sexta-feira, 9 de novembro de 2012

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 VERÍDICA OU QUASE


Eu poderia dizer: pobres criaturas, Marilyn Manson já fez isso, e nem é tão falso e ruim quanto isso. Toda essa busca pela ilógica, pela descombinação, pelo desconforto é patética. Eu preferia no entanto me fechar  numa guerra invencível e a frase constante dessa guerra ecoava: fomos criados a sentir medo. Tatuaram em nossas almas o limite.

Amedrontados e limitados pelo medo.

Nina cruzava o palco vez ou outra e seus olhos me buscavam do meio daquela gente. Ela trazia sempre um pano umedecido com água gelada e fazia com que minha febre passasse, pelo menos por algum tempo.

Passamos a dividir coisas. Ela ria de minhas vastas manias e era solidária à minha sede. Certa vez confessei estar perdido. Ela não veio com essa de me mostrar caminhos metafísicos, nem detalhou-me a cor de suas preferências ou as esquisitices de seus deuses. 

“Amo as mulheres”, eu disse, “tem algo sagrado nas mulheres”.

“Um dia esse ardume entre a carne e a pele vai passar”. É claro que vai passar. Vai virar riso, vergonha. “Tenho uma ideia, vamos beber no palafita. Vamos ficar bêbados, eu e você”. Não. Se somos só nós dois nessa grande noite, cada um fica inconsciente a seu tempo. Um de nós deve se manter sóbrio.

Seu pano frio foi tirando de mim a febre, aos poucos. Pouco me dei conta que seu milagre estava acontecendo. Ela me ajudava a sair de meu barco- sem- remo, fazia com que eu sentisse a areia. “Você é cheia de verdade”, eu disse. Nunca pensei que entre as sombras do teatro houvesse alguém tão cheio de verdade.

“Você consegue perceber o medo dessas criaturas?”

Ela disse que não. Eles foram tatuados por um demônio, sabia?

Lentamente construíram um muro lá dentro. Eles não conseguem sair; toda a paisagem que dizem enxergar está apenas pintada no muro. Chego a pensar que realmente a morte assim só pode levar a infernos.

A febre passava...
Esses pensamentos foram me deixando em paz.
Foram sumindo de dentro da caixa italiana.

Agora, o teatro está sendo reformado; é como uma velha que estica as peles para parecer mais nova. Fisicamente o que acontece é um resumo da cena que dura um quadriênio.

Fugir é sempre uma atitude de risco calculado. A derrota é que é uma merda! A derrota da fuga é que te fode o juízo! “Fugiste!” diz a voz dentro de ti.

A febre passou.

Parece-me que ela já sabia disso há muito tempo. Há muito tempo não me indaga a respeito. Então resolvi confessar a ela o que me incomodava: "Tenho a impressão que minha alma se dispersou por aqui. Meu ânima anima o urdimento. Agora entendo, mas não sei dizer direito. Quando eu souber te digo, ou nem digo. Nem sei se precisaria dizer".

Ela sorriu e depois falou num tom indagativo que sempre usa:

"E você acha que não está dizendo agora?"

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