Depois que o picadeiro escureceu e o espetáculo acabou, fiquei na platéia por quase toda a noite a esperar que as mãos da velha senhora viessem me resgatar. os trabalhadores do circo já estavam se recolhendo, quando ouvi uma voz conhecida ao meu lado. O palhaço ainda mantinha sua maquiagem, e por isso, ainda era o mesmo personagem de outrora. tudo bem que nele havia algo a mim muito familiar, mas eu não poderia confiar num homem do qual eu conhecia muito pouco. como percebeu que eu não prestara atenção ao que falara, repetiu a mesma frase umas três vezes:
"se quiser, eu espero com você, garoto...
Telehmah é uma casa na qual cabem muitas almas".
balancei a cabeça negativamente.
Além dessas coisas que eu não compreendia, nada mais ele disse depois de minha recusa, apenas ficou do meu lado por um pouco mais de tempo. ofereceu-me uma maçã caramelada, eu também recusei. qualquer coisa dada por estranhos não é digna de aceitação de pronto. o tempo foi passando, eu não me desistia de esperar que ela viesse, a velha senhora, com seu vestido gasto e suas mãos fortes. não sei ao certo como adormeci. mas acordei num outro lugar sob os ruídos de animais e a fedentina de seus excrementos. o que eu via através de uma janela de vidros coloridos, lá fora, era toda a extensa fisionomia do circo. alguns homens lavavam elefantes e zebras. outros alimentavam os cães. alguns artistas ensaiavam, e de algum lugar eu ouvia o timbre agudíssimo de um violino.
foi quando entraram dois homens estranhíssimos. o primeiro auscultou meu peito, o segundo, que era muito gordo quase a ponto de não conseguir passar pelo vão da porta, empurrou para minhas mãos um copo com alguma coisa quente.
"a febre está muito alta", disse o primeiro. "olhe garoto... há cinco dias que você está assim. e sinceramente, meu pequenino, já é hora de levantar dessa cama. tome, beba isso.eu sei que é muito ruim. tem muito alho aqui Alfredo, eu disse que não precisava de tanto alho. que seja... beba, menino. chega dessa coisa de ficar assim tão triste. estamos num lugar onde a tristeza não cabe. estamos no circo ANTROFAZIA, todos buscam este lugar para encontrar um sorriso que se perdeu. portanto, encontre o seu".
quando se é criança, não se sabe ao certo o que é a tristeza. eu fixava os olhos na janela de vidros coloridos e lembrava da voz da velha senhora... "durma niedreger Zerafin, meu pequenino Constantin"...
onde estariam agora as canções que aquela mulher alemã cantava para buscar meu sono?
"Quando eu cheguei aqui, caramujo, eu tinha a sua idade'. disse o homem mais gordo. "Eu serei seu amigo. meu nome é Buchinelo. antes eu era um palhaço bem magrinho. agora eu sou um palhaço muito gordo. beba isso, amigo. aposto que se você der uma volta lá fora, essa febre vai passar. este mocinho aqui, apesar de sua altura, tem sessenta anos"...
"Olá. meu nome é Alfredo Zimbro. foi esse nome que eu escolhi. deixei meu outro nome lá fora. quem precisa de um nome, que alguém que não nos conhece direito nos dá? Ora pare de me cutucar, a quantidade de alho é a mesma de sempre, e é o alho o remédio mais santo que existe. E você?... qual nome vai escolher?"
como é que eles queriam que eu lhes desse ouvido? apenas fiquei em silêncio. devolvi o recipiente com seu líquido quase intocado. os dois então se entreolharam com um aspecto muito triste. Zimbro tentou cobrir-me com o lençol, Buchinelo quis ajudar, já que o amigo mal conseguia alcançar a cama, o anão não permitiu, pois parecia ter muito orgulho. por fim, depois de baterem boca saíram e me deixaram sozinho.
"Fique em paz, caramujo", disse Buchinelo antes de sair. "E se quiser manter seu nome, mantenha. serafim é um nome de muito respeito por aqui".
A diferença de tamanho entre eles era trágica.
qual nome escolher? indaguei-me. Pergunta difícil para uma criança.
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