiando sua cabeça sobre uns tecidos que achei.

Eu não sabia mais o que fazer.




Lembranças realmente doem. Reviver é sempre assim, como massagear um baque antigo que não se curou de fato.

Devo terminar aqui minhas memórias. A mão na escrita já treme demais  e sei que ainda hoje, aquela que nasceu comigo virá me visitar. Muitas vezes chamei-lhe de amante, outras de mãe ou irmã. Hoje ela será minha filha, e nestes últimos dias dei-lhe o nome de Maricéu. Ela finalmente me levará em si para o sossego. Navegante solitária que é de um grande barco em velas, ela não só me trouxe o vento como nele mesmo e por ele navega.

Ela vai me procurar no lugar que construí a ela. E tudo enfim será essa dúvida eterna e maravilhosa que indaga quem fomos, onde estamos, quem somos agora e o que porventura seremos. E onde estaremos?

Guardo somente em mim estes últimos verbos. Como quem guarda o segredo cósmico que a tudo desvela. Antevejo a nau de Maricéu, aquela que vem me buscar.

BERNARDO

sábado, 17 de setembro de 2011

O COMETA VERDEJANTE

disseram que ele passou antes da aurora. flamejou sua luz verde pelas frestas da má janela mal fechada.
ela, despertou a andar em círculos marrons pela casa, a abrir as geladeiras, a buscar doçuras e cremes, a buscar água gelada, ansiosa por calmejar o calor da marugada.

ela buscou a altura das telhas e por lá viu na réstia o tamanho da luz lá de fora, numa madrugada que tudo olhava, numa madrugada que seria o instante exato para a fuga cósmica de seu dom.

mas houve o medo de acordar os outros, que dormiam num sono tão pesado que mal sabiam que dormiam.

foi quando veio o sol

e dessa vez o sol não veio como salvador pois que ofuscou a luz do astro raro.


quando a manhã-cedo germinou


era tarde demais.

RECRIAR

linda
pisa no palco branco de vermelho velho vestida
canta com os cabelos distantes da testa

linda
pisa no palco brando como quem pisa em pó deserto
canta com o pulmão mútuo em oxigênio

canta com o pulmão mútuo oxigênio

muito gira em oxigênio?

mas onde está, este, que me falta?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

TENS QUE LARGAR A MÃO



Tens que largar a mão
P'ra eu sair de pé
Sou o teu anjo e não me vês
Na parte calma do que és

Tens que largar a mão
E sair de pé
Sou o teu anjo a procurar
A parte quente do que vês

Mas há portas por fechar
Com o chumbo a prender
É mais forte do que quero acreditar
E se tudo vai com o vento a escorrer
Não sou eu quem vai lutar agora

Se eu não for quem vai ser
Se eu não for quem vai
Ter o teu melhor
Se eu não for quem vai seguir a tua mão
E levar-te como só
Eu sei

Vais aprender a olhar
Quando a dor vier
Vais aprender a desvendar
A parte fraca do que és

P'ra descobrir depois quando a luz voltar
Tens um jardim a procurar
Que precisa de saber
Quanto tempo vai durar
Este muro a prender
É mais forte do que queres acreditar
E se tudo vai com o vento a escorrer
Não sou eu quem vai lutar agora

Se eu não for quem vai ser
Se eu não for quem vai
Ter o teu melhor
Se eu não for quem vai seguir a tua mão
E levar-te como só
Eu sei

E levar-te como só
Eu sei

Se eu não for quem vai ser
Se eu não for quem vai
Ter o teu melhor
Se eu não for quem vai seguir a tua mão
E levar-te como só
Eu sei


TIAGO BETTENCOURT



MEMÓRIAS DE SERAFIN - 19

A SOLIDÃO


ah sim...  olhar através de uma janela, num fim de tarde enquanto crianças brincam em pátios e quintais, pode ser escolhido por milhares como a imagem que mais comunica a solidão.

