sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A MENINA DE VELASQUES

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Sonhei que a menina de Velasques saia do famoso quadro e me balançava ao leito. eu me acordava a esfregar os olhos e a não acreditar na cena. quietinha, sem o olhar amargo que mantinha na pintura ela sentou-se à beira da cama e me indicou um lugar onde havia silencio. além da janela.

sim, eu resmunguei, agora lembro, é a janela de um tempo outro, no qual eu estava em corpo de criança. através da janela eu me vi a estar sentado na calçada, mantinha o queixo apoiado nas mãos, igual a quem está perdido em pensamentos. todos a mim estavam em silêncio, como num filme em lenta camera e sem som. eu a assistir o mundo como quem está numa sala escura e tranquila.

senti-me feliz ao me ver em criança. eu encontrava um brinquedo perdido. meu playmobyl de capacete vermelho...

corra mais menino! eu queria dizer a mim mesmo. não fique assim tão quieto.

mas eu em criança observava os formatos escondidos das coisas. admirava-os. e pensava na possibilidade de dizê-los.

a única possibilidade era o silêncio.

meu pai costumava me presentear com elefantes de açúcar. meus irmãos me caçoavam por meu cabelo. as outras crianças se assustavam com meu modo de dizer as coisas. era a década de setenta. um silêncio tomava conta de todos. mas todos não se aquietavam por não gostarem de permanecer calados.

se Taubelleine me surgisse naqueles dias, me surgiria como o som doce proveniente do triangulo estridente do vendedor de cavaco chinês. ou quem sabe me fosse a sensação que sempre tive ao observar o imenso castanheiro ao lado da escola de alfabetização.

Taubelleine sempre esteve ao meu lado. houve um tempo em que foi uma bola de borracha que caiu em meu quintal. noutro instante foi a bonequinha de miçangas que comprei para presentear Heloise. Taubelleine me surgiu um dia como as meigas sapatilhas de Li, que me beijava a se esconder do temporal.

o semblante é mutante. não há semblante. o amor é livre como o semblante no qual ele habita. aprendi isso quando os olhos de D se fecharam e nunca mais se abriram. aprendi que aquilo que ela foi passou a habitar muito do que eu era e sou.

o menino calado do sonho estava em silêncio...

a menina de Velasques me foi uma loucura.nela sempre vi uma vontade de ser criança de verdade. e no meu sonho lembrei que naquela idade encontrava nos olhos desta menina pictórica uma luz que nunca entendi e ainda nem sei como explicar...

olho pela janela e me distraio a me observar. sou muito pequeno, falo a rir de mim mesmo. e meu cabelo é mesmo engraçado! a menina de Velasques então passa a rir comigo. toco as mãos dela. é a minha Taubelleine de quando eu tinha cinco anos de idade...


silencio. meu caro menino, sem presente de natal, sentado na calçada. o brinquedo era o mundo com suas pedras em formato de coisas, eram as latas de leite que se transformavam em carrinhos cheios de areia. era o meu pai feliz da vida por encher a pobre árvore do jardim de lâmpadas muito quentes e coloridas...


silêncio. momento...

acordei do sonho apenas com as sensações de entendê-lo.


as várias facetas do meu anjo, que sei não ser anjo, sempre acabam por me deixar no peito uma tranquila sensação de alegria.
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