segunda-feira, 20 de setembro de 2010

AOS OLHOS DE KLEINE FRAU - UM CONTO PARA AÍSHA


publico na íntegra um dos meus contos prediletos.


aosolhosdekleinefrau
DOMINGO, 8 DE MARÇO DE 2009
20.9.08
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.......a realidade está ao largo do corpo deitado...mas como digo isso assim agora se foi depois disso que a mim veio o sono e o bom cansaço de negar a todo instante que além do além disso pouco me cativariam os vícios, pouco me alegrariam as conquistas? e quando terei coragem de caminhar sem amparo enquanto me distraio a conferir as telhas inquebradas, a varrer da casa os estilhaços, a reler tantos papeluchos, a cultivar hordas imprestáveis? lutemos então lutemos! de olhos fechados! agora! a vida não está além das paixões confortáveis e em qualquer canto onde não se respira por máquinas ou mesmo no lugar onde dorme uma criança verde ou num velho a espreitar pela janela a cidade vazia depois da guerra? a verdade quem me dera fosse essa que me pregaram os gemidos de outrora no embriago dos perfumes e nos olhares quase em choro enquanto os portos se afastavam. observa estas mãos que nada sustentam e a nada acenam. vê que ainda assim me amparam posto que sabem: delas mantenho-me parte. vou daqui erguer os punhos com os ouvidos suspeitando teu ventre? senhora destes dias, meu casulo... corpo meu que também envelhece, a ilusão só é carne para os fados, e essa verdade está além do que se sente ao tato. já não basta que anteontem te jurei a vida e que ontem te quase criei um filho e que amanhã fecharemos ambos as retinas? lutemos então lutemos! de olhos fechados! agora! vamos a morrer sem riso, a esperar a trégua matutina que é esta vida tão tranquila dos que em vão e aos enganos ao sempre imitaremos? não é de agora que anseio aquela cegueira perdida que diante do mar e dos ocasos enxergava viagens sem procelas. a realidade, senhora, está ao largo da tua mudez, mas é nesta que me atrevo ao fronte, me dou conta, foi na calmaria que a nau e a procura do mar se tornaram parte e de lá jamais voltaram.

e foi assim que depois de seus olhos enveredou-se sobre mim a clara imagem de deus.


e depois dela me sinto tranquilo.
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6.1.08

35

acordo na espera silenciosa de kleine Frau. mas nada de trigal ou moinho giravento, nem sossego ou barco em calmaria. acordo há vários dias assim neste meu leito de sempre.
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Baudelaire dorme... unter dem Tisch ...

ouço a voz de Dirce que resmunga...
o balançar da cadeira da velha senhora...

a janela do quarto está aberta. a chuva respinga a cama... tento permanecer imóvel enquanto o dia cresce. é inútil. descobri essa arrogância dos cães soltos e nela me sinto viciado.

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desancore os portos! jogue ao vento as velas, quebre as amarras, voar é cair, meu caro, cair lentamente como quem procura um pouso nas altas vergas.


fiquei a cismar sobre tudo o que não disse, se eu o dissesse, eu não seria o puto que sou? mudariam, com o dito e o desdito, os meus semblantes?
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"grave-me como selo em seu coração,
como selo em seu braço;
pois o amor é forte, é como a morte!"


"antes que a brisa sopre
e as sombras se debandem..."


"deixe-me ver a sua face,
deixe-me ouvir a sua voz,
pois sua face é tão formosa
e tão doce é sua voz!"


parece-me que o dia tarda, solfejo alguma sinfonia inventada de minha infância. expulso Baudelaire debaixo da mesa com a mente em desordem, beijo com nojo as faces da velha senhora. me detenho ainda a escolher velhas partituras como se eu fosse o espala da noite e não mais o clown, me deixo um pouco a me levar em crina e arco pelo desvario da tarde.
ainda assim, não venço o que em mim construí invencível: estar sempre a partir para longe sem deixar no chão as marcas de nenhum passo. quem sabe somente o sibilo das crinas, e mesmo isso suspeito que não ficará, música e insônia é duna areia e vento...
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nesta cidade, depois da chuva, cupins criam asas e se entregam . morrem alimentando morcegos, caem pelas valas, se debatem em lâmpadas... e eu me pergunto como um idiota se essa vida deles tem alguma validade.
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sim...
suponho que tudo que aconteça, aconteça depois do início do vôo...




