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VERÍDICA OU QUASE
O PAI
Nos Pequenos trechos poéticos de
paternalidade, que venho escrevendo, vejo e descrevo Vasco amolando o serrote sem notar a
presença do filho.
Esse ruído não te incomoda?
Horácio indaga ao pai. E lá está o velho Vasco com seus óculos de armação
esfregando a lima entre os dentes do serrote, produzindo um ruído insuportável
aos ouvidos do menino.
É necessário, meu filho. Responde
o mestre sem conter sua tarefa. E Horácio, tapando os ouvidos sussurra: Eu não
consigo imaginar nada quando ouço isso.
O tempo passou e na sua solidão o
menino Horácio, agora já crescido amola sua baioneta; numa terra distante e em
guerra ouve ao longe, talvez numa madrugada, vindo de uma oficina o mesmo ruído de lima e serra, que lhe faz lembrar de seu pai.
-Eu só consigo lembrar do senhor. Lembro de sua roupa. Lembro do modo como os óculos ficavam presos no seu
nariz.“Veja. Os dentes desta serra Horácio, não
são como o fio de uma espada; são feitos para cortar lentamente o que resiste
ao corte, o que não nasceu pra ser cortado. Quando eu amolo estes dentes,
diminuo o meu esforço no instante da serragem. E este trabalho repetitivo, de
amolar dente por dente, é pra mim o instante em que penso nas coisas do mundo;
penso nos meus erros e arrependimentos; faço planos; arrependo-me ou me alegro”.
Muitas vezes foi sentado diante
do palco vazio e escuro, que pude visualizar essas palavras tomando ação e beleza.
Sempre falo a respeito dos solfejos de músicas íntimas que adornam as palavras
no instante em que elas me surgem. Muitas vezes sozinho solfejei, como Serafin, diante do palco
e, as palavras não surgiam em letras. Elas me surgiam em música e cena.
Eu estava enfim no lugar predestinado a mim.
A atriz nua da alma imoral era
pura música e cena. E nada havia de melodioso ali nem mesmo sua voz. Foi quando pensei
que o estado silencioso e desordenado da música é como o estado invisível de uma cor que não sabemos explicar pois é invisível. Quando eu
ouvia a atriz nua, percebia que a música estava em mim e em todos que ali na plateia
em silêncio também a ouviam. Ela estava nua para nos mostrar o quanto nossa
moral é elástica e conveniente; o quanto a arte e sua beleza superam qualquer
limite, vencem qualquer muralha religiosa, patriótica, consuetudinária ou cultural.
Se houver um messias em que eu
acredite, este messias não se manifestaria nunca sem a arte. Se um dia eu pude ouvi-lo
nos meus sonhos, o que eu ouvi dele eu manifesto na arte que faço. Do mesmo
modo, não posso amar outra criatura humana sem que este amor que sinto seja
simplesmente a manifestação da arte do amor em mim. No meu pequeno mundo de
sensações, fazer amor é se fazer arte, é criar para que a alma chegue ao êxtase
da comunhão.
Desde quando cheguei e entrei no
escuro da caixa italiana do teatro velho, esperei a mão que me conduziria ao
equilíbrio. eu a imaginei em sonhos profundos. ela não tinha rosto nem forma, era furtiva; por vezes leve como brisa; por vezes um vendaval.
Talvez eu não tenha sido paciente na espera. Mas quem o é?
Um
crente me diria que o fiel perfeito sempre espera com paciência. Mas o fiel
perfeito não é somente uma redundância para tratar daquele que tem fé?
Só sei que a decepção é a força
que pode sim jogar por terra a fé outrora inabalável.
Mas sei que a decepção pode sim
construir um alicerce para uma fé invencível.
Não seria fé invencível também um
modo redundante de se falar da fé? Só sei que ali, diante do palco em sombras
eu tentava encontrar outros caminhos, mesmo depois das profundas decepções que o teatro me revelou.
Horácio, entre as batalhas de uma
guerra sangrenta, lembrava de seu pai a amolar um serrote. O ruído dessa
atividade, antes tão insuportável ao menino, na dor da saudade torna-se uma
sinfonia. E vejam só o quanto é mutável o belo.
O belo transcende a forma.
A fé transcende as dores. E mesmo
profundamente ferido, o fiel resiste pois resiste sua fé, pois a fé de um único homem
é maior que os desejos e desígnios de todos os deuses de todos os tempos e de todas as raças.
Lembro que certa vez, refletida numa muralha de papel de seda, uma rosa vermelha se abria enquanto uma cantora cantava coisas profundamente tristes.
a muralha frágil e imensa a envolvia. Ela poderia sair dali, se quisesse. na muralha todas as suas sensações se refletiam, todas as suas sombras e todas as cores prismatizadas dessas sombras.
A rosa refletida na muralha continuava a se abrir mesmo entre tanta tristeza. e a muralha de papel fino e branco jamais foi vencida. tudo o que é frágil pode ser forte, dizia aquele cenário.
Tudo o que é frágil pode ser forte.
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