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VERÍDICA OU QUASE
Eu poderia dizer: pobres criaturas, Marilyn Manson já fez
isso, e nem é tão falso e ruim quanto isso. Toda essa busca pela ilógica, pela descombinação, pelo desconforto é patética. Eu preferia
no entanto me fechar numa guerra invencível
e a frase constante dessa guerra ecoava: fomos criados a sentir medo. Tatuaram em
nossas almas o limite.
Amedrontados e limitados pelo medo.
Nina cruzava o palco vez ou outra e seus olhos me buscavam do
meio daquela gente. Ela trazia sempre um pano umedecido com água gelada e fazia
com que minha febre passasse, pelo menos por algum tempo.
Passamos a dividir coisas. Ela ria de minhas vastas manias e
era solidária à minha sede. Certa vez confessei estar perdido. Ela não veio com
essa de me mostrar caminhos metafísicos, nem detalhou-me a cor de suas
preferências ou as esquisitices de seus deuses.
“Amo as mulheres”, eu disse, “tem
algo sagrado nas mulheres”.
“Um dia esse ardume entre a carne e a pele vai passar”. É claro
que vai passar. Vai virar riso, vergonha. “Tenho uma ideia, vamos beber no
palafita. Vamos ficar bêbados, eu e você”. Não. Se somos só nós dois nessa
grande noite, cada um fica inconsciente a seu tempo. Um de nós deve se manter sóbrio.
Seu pano frio foi tirando de mim a febre, aos poucos. Pouco me
dei conta que seu milagre estava acontecendo. Ela me ajudava a sair de meu
barco- sem- remo, fazia com que eu sentisse a areia. “Você é cheia de verdade”,
eu disse. Nunca pensei que entre as sombras do teatro houvesse alguém tão cheio
de verdade.
“Você consegue perceber o medo dessas criaturas?”
Ela disse que não. Eles foram tatuados por um demônio, sabia?
Lentamente construíram um muro lá dentro. Eles não conseguem
sair; toda a paisagem que dizem enxergar está apenas pintada no muro. Chego a
pensar que realmente a morte assim só pode levar a infernos.
A febre passava...
Esses pensamentos foram me deixando em paz.
Foram sumindo de dentro da caixa italiana.
Agora, o teatro está sendo reformado; é como uma velha que
estica as peles para parecer mais nova. Fisicamente o que acontece é um resumo
da cena que dura um quadriênio.
Fugir é sempre uma atitude de risco calculado. A derrota é
que é uma merda! A derrota da fuga é que te fode o juízo! “Fugiste!” diz a voz
dentro de ti.
A febre passou.
Parece-me que ela já sabia disso há muito tempo. Há muito
tempo não me indaga a respeito. Então resolvi confessar a ela o que me incomodava: "Tenho a impressão que minha alma se dispersou por aqui. Meu ânima anima o urdimento. Agora entendo, mas não sei dizer direito. Quando eu souber te digo, ou nem digo. Nem sei se precisaria dizer".
Ela sorriu e depois falou num tom indagativo que sempre usa:
"E você acha que não está dizendo agora?"
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