quarta-feira, 17 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DE SERAFIN - 9

os alertas de Zergori, o cigano

Mas de Li,  mal posso recordar o tom da pele. mal posso dizer do seu cheiro algo que o  descreva. tal imagem nublada nada seria em mim se não fosse por outro algo, de importância muito maior: uma busca inquieta e silenciosa, que eu percebia quando a enxergava num passo inseguro nos arredores da lona. quantos dos seus não a alertavam sobre o perigo de espreitar ciganos. nos idos de setenta, ainda resistiam nalgumas províncias, o medo peculiar das almas em pouca luz.

E se eu procurava, era certo, encontraria na menina de cabelos dourados outras mil respostas, para as quais nenhuma indagação eu ainda formulara. então eu permanecia escondido, a fingir que nem notava suas esgueirices por entre as cordas e jaulas. e ainda assim, sem me aproximar, julguei que dali daquela criatura eu poderia vislumbrar coisas distantes demais, que moravam muito além das lonas de Antrofazia.

e fui a ficar dolorido, como se deitar meus olhos nela tivesse força igual a deitar os olhos em uma fuga. mas como fugir se nem preso eu me encontrava? ou pelo menos eu jamais formulara tal indagação. Li circulava as cercas de ferro e corria livremente por onde quer que fosse. e quanto a mim? o dominador pirofágico, pra qual lugar eu poderia correr, se toda a minha ideia de mundo cabia somente dentro das permissões de um circo?
Li mostrou-me o tamanho de minha falta de liberdade.

e dentro de suas sapatilhas de flores bordadas era muito mais dona do mundo, e por isso, muito menos dona de tudo. Li,, aparentemente frágil, mostrou-me em força e doçura, que eu estava só...

mostrou-me ...  que a antessala da paixão é esse vazio tão pouco profanado, que nos acolhe antes mesmo da pergunta inicial, que indaga o motivo pelo qual um criador desastrado nos colocaria no mundo. um vazio que nos leva a necessitar de um miserável motivo, que nos mova rumo ao desconhecido.

e do pouco que me lembro posso relatar com sincera certeza: deixei que Li entrasse em minha casa, como se eu fosse um velho, que por muito tempo espera uma visita...

e eu  era ainda um jovem
e ainda assim já pouca graça eu via em tudo...


Zergori costumava me indagar se ela realmente existia. e eu agora quase tenho a certeza de que quem nunca existiu a mim foi o indagador Zergori, que é o modo como costumo chamar também tudo o que lembre a quietude.

O cigano foi o primeiro a me olhar dentro dos olhos e, num riso, dizer-me louco... por estar e me deixar estar... apaixonado.

e foi Zergori que deixou em minhas mãos Bennário, o violino sem alma.




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