segunda-feira, 11 de novembro de 2013

crônicas do pobre teatro

2

Cairia de espanto a criatura de espírito não tumultuado, que por imprudência atravessasse a cortina protetora. Veria-se metida num asilo perdido de gente desequilibrada e tranquila, que mais falava que vivia.

Na fuga, a velha surda era a mais pertinente, pois se evadia de tal modo, que sua falta mesmo que durasse dias, não fazia espanto ou gerava falácias. Vez ou outra ela aparecia a vender lençóis, ou catava dinheiro a oferecer rifas. Diziam alguns, que sua surdez era falsa, que a tudo ouvia com os tímpanos cirúrgicos de uma fofoqueira especializada.

Mas se a velha surda ouvia mais do que poderia entender, qual o ganho em fingir que não ouvia o que decerto ouvia claro?

Na sua casa lhe esperava o marido louco, que vez ou outra lhe expulsava aos chutes ou lhe trancava na cara todas as portas...

Fico a pensar nela, medindo o movimento das tardes sem muita matemática, sem nenhuma preocupação ou filosofia, conformada com a ideia de que sua única função no teatro era nos engordar com os quitutes caboclos que vendia de terças a sextas, ou mesmo nos fazer arquitetar uma degustação por pura piedade ou gula insípida. 

Ah, me era melhor a  velha surda, mais digna sua existência, que os poetas ridículos, que os músicos bêbados ou deslumbrados, que toda a decadente choldra artística da cidade que rastejava por aqueles corredores. Mais valorosa sua imagem, sentada ao canto do sofá, com sua cara redonda e óculos gastos, sem entender nada do mundo, ou se fingindo distante do alcance de todos os venenos de nossos verbos. melhor que quase tudo ao redor do palco, na realidade, que respirava sob as luzes frias...

O universo além das coxias, era um universo de criaturas assustadoramente simples...

monstruosamente simples, como flores de maria-mole.


Nenhum comentário:

Postar um comentário