sábado, 17 de novembro de 2012

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VERÍDICA OU QUASE





Acordei com a ideia de que eu precisava escrever algo para ser encenado por 2 atrizes desta cidade. Na verdade comecei planejando que poderiam ser 3 atrizes, acabei não encontrando em minha oca cabeça mais que duas. Dividi a ideia com meus amigos, eles como sempre gostaram.

Mas desde quando a ideia apitou, nenhuma frase do texto passou por meu pensamento e por isso sei que essa historinha é só um plano que tem uma grande possibilidade de nunca se realizar. Mas, até agora estou pensando nesse texto que não vem, é inútil insistir, penso comigo mesmo, mas não consigo me livrar disso. A obsessão insiste, já tem durado horas, penso sem parar no texto que ainda nem comecei a escrever.

Por um erro de planejamento o meu estoque de comida chegou ao fim, que grande novidade. A geladeira está vazia, o pequeno armário preto da cozinha está vazio. As panelas sobre o fogão estão vazias. O saco de ração do cão está vazio. Mas as coisas deste mundo vez ou outra se tornam assim. É uma espécie de lição; devo estar errando novamente m algum lugar.

Dividi o arroz cozido com Bodelé, como nos velhos tempos. No meu coloquei açúcar, mantendo um pouco de caldo; no do dele não adicionei nada. Ele ficou puto, quase chegou a falar quando me servi primeiro e deixei o seu quinhão esfriando sobre o balcão. “espera aí!” Eu disse. “Vai queimar a porra da língua!”. Bodelé olhou na direção do balcão, tentava me dizer algo.

Tenho uma grande história de arroz com esse cara. Quando fiquei sozinho nesta cidade, ele foi a companhia que me restou, por um bom tempo. 

Certa vez fiquei tão doente que foi necessário um internamento. Fiquei mais de tres dias no hospital. Quando voltei pra casa Bodelé parecia não estar lá. Procurei por toda a vizinhança e nada. 

Eu ainda estava muito fraco, os braços marcados pelas agulhas e uma fome dos diabos. Resolvi procurar pela casa e, num lugar bem escondido, atras da bancada percebi que dois olhos acesos me observavam. Era ele. 


Respirei aliviado. Quando tentei abraçá-lo ele saiu correndo, se debatendo pela casa, gritando como um louco. Parecia não me reconhecer. Eu havia deixado o portão entreaberto e então ele saiu pela rua, correu se debatendo e caiu numa poça de lama. Deu um trabalho dos diabos convencê-lo a me deixar levá-lo no colo de volta pra casa. Minha cabeça parecia querer estourar. Alguns vizinho me ofereceram ajuda. Outros me recriminaram por não tê-los avisado que eu estava internado. Fodam-se, eu pensei, se eles soubessem como é uma crise, não se dariam ao trabalho das queixas.

Finalmente consegui levar Bodelé para casa, eu e ele cobertos de lama e a vizinhança inteira com suas velhas gordas e feias a nos observar. Ainda o vi me desconhecer tres outras vezes e tres outras vezes a cena inteira se repetia. 

Extremamente exausto, adormeci. Quando acordei ele havia desaparecido. Calmamente fui verificar se ele estava no seu esconderijo atras da bancada. E lá estava ele com seus olhos arregalados.

Eu sabia que aquele cão estava faminto, muito, muito faminto. De alguma forma ele estava se preparando para morrer de inanição, já havia escolhido o lugar, já havia se conformado. 

Eu, o fantasma do amo desaparecido surgira do nada para atormentá-lo, para incomodar seu momento de morte. Eu não sabia ao certo quanto tempo fiquei fora. Perde-se a noção de tempo depois de um coma. Resolvi preparar um arroz cozido, adocei por supor que a doçura do açúcar pode acalmar até os doidos de pedra. Depois que esfriou, aproximei a vasilha do esconderijo, chamei por seu nome, Bodelé! Repeti o gesto outras muitas vezes. Comecei então a comer o arroz, ele, ainda com os olhos vidrados,  aproximou-se lentamente. Com as mão levei-lhe á boca um pouco do arroz, abaixei a cabeça pra que ele não vise o meu rosto. Percebendo que estava seguro, o pobre cão começou a lamber o arroz adoçado em minhas mãos. E então se aproximou da vasilha e passamos a dividir a refeição, como componentes da mesma matilha.

se Bodelé fosse humano, bastaria que eu articulasse a frase: me perdoa.  Eu até poderia dizer que ele jamais tinha saído do meu juízo, mas justificativas são coisas que os cães não tomam como importantes, nem mesmo pedidos de perdão. Mas ele  é um cão, precisa que eu mostre a vida, a possibilidade da vida através dos meus gestos. 

Eu cheguei às portas do inferno levando as lembranças dele.  No leito do hospital, quando um pouco de sobriedade me alcançava, eu tentava articular algo a respeito de um amigo que estava trancado em casa. Mas eu não podia nem falar direito, a língua enrolava. Eu não tinha o número de vizinho algum, mania feia, ainda não tenho. Além do mais o hospital era um maldito hospital público. Deus do céu...  

Se Pirilampo estivesse em casa...

se Pirilampo estivesse pelo menos na mesma cidade...



Antes que eu conseguisse um lugar para morar, tive que deixá-lo na casa de uma antiga namorada. Ela dizia que me amava. Ela prometeu cuidar do meu amigo felpudo até que eu conseguisse me estabelecer. Além do mais, ela sabia da historinha de loucura famélica antemorte  do Bodelé. Gabriela levou-o para sua casa. dizia que lá morava com ela o seu cão viralata Nestor; tornariam-se os dois, decerto, bons amigos. Mas essa é uma outra aventura.


Suponho que eu não seja boa companhia pra ninguém, tenho pensado muito nisso ultimamente; sendo assim, esse poodle dos infernos só se mantém comigo porque não sabe falar ou escrever e muito menos é capaz de cozinhar seu próprio arroz ou trabalhar para comprar sua comida. Se ele soubesse falar e escrever, com certeza, já teria se mandado e nem deixaria carta alguma de despedida. Quase posso afirmar que alguns cães só se submetem aos humanos por serem também praticamente escravos inconscientes do mesmo senhor que escraviza seus donos. Por outro lado, se os cães ou qualquer outro animal tivesse a capacidade de articular pensamentos através de uma língua compreensível aos humanos, putz! teríamos leis a amparar os relacionamentos entre espécies.

...



Hoje há um dia ensolarado lá fora...

Bodelé está deitado na sala de lajotas verdes. Parece tranquilo.

Quando penso no texto que se contrai e relaxa dentro de meu juízo, uma imagem de ponto de ônibus se materializa. Penso em duas mulheres que rotineiramente se encontram a esperar uma condução. Penso que depois de anos se encontrando ali, um evento as faça finalmente trocar algumas palavras. Eureka! 

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