no entanto, olho através da janela com essa boba alegria de ainda sentir vontade de ser mais feliz e por mais dias vivo ser ma mais vivo do que fui. mesmo que eu saiba que amanhã possa ser o dia cósmico de minha partida, vivo ainda mais por cada respiração que respiro.

olho através da janela e considero isso o maior presente que todo o universo conspirou a mim.

por vezes, por muitas vezes, deposito uma nostalgia na palma de minha mão e a acaricio como se reencontrasse sobre ela as mãos  de minha mãe. essa sensação me deita lágrimas nos olhos e por isso eu me deixo num choro calmo, lento, um tanto prazeroso.  nunca parei para medir o tamanho do perdão que nos demos. nenhuma religião poderia ensinar-nos a construir o perdão que pulsava em nós dois ao mesmo tempo. quando eu a abracei, senti como se abraçasse novamente a minha nascença, e eu já nem era tão novo, mas renascia dela por uma segunda vez.

mas devo guardar essas sensações para daqui a pouco. por agora, creio, que devo confessar que depois do surto de descrença em tudo que apavorou a terceira década, encontrei uma existência cândida que me deu ao início de todas as outras vontades. sentou-se uma vez ao meu lado num coletivo quente e abafado, numa tarde chuvosa, depois de um dia exaustivo e cheio de pequenas e burlescas conspirações que não saiam dos planos de toda gente que laborava ao meu redor. ela me olhou sério, e riu. nunca fui muito dado aos risos, apesar de que os risos sempre foram os tijolos que carreguei enquanto estive em circos. eu voltei meu rosto para ela, e ela se fez séria, mas logo deixou que escapasse uma risadinha apertada entre os lábios.

aquilo me fez sorrir.

aquele gesto aparentemente inocente e traquina, me fez descansar,  e injetou analgesia em todos os meus ossos. ao me olhar nos vidros,  o meu reflexo mostrava o branco de minha máscara e a ponta vermelha de meu nariz. eu havia esquecido de retirar de meu rosto a maquiagem. de certa forma aquilo roubou o riso de outrora e me senti tocado por uma leve decepção. ela não me sorria nem ria de mim. ela ria e sorria somente do que estava entre eu e ela.

mas deixe estar que houve uma reviravolta. ela virou-se a mim e indagou meu nome. eu respondi e indaguei o mesmo dela. e foi assim que no restante do tempo em que o coletivo girou e girou pela cidade, nada mais de desconforto se passou a nós dois. e foi desde disso que me tornei a ter por ela um amor que mais era como uma peça de um quebracabeças que nunca se encaixa, mas que completa a figura.

vinha-me a indagação inevitável se ela seria ou não o vento, mas eu trancava entre os dentes a vontade de indagar e calava e calava...  e calar era um segredo que somente eu sabia.

a vendedora de pérolas trabalhava numa loja que ficava de frente para o mar...

ela, a vendedora de pérolas
  trabalhava numa loja de frente para o mar.

e eu, naqueles dias, fazia minhas carambelas natalinas, pois de algum modo... eu precisava continuar. na platéia, seu rosto era de uma luz tranquila. e foi a ela que dei de meu benário uma primeira melodia cheia de paixão juvenil. e foi ela, a primeira mulher... que conheci. a mulher que conheci inteira, em minha terceira década.

a velha senhora a amou como a uma filha. e ela retribuia esse afeto lendo nas noites de quinta trechos do livro do desassossego e poesias de Baudelaire. Foi  também ela que me trouxe um amigo, ao qual dei o nome de seu poeta preferido. Meu bom amigo Bodelé,  que nunca, enquanto vivo, me deixou ao longe.


e tudo isso me vem assim enquanto olho pela janela

enquanto olho através da janela.

penso em pérolas. pérolas preciosas que há muito já não são nem das ostras, nem de um mar...



não são minhas agora, e nem as ostento num colar ao redor de meu pescoço

mas  as detenho, belíssimas, entre minha garganta, minha alma e minha ligeira eternidade

domingo, 11 de setembro de 2011

SHARBAT

para o belo rosto  ideal dos anseios de Serafin, imaginei olhos afegãos, arregalados e verdes, ultrapassando o limite dos corpos atingidos por seu olhar. belos olhos, como os olhos de Sharbat.

