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Certa vez eu fiz uma outra contagem regressiva, muito parecida com esta que faço agora. Eu estava a ponto de estourar e só havia uma salvação. Então eu contava regressivamente os dias que me separavam dos olhos de Pirilampo, e de sua mãe, que lhe guardara pra mim.
Eu tinha cometido um erro, entrado numa brincadeira de crianças perdidas. Eu estava com todas as juntas doloridas, pois eu já era um velho.
E eu pensava: Os olhos de pirilampo vão me curar dessa doença.
Lembro que foi num mês de dezembro que recebi a notícia de que minha contagem regressiva fora inútil. Eu não teria mais a presença da menina ao meu lado. Lembro que eu tive um ombro pra me queixar, no qual apoiei minha cabeça e lagrimei como uma mocinha. Lembro que eu não soube ao certo o que senti.
Veja só o que arranquei de mim mesmo.
Idiota.
Ouço muita gente falar de amor. Sinto meus tímpanos estourarem de tanto ouvir essa gente gritando os seus amores. Se todos nós nos calássemos um instante, por um segundo deixássemos o universo livre de nossas caraminholas, quem sabe, reaprenderíamos a amar.
Nina me recebeu e cuidou do que restava em mim, depois daquele dezembro. Absolutamente sem fé, passei a olhar para corpos humanos andando como quem olha para criaturas desconexas, tontas, cheias de estardalhaço, amontoados como bonecos playmobil numa pequena estação ferroviária . Minha decepção, minha raiva, meus erros tomavam conta de minha cabeça. Envelheci ainda mais do mesmo modo como envelhecem os castanheiros. Eu bebia água, eu comia o que bem fosse; qualquer coisa que me saciasse a fome ou a sede. Eu estava cheio de ódio.
Atravessei o país, certa vez, só para dizer que amava. Era um tempo em que eu não sentia dores musculares. Amar, nunca julguei que esse verbo, agora banal pela cidade por conta de sua força mercantil, fosse vazio em minha boca. Esse verbo me preenchia e me fazia desejar povoar o mundo. Eu estava louco, invadido de uma deliciosa loucura permissiva, apaixonado. Foi com ela, a dona disso, depois de alguns anos, que escolhi ter um filho. Descobrimos um tempo depois, num exame onde os sons tomam forma visível, que se tratava de uma menina. O que sentir? Dávamos ao mundo uma ninfa? Uma cura? Toda criança que nasce possui o enigma e a potência de um messias.
Buscar em outras criaturas isso que me faltava...
Ideia tola dos diabos. Era como se nu, eu tateasse entre urtigas, tentando a todo o custo encontrar um diamante. Sozinho, eu não conseguia criar; tornei-me um fracasso ambulante; alguém que depois de um naufrágio já simplesmente espera que os músculos não obedeçam. Rub deu-me então o mundo, o espaço, as possibilidades e o caminho. É claro que não entendi assim naquele instante, é claro que assim só agora entendo. A merda é que os sinais que me surgiram foram os mesmo que me fraudaram logo depois.
Nina agora mesmo sabe que devo ir, pois já me enxerga e reconhece meus olhos entre os olhos da multidão... e o amor em mim por Nina é um tempo livre de medição. Nina trouxe-me num jarro a cura. Nina buscou me colocar de volta diante do caminho, aquele mesmo caminho. Volte a caminhar! Ela me dizia com seus gestos, eu mal conseguia manter os olhos abertos. Nina, por causa da criatura mágica que é, levou-me a me reconstruir.
Foi depois de velho que aprendi que há quem seja imenso em disfarces. Tão imenso que nem mesmo sabe que disfarça. Eu mesmo por tanto tempo disfarcei. Mas agora basta. Essas rotinas cansativas de verter o mundo de acordo com os ventos que esperamos...
Essas rotinas vazias...
Definitivamente o amor não é essa quantidade imensa de palavras e, toda essa gritaria mundana para deuses, músicas, artes... destemperos planejados.
Tenho tentado novamente jardinar a área livre diante de minha casa. Os dias de sol estão tão dominantes...
Hoje faz um frio de chuva. Seria um bom dia pra sentir saudades e tomar café coado com biscoitos mineiros. Hoje seria um bom dia para pensar na vida... sem pensar em nada.
O que me aguarda no final desta contagem regressiva?
Penso na imagem do riso de Pirilampo.
Penso em Nina
em Rub
em Dora a olhar através da janela
Penso em Pandora
em Bodelé
Penso que o sorriso em tudo isso é o mesmo sorriso meu. Diamante entre urtigas, guardado pelo tempo e pelo testemunho de quem o perdeu, valorizado ao divino pela criatura cansada que o reencontra, neste dia que amanhece com um frio de chuva.
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