domingo, 3 de março de 2024

A PERFEIÇÃO E O IMPOSSÍVEL 2

Eu já tinha ouvido a respeito do mito dos lugares onde se senta, mas foi a primeira vez que o experimentei na prática. A esse mito vou chamar a DOCE DANÇA DAS CADEIRAS. Mas não vou perder tempo explicando esse mito de nome tão interessante. Por agora fiquemos com a voz do maestro me dizendo"Lavodnas, sente aqui nessa cadeira. Pra mim, por não me importar ainda com o meu lugar naquela equipe, o que menos me preocupava era o lugar onde eu ficaria sentado. O maestro agora parecia incomodado com a temperatura da sala, realinhou as ventuínas do condicionador de ar e aumentou a temperatura que ficava piscando no mostrador para vinte e três graus.

Quanto ao maestro, por agora só posso desenhá-lo pra você como sendo um homem branco, alto e um tanto gordo, com as bochechas rosadas e um sorriso simpático. Ainda há pouco estávamos na geladíssima sala de ensaio de naipe e ali ele se demonstrou uma criatura afável, com um certo calor humano, demonstrando sem nenhuma cautela ou culpa, sua alegria altamente educada e polida por fazer parte daquele universo inspirador. Quando esfreguei as mãos de frio ele indagou solenemente: Ist Lavodnas kalt? Respondi que sim, mas que isso não seria um problema. Mas de onde eu tirei a palavra culpa? Mas por que ele teria culpa? Por seus privilégios? Por parecer tão feliz e espontâneo?  Quem sou eu para intuir que tal sujeito tenha tido uma vida fácil? Nada do que eu tinha dele até aquele momento me seria suficiente para julgá-lo ou pré concebê-lo. Por agora fiquemos por aqui com o maestro. Haverá tempo pra que seu personagem se revele e se desenvolva. Mas é justo que ele receba uma alcunha, por isso vamos chamá-lo de Sigurd, o herói mitológico tão aclamado por Wagner, tão indistintamente...  não, melhor, vamos batizá-lo com a versão alemã do nome Sigurd: Sigfried.


O maestro Sigfried têm um prazer peculiar em falar alemão. É possível vez ou outra pegá-lo pelos corredores soltando pequenas frases nessa língua ou balbuciando com voz orgulhosa depois de um gracejo: Es gibt hier einige germanist? Suponho que Sig tenha estudado na Alemanha ou na Austria, daí seu interesse peculiar em ostentar alegremente sua habilidade em falar o idioma de Wolfgang, que por sinal, assinava as duas peças escolhidas para estudarmos. A primeira sendo a insuportavelmente famosa Eine Kleine Nachtmusik e a outra a mitológica sinfonia número quatro, que segundo dizem, um prodigioso Mozart escreveu aos seus nove anos de idade. Eu sinceramente não me permito entrar no mérito da verdade disso. Mozart é um deus, respeitemos a divindade milagrosa dos deuses.

Quando me direcionei para as cadeiras do lado direito da sala, ouvi uma voz de menina: Senhor, sua cadeira é lá pro outro lado. Na verdade eu não queria já me sentar, queria apenas apoiar meu estojo na parede em busca de encontrar as partituras que estavam amontoadas dentro do meu bornal. Para não causar embaraço na doce dança das cadeiras vigiada pela infante, me direcionei para o outro lado da sala sem me queixar e repousei minhas coisas no chão ao lado de um outro assento qualquer. Foi então que ouvi a voz de Sigfried vinda do patíbulo: Lavodnas, sente aqui, nesta cadeira.

Ora, ora, eu estava dançando com quarenta e cinco anos de atraso. Eu estava fazendo parte da fantástica e doce dança das cadeiras. O espala levantou-se educadamente e ali, naquele instante a nota Lá vibrou como nunca antes na minha vida eu a ouvira vibrar. Eu, nos meus pensamentos sarcásticos e felizes, não pude deixar de  me imaginar balbuciando a Sig: Die Zeit ist der Geist, meine kleine Heuschrecke!





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