Um homem sabe e reconhece uma bela mulher, mesmo sendo o mais rude dos homens.

e é no avatar de uma bela mulher, que Serafin repousa a maior parte de tudo o que espera:

a verdade
a felicidade
a divindade criadora
a inspiração
a poesia
a solidão
a tristeza

...


uma bela mulher de olhos afegãos e rosto eternamente coberto. um corpo inteiro de véus idesnudáveis e uma furtividade de fantasmas.

a pequena grande criatura feminina vista ao longe, gigantesca e intocável.

se nunca ouviu isso antes, ouça gora, ouça e compreenda: Serafin fez deusa a sua catexe.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 18

FOI SONHANDO  que a vi por uma primeira vez. por tanta beleza que ela cativava em semblante, não fui capaz de dominar em memória a delicadeza gigantesca de seu rosto. acordei-me nessa penumbra de benção, milagre divino, pois eu havia sido tocado pela visão maravilhosa de uma formosura para raros olhos.

no sonho toquei em sua pele. com a ponta de meus dedos senti a sua umidade. desperto, o mundo pareceu-me muito menos cândido, e os perfumes de esquina a mim se tornaram odores insuportáveis.

com o tempo acostumei-me com uma ideia alentadora: eu vislumbrara uma deusa. e para mim só seria possível alcançar a imensidão de sua beldade se em sonho eu estivesse. acordado, só restava-me uma decepção por estar acordado sem lembrar, sem conseguir recordar, de seu rosto, seu cheiro, e da  luz invisível que irradiava de sua presença.

musa de meus dias. ideal de minha busca por perfeição.

a Helena ressurgida dos confins de minha mente, para apaziguar as paixões possíveis que terminariam em dores.

dentro de minha mente construí uma ilha para que ela habitasse. e a atração exercida por ela era tão absurda, que bastava que o sono me acolhesse, para que eu num barco sem remos, em deriva, até a ilha eu fosse levado. e quando em sonho eu abria os olhos, lá estava a musa, perfeita, com suas vestes ao vento e sua boca inefável.

eu havia criado a minha Eidolon.


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

SUPERNOVA

quando o sol cresce. quando seu brilho se torna coisa antiga, quando seu nascer e o seu pôr passam a ser milagres de um passado...  remotíssimo.

quando do planeta ninguém mais vê se nasce o dia ou cai a noite.

a tranquilidade imersa no escuro cósmico
onde os fósseis são a moldura de uma vida em portaretrato...

imensidão. lugar onde coisas infinitas se apertam para habitar.

mas se algo cabe na denominação de infinito, prova que tem fim. já que o infinito nunca caberia em palavras.

domingo, 4 de setembro de 2011

CANSADO

cansado demais. todos os músculos doloridos. vontade de dormir o dia inteiro. feliz em estado de extremo cansaço. cansado, cansado...

repouso um pouco o movimento das  mãos. meus personagens podem esperar. sei que não podem esperar muito, mas esperam, esperam pelo movimento dos fios.

mas agora...  estou cansado, um cansaço físico apenas e uma vontade de não pensar em absolutamente nada.


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 17

Dizem que esse estado anterior ao último suspiro possui umas inquietudes em potência. Pouco me resta a não ser escrevinhar estas memórias. Mais cedo ou mais tarde os dedos se desconectarão de minha vontade. Talvez eu acabe por nem visitar minhas mais deliciosas lembranças. ouço o pipoqueiro diário que passa sempre aqui por perto por volta das cinco. cinco minutos nesse portal do tempo já são o que basta para que eu finalmente encontre o sono e descanse. Vou fechar os olhos, e antes mesmo de dormir, vou me enfiar num sonho obtuso e extremo. caso eu não acorde...