Antes de partir, Dee Du observou por mais uma vez a casa. E pensou em escrever uma carta, para que a pudessem ler quando já pudessem ler. Mas Dee Du não se conformou com o resultado.
A carta de Dee Du era melancólica, misteriosa e singelamente poética:
“Seria, dentro dessa idéia difícil de compreender, necessário lutar contra o mundo, demente que sou, seria preciso lutar contra qualquer coisa que girasse ao redor do sol. Eu tinha que imaginar que a terra era uma bola de borracha na qual se podia encravar um punhal, causar um dano, estorvar qualquer que fosse a gargalhada que disso brotasse. Decidi que seria necessário, que apontado em minha direção estivesse o dedo em riste de um juiz.
Tolices desvendadas. Máscaras pisoteadas pela verdade dura e cruelmente crua.
Nesse sem fim de labirinto, talvez divinizando um voto numa vaidade suprema, teria que existir um modo de marcar com ferro a pele de um corpo adocicado pela acidez do meio. Mas qual modo seria esse? Seria pela escolha de um desfecho?
A pergunta ecoa sempre, por qualquer que seja a hora. Mas eis que soa a resposta e é melhor quem nem se revele mais a pergunta.
Foi boa a posse dessa contaminação passageira. Foi bom pecar por trinta segundos e ter na boca o sabor da língua da besta a roçar a alma em gozo e saliva. Foram sete passos antes do inferno. Figuras debruçadas ficavam ali coléricas, como se donas de todos os assentos das ante salas de todos os paraísos. E uma piedade veio até mim, herdada não por merecimento, mas por imposição na infância, de uma fé cristã, que deixei por anos descansando na ilharga de tudo o que eu considerei vivo e de importância aos meus titereiros
.
E eu corri a perseguir engodos. Acumulei mais de trinta potes de ouro. Minha poesia? Ah, meu caro... sei lá de toda aquela poesia.
Eu fazia o bem, diziam os meus cartazes. Eu fazia as pessoas se tornarem melhores do que eram entre os dias em que moravam em entranhas de mulher e aqueles, em que a volta é como um documento que nunca será escrito. Mas e nestes dias que sobraram? Dei com as caras de trinta e sete demônios e ri com eles e bebi com eles, justo eu, que amava a minha poesia, que amava os rios de minha aldeia e esperava a noite sem receio algum, a acender lamparinas perfumadas em citronelas.
Justo...
Mas a liberdade dos passos voltou.
Ela trouxe consigo um novo tempo numa caixa. Um tempo com cheirinho de artefato novo. Um tempo que fica estanque nessa vastidão que é a duração de um átmo.
O ciclo acabou.
Quem tiver um entender consigo, que o use nos outros, e entenda.
Quem não tiver nem os outros para furtar, que seja a carne dos risos, não os meus, pois de rir disso em nada mais careço.
Pois, de rir disso em nada mais careço.
novembro de 1979.
Dee”
As crianças lhe ficaram acenando com a mão enquanto ela se afastava dentro de seu Maverick maltratado.
O objetivo da carta seria talvez encontrar um objetivo, um perdão qualquer. Lá fora os caras usavam seu apitos e suas armas, era bem assim nos finais de setenta. Sobrava pouco tempo para a superfície naquele instante vazio. Dee ouvia em background, só em si mesma, qualquer música revolucionária e estrangeira de um cara que soprava uma gaita.
E foi assim que o Maverick sumiu pela estrada sem asfalto. Dentro dele, uma mala verde musgo, a velha guitarra acústica e Dee.
Lá fora um sol, que mal acabara de nascer.
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