"quem é essa que desponta
como aurora, bela como a lua ,
fulgurante como o sol...?"


"afaste de mim seus olhos,
que seus olhos me perturbam!"
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.agora
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desancorar...
o sussurro de minha última coragem.
alcanço vida própria? vou durar assim até a próxima tempestade? ... que me importa
.agora
se agora...
meus pés já nem tocam o chão


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34

sinto sede e assim me mando dali em busca do Café Imaginário. novamente o velho Herr Ober com sua postura altiva...
o dono do bar me faz um gesto, deseja que eu faça a mesma velha música para bêbados, diz que adquiriu um italiano com cravelhas de ébano e gostaria de ouvi-lo ressoar. mas estou no ato do vilipêndio... mal posso ressoar a mim mesmo...

ele retorna carregando algo como uma pequena criança...

a noite não é devidamente silenciosa para melodias em tom menor. tudo bem, o timbre pode curar minha alma. mas vez ou outra, no centro das execuções me envergonho do que não sinto...
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o que não sinto?
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nunca fui bom o suficiente para tocar em total ausência...
mas o vinho e a noite....
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ah, o vinho e a noite...

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Postado por leererzeit às 09:04
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33

não sou aquele no qual estou habitando. sou um bernardo eremita fugindo por entre os corais, dentro de uma folgada e frágil concha...

as crianças dormem por sobre os bancos da praça do pescador aos pés de uma estátua de mármore que imita abençoar corações desorientados. não me sinto em nada diferente delas. distribuo por ali os últimos confeitos, uma me direciona sua arma: olhar esquisito de medo e desprezo. o mendigo ao longe ainda grita por mim... estremeço num gesto quase obsceno, ele entende, balança a cabeça, rosna um palavrão e e estanca.
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Postado por leererzeit às 08:56
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morro na velocidade que morre a minha fantasia. sou um personagem criado por um homem comum. ando pelas paredes de sua casa, observo ele dormindo. vejo no seu rosto o meu próprio...

mas não tenho coração orgânico. sou apenas a grande criação do esquizofrênico, do esquipático, do homem em fuga de sua multidão de mal formados eus.
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Postado por leererzeit às 08:45
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"cuida do que me mostra".

desço até o boulevard e me detenho diante da estação. os mendigos se unem ao redor de algo que ferve. "chega aqui, velho companheiro". as canoas com seus mastros balançam na enchente. o cheiro característico dos portos me relembra momentos de partida. "chega até aqui, velho companheiro", insiste, grita por mim...

há milênios que estou surdo. há muito que guardo a pretensiosa vontade de mostrar o que nem vi. de escrever numa falha sintaxe, tudo o que nunca vivi...
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Postado por leererzeit às 08:39
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na areia, as palavras ressecariam.
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"seria mesquinho e até vil, acreditar que é fácil ser só".
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e eu gritaria: "Quebre-se o comedimento! Rompam-se-se todos os tímpanos prisioneiros! eu, pobre diabo. inventando peçonhas, personificando sonhos. pobre palhaço a construir ilhas desertas. criatura pequena a se disfarçar com as peles do que não existe. eu a querer distrair o mundo com minha música. eu a querer fugir para a música mesmo sabendo que não há fuga. danem-se com seus aplausos! as mãos do maestro estão endurecidas e esguias e trêmulas".

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Postado por leererzeit às 08:32
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29

mas afinal a cidade vence a tempestade. logo estou no túnel de mangueiras em frente ao hotel central. admiro-me da antiguidade dos prédios do centro histórico e daquela outra dos que por ali caminham silenciosos.

sinto a desgraçada tristeza dos fracos, medido, pesado até a alma.

as folhas do túnel caem em giramundo, uma confusão de ideias me tira a vontade de voltar pra casa... dar comida ao cachorro Baudelaire... observar se a velha senhora ainda vive escrava de seus afazeres e... se colocou o lixo pra fora... encontrar com Dirce sentada ao meio fio... a conversar com o filho já e ainda não morto...
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não, definitivamente isso de retorno não. preciso pensar no que fazer...
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ser racional? de novo a racionalidade me estorvando? de novo o reflexo descendente do milagre? de novo toda a lógica me abocanhando os passos?
as folhas do túnel caem ao encontro do gramado. não consigo ver nada mais que poucos e lentos desmoronamentos.
parafusos...
aviões de segundas guerras...
cães, gramas, cantorias.
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as folhas do tunel...
sinto-me só.
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Postado por leererzeit às 08:13
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28

a tempestade temida precipita...

