Por dentro da cabeça do demônio
"Tive essa fortuna em vida de conhecer a música em alguém. A fortuna de lhe ver, sentir, tocar, amar e ouvir premente e fisicamente na existência de alguém".
Ali sentado eu não sabia exatamente o que fazer. O músico que dividia comigo a estante agasalhou em seus pés um copo Stanley cheio de chá mate e ao lado uma grande xícara de café. Aquilo me pareceu uma boa idéia pra enfrentar duas horas de ensaio sem intervalo. Sigfried fez um breve discurso a respeito das duas peças que estudaríamos e deu grande ênfase ao fato de que Mozart escreveu uma delas aos nove anos de idade. Indagou com bom humor: O que vocês estavam fazendo com nove anos de idade?
Eu senti vontade de dar a única resposta óbvia de ser dada. Eu diria: não sei maestro, eu ainda tenho quatro anos de idade, resta saber o que Mozart fazia aos seus quatro anos.
Posso me dar a esse luxo de me ver renascido e recomeçar. Posso me ver tão broto em algo, ainda sem raízes, facilmente levado pelo vento. É um direito meu me renovar assim, mesmo que não funcione, mesmo que meu apelo por vida fracasse. Quem sabe, quando eu chegar aos meus nove anos, desta nova vida, eu escreva minha primeira sinfonia.
...
Como não amar a nota sol?
Até aqui eu vim sozinho e nunca toquei ao lado de ninguém. Até há pouco tempo eu nem sequer tive o prazer de ouvir um violino de outro músico soar perto de meus ouvidos. Fiz algumas tentativas disso, mas pra mim era impossível. Como encarei a música como minha cura interior, não cabia a mim usá-la para me expressar aos outros, não me parecia correto distribuir por aí um remédio que só em mim fazia efeito. E agora eu estava ali, rodeado de jovens aprendizes com um terço da minha idade. Todos me olhando não sei se com admiração ou condescendência. Entretanto, no viés desse caminho eu tenho sentido uma profunda paz. tenho o dia todo para me dedicar a isso. tenho a calma dos taciturnos e nenhum medo da morte. Ora bolas, tenho a certeza absoluta que estarei morto daqui a vinte anos. Eu aos meus setenta e quatro, talvez até mais envelhecido que Yvri Gitlis, quem sabe tocarei uma bela melodia diante dos olhos lacrimejantes dos jovens, tendo a certeza de que eu já deveria estar morto.
Como não amar a nota sol? O maestro levantou os braços e ela ressoou pela sala dominando os outros tons. Mas há uma sensação que eu não devo deixar escapar destas minhas memórias. Eu estava dentro da cabeça de Mozart. Mozart era um grande salão onde grandes estantes se organizavam e exibiam notas musicais. Nas paredes dessa grande sala havia muitos quadros que certamente retratavam as memórias do menino prodígio. Mas por algum motivo as imagem eram impossíveis de ser definidas, afinal, como eu poderia imaginar as coisas pelas quais o jovem compositor passou para organizar aquelas notas musicais em frases tão singelas, como se a vida fosse uma festa pueril e infinita?
E enquanto durou aquele ensaio, fui abrigado por aquela mente tão distante no passado e ainda tão presente ali. Que milagre, não é? Isso me fez sentir uma profunda felicidade e por um instante até acreditei em espirítos. Pelo menos por aquele momento acreditei que a vida tem a vocacão de ser eterna.
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