segunda-feira, 20 de março de 2017

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O técnico de som se incomodou com os arranhões das malas cenográficas do "Jardim". Pobre homem perdido. Nina ainda respondeu algo, agradecendo brevemente a ignorante preocupação dele. As malas precisam de cicatrizes, diria-me Nina num lugar menos ruidoso.

As cicatrizes nas malas dizem muito mais das viagens, que os próprios verbos do viajante.

Fico pensando a respeito disso, dessas aproximações indevidas e invasivas e isso... cada vez mais me leva a querer entender as distâncias que impomos entre nós, como humanos, como criadores até. Como criaturas famintas por um sossego faminto como o dos jacarés.

Quando a borboleta voa em cena, ela observa as flores onde pode pousar. Não sei ao certo como funciona essa escolha dela, mesmo que ela esteja pendurada em minhas mãos e pareça parte de mim. Creio que algumas crianças, cheias de espírito de flor aparecem pro espetáculo com o afã de receberem um pouso, pelo meno invento essa crença em mim, pra que tudo tenha um sentido mais meigo. Creio até que já há algumas que esperam ansiosas pra que isso aconteça, com certa certeza, moldando um comportamento, como os devotos em um templo. Elas de certa forma entendem, é um jogo, é a borboleta que escolhe a flor, elas sabem. E como são imprevisíveis as borboletas. e como são imprevisíveis as flores e as crianças.

Aprendi isso ao acaso, quando borboletas azuis apareceram numa manhã e começaram a pousar num pé de sombra que nascera furtivo no saguão de minha casa. Eu dizia a minha pequena Aísha que isso não era menos que um milagre. Aprendemos juntos, eu e ela, que nos restavam duas maneiras de fruir borboletas livres. Uma seria flanando pelos campos com os olhos atentos; a outra, seria cultivando um jardim.

Decidimos pelo jardim.

Minha vida deu uma reviravolta e cá estou ainda cultivando, ornado por plantas de braquias coloridas. Ontem vi, voando por sobre ele, esse jardim meu de agora, pobrezinho ainda de flores, uma borboleta cor de laranja...

Quantas viagens para voltar ao mesmo lugar de outrora? Quantas cicatrizes nas malas. E nunca é demais sorrir pra cara do tempo que deu uma volta enorme para nos esfregar no peito uma ânsia estranha por viver mais e testemunhar pacientemente o que mais vier, antes da última hora, durante o pouso final da última borboleta, cor de laranja, cor de todas as coisas.

Se o técnico de som soubesse que as malas são borboletas...

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