domingo, 11 de novembro de 2012

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VERÍDICA OU QUASE


O PAI

Nos Pequenos trechos poéticos de paternalidade, que venho escrevendo, vejo e descrevo Vasco amolando o serrote sem notar a presença do filho.

Esse ruído não te incomoda? Horácio indaga ao pai. E lá está o velho Vasco com seus óculos de armação esfregando a lima entre os dentes do serrote, produzindo um ruído insuportável aos ouvidos do menino.

É necessário, meu filho. Responde o mestre sem conter sua tarefa. E Horácio, tapando os ouvidos sussurra: Eu não consigo imaginar nada quando ouço isso.

O tempo passou e na sua solidão o menino Horácio, agora já crescido amola sua baioneta; numa terra distante e em guerra ouve ao longe, talvez numa madrugada, vindo de uma oficina o mesmo ruído de lima e serra, que lhe faz lembrar de seu pai.

-Eu só consigo lembrar do senhor. Lembro de sua roupa. Lembro do modo como os óculos ficavam presos no seu nariz.“Veja. Os dentes desta serra Horácio, não são como o fio de uma espada; são feitos para cortar lentamente o que resiste ao corte, o que não nasceu pra ser cortado. Quando eu amolo estes dentes, diminuo o meu esforço no instante da serragem. E este trabalho repetitivo, de amolar dente por dente, é pra mim o instante em que penso nas coisas do mundo; penso nos meus erros e arrependimentos; faço planos; arrependo-me ou me alegro”.

Muitas vezes foi sentado diante do palco vazio e escuro, que pude visualizar essas palavras tomando ação e beleza. Sempre falo a respeito dos solfejos de músicas íntimas que adornam as palavras no instante em que elas me surgem. Muitas vezes sozinho solfejei, como Serafin, diante do palco e,  as palavras não surgiam em letras. Elas me surgiam em música e cena.

Eu estava enfim no lugar predestinado a mim.

A atriz nua da alma imoral era pura música e cena. E nada havia de melodioso ali nem mesmo sua voz. Foi quando pensei que o estado silencioso e desordenado da música é como o estado invisível de uma cor que não sabemos explicar pois é invisível. Quando eu ouvia a atriz nua, percebia que a música estava em mim e em todos que ali na plateia em silêncio também a ouviam. Ela estava nua para nos mostrar o quanto nossa moral é elástica e conveniente; o quanto a arte e sua beleza superam qualquer limite, vencem qualquer muralha religiosa, patriótica, consuetudinária ou cultural.

Se houver um messias em que eu acredite, este messias não se manifestaria nunca sem a arte. Se um dia eu pude ouvi-lo nos meus sonhos, o que eu ouvi dele eu manifesto na arte que faço. Do mesmo modo, não posso amar outra criatura humana sem que este amor que sinto seja simplesmente a manifestação da arte do amor em mim. No meu pequeno mundo de sensações, fazer amor é se fazer arte, é criar para que a alma chegue ao êxtase da comunhão.

Desde quando cheguei e entrei no escuro da caixa italiana do teatro velho, esperei a mão que me conduziria ao equilíbrio. eu a imaginei em sonhos profundos. ela não tinha rosto nem forma, era furtiva; por vezes leve como brisa; por vezes um vendaval. 

Talvez eu não tenha sido paciente na espera. Mas quem o é? 

Um crente me diria que o fiel perfeito sempre espera com paciência. Mas o fiel perfeito não é somente uma redundância para tratar daquele que tem fé?

Só sei que a decepção é a força que pode sim jogar por terra a fé outrora inabalável.

Mas sei que a decepção pode sim construir um alicerce para uma fé invencível.

Não seria fé invencível também um modo redundante de se falar da fé? Só sei que ali, diante do palco em sombras eu tentava encontrar outros caminhos, mesmo depois das profundas decepções que o teatro me revelou.

Horácio, entre as batalhas de uma guerra sangrenta, lembrava de seu pai a amolar um serrote. O ruído dessa atividade, antes tão insuportável ao menino, na dor da saudade torna-se uma sinfonia. E vejam só o quanto é mutável o belo.

O belo transcende a forma.

A fé transcende as dores. E mesmo profundamente ferido, o fiel resiste pois resiste sua fé, pois a fé de um único homem é maior que  os desejos e desígnios de todos os deuses de todos os tempos e de todas as raças.

Lembro que certa vez, refletida numa muralha de papel de seda, uma rosa vermelha se abria enquanto uma cantora cantava coisas profundamente tristes.

a muralha frágil e imensa a envolvia. Ela poderia sair dali, se quisesse. na muralha todas as suas sensações se refletiam, todas as suas sombras e todas as cores prismatizadas dessas sombras.

A rosa refletida na muralha  continuava a se abrir mesmo entre tanta tristeza. e a muralha de papel fino e branco jamais foi vencida. tudo o que é frágil pode ser forte, dizia aquele cenário.

Tudo o que é frágil pode ser forte.



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