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VERÍDICA OU QUASE
ontem eu não conseguiria dormir, mesmo com muito
sono eu continuaria aceso.
Tres da madrugada e eu continuava a zanzar pelos
corredores. Não era a insônia dos preocupados, era a de quem não quer fechar os
olhos. Fiquei procurando coisas de comer. Como nada encontrei resolvi assistir
a um filme que tratava de orquídeas e insetos.
No filme havia um escritor que sofria. As
caricaturas de escritores sempre são assim...
sofredores nem um pouco peripatéticos.
Escritores são sofredores sentados.
Isso me parece risível.
Mas se é caricatura...
Olhei ao filme sem me importar com o enredo, me
chamava a atenção as imagens das orquídeas a fazer amor com insetos. Dizia-se
que cada inseto procurava em sua curta vida encontrar a sua orquídea, aquela
que a ele fora designada para que polinizasse a terra. Bonito, isso em frase
ficou em mim como uma boa melodia.
Mas eu não queria ficar quieto diante de uma
máquina ruidosa, naquela época eu ainda insistia no romantismo de uma Olivetti,
por isso, por estar cansado daquele bate bate, me levantei a zanzar novamente.
Foi quando encontrei a velha senhora que me criou a me observar com muita
preocupação; ela estava ali, viva ainda, com as mãos nas cadeiras. Eu a olhei e
sorri como quem disfarça uma travessura. Justifiquei que estava tudo bem, que
eu só tivera um dia agitado e nada mais. Contei-lhe que ouvi frases que ficaram
registradas em mim mas que eu não sabia como explicá-las como algo marcante,
pareciam simples mas me atingiam. Algumas eram boas, outras eram de me amargar
o juízo. Mas eu não estava acordado por culpa das palavras do alheio, eu estava
acordado por meu querer mesmo.
Quer um leite? Ela indagou. Eu aceitei. Era de
madrugada e aquela mulher de oitenta e cinco ainda me acalantava como se eu
fosse o bebê de outrora. Senti muito carinho por ela. Foi nisso que segui a
recomendação de Belleine e lhe fiz um afago. Em seguida lhe pedi um abraço. Ela
veio lentamente, perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim e me deixou
abraçado a ela. Ficamos assim um tempo... é... ela tem o mesmo cheiro que ficou
na minha saudade, roupas muito bem cuidadas, lavadas com uriza. Quando fui
embora daquela casa e não mais voltei?
Eu me lembro de quando eu era criança e a senhora
me deitava sobre suas pernas. Eu sei que se lembra. Sim, lembro também que foi
um tempo muito difícil. Alimentar onze pessoas numa terra nova e estranha. Não
foi fácil. É, com certeza não foi fácil.
Permanecemos muito tempo em silêncio. os galos
faziam seu útil papel inútil.
Quer que eu faça um chá? Ontem eu fiquei
preocupada com seu estado. Isso não deve lhe preocupar, estou muito bem
agora...as dores passaram depois dos seus chás, é sério! Não precisa de
chá não, vá dormir, vá.
É preciso que se cuide.
Eu sei. Vai ficar tudo bem, a dor física passa
logo, é sempre assim.
Um peso magistral que me empurra para o centro da
terra...
eu gostaria que o tempo voltasse...
leveza.
Kundera disse que os estados desse gênero podem
revelar uma leveza insustentável. Eu estava ali abraçado à velha senhora,
sentindo seu cheiro, sentindo vontade de chorar, sentindo vontade de ser
criança novamente e ser feliz o dia inteiro, e ter medo dos escuros do quintal,
e ficar ansioso nos finais de tarde a esperar o retorno de meu pai que a mim
sempre trazia elefantes de açúcar derretidos levemente pelo calor de suas mãos
vigorosas de pai.
O que desejar?
Dormir no colo da velha senhora e esperar, aos
fingimentos de sono pesado, ser levado para a pequena rede que se esticava num
dos cantos da palafita...
Sim... depois perder o sono e descobrir que fingir
dormir é pior que estar acordado.
Coisas estão despertando em mim. A relembrança
marca seu início.
Posso dizer agora que sei que a qualquer segundo
devo reencontrar a perdida alma de meu bennário.
E será nesse mesmo instante que me tornarei
novamente o que fui.
Aquilo que agora já não sou.
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