me perco nas vagas que se debatem contra mim.

desmereço o que entendi merecer.
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Postado por leererzeit às 08:06
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o moinho não gira sem que a menina se esconda nele. e quando kleine Frau se esconde, a máquina desse morrer sem fim desliga e o vento cria forças para girar as hélices do tempovazio. o moinho gira a me dar sono. relembro as músicas que a velha senhora de minha casa me cantava tentando-me a dormir.
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schlafen sie
schlafen sie...
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niedriger Konstantin..
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estou aqui, auf der Sand, quase a cair no sono que me amanhecerá. os pedaços normalmente indefinidos da menina se encaminham ao moínho, ultrapassam a cerca, somem de minha vista.
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schlafen sie
schlafen sie
und träumen
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zerafin...
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sou, quem dera, o palhaço de sua poesia, o espantalho de seu trigal. percebe-me um descuidado? pudera ... "bravo pour le clown!".
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o giravento mortal me transforma. não há razão de permanecer aqui sem a razão de tudo.
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schlafen sie...
schlafen sie...
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aperto os olhos e espero a próxima tempestade na travessia...
"quando eu voltar, prometo, direi a ela qualquer coisa sem sentido".
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do outro lado já não serei o mesmo. terei no peito o grande amor de minha vida por algo que inventei. amor de olhos bem abertos para a imensidão, desorientado. o que esperar de quem se deixa navegar sem remos, levado à corrente para a imensidão do desrumo?
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só mesmo a insanidade imortal dos espíritos...
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und träumen...
zerafin.
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Postado por leererzeit às 06:43
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cuidar: imaginar, meditar; cogitar. julgar, supor. aplicar a atenção, o pensamento, a imaginação. ter cuidado, fazer os preparativos. prevenir-se. ter cuidado consigo mesmo...
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Postado por leererzeit às 06:34
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"os olhos de kleine Frau são frágeis.cuida do que mostra, pois, uma vez rompidos, o regresso é embaraço".
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Postado por leererzeit às 06:28
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sim, não demora muito, cairei sem vida, serei um personagem morto. deixarei de ser esta carne estrutural e morfológica. se desconectará toda a sintaxe, se apagará em mim toda a frágil estrutura interior dos períodos.tudo me ocorrerá a me transformar em meros papeluchos vademécus.
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sim, minha carne mundana deseja a existência física da menina, confesso, e meus sentidos me gritam sediciosidades serafinas. crio a imagem palpável da mistura de seu cheiro, a sonoridade de seu semblante em movimento. encosto-me ao seu peito e ouço seu coração. aperto-me ao seu colo, amparo-lhe as lágrimas. com os lábios, sinto seus cílios, beijo-lhe a fronte...
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lembro-me da voz da velha senhora de minha casa a recitar versículos...
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"E o canto de harpistas e músicos, de flautistas e tocadores de trombeta, em você nunca mais se ouvirá; e nenhum artista de arte alguma em você jamais se encontrará; e o canto do moinho em você nunca mais se ouvirá...".
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me transformo nessa confusão ambulante.
não sei mais o que sinto.
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Postado por leererzeit às 06:01
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23

percebo que me olha, mas não vê aquilo que em mim é divisível sob o sol da praia do sossego. desviou o olhar para minhas pegadas e com isso constatei que o que de mim lhe alcança são somente meus resquícios. enxerga em mim o início de um estuário. deve saber que depois dos pequenos montes entre o céu e a água, com o bote no qual eu vim sem remos, pode alcançar aquele mar repleto de adeuses, choros, tristezas e dores. na praia do sossego, ao lado da menina que não me enxerga, posso voltar a estar vivo, suspeitando que estar vivo seja de fato um respirar com a ajuda de aparelhos, com o fim necesário sempre ao alcance de meus dedos.

kleine Frau escreve palavras, de início não eram verbos a mim. mas eu me sentia neles, palavras de areia vento e onda, que pulsavam e morriam a cada avanço do mar.

no seu olhar - a única imagem que dela posso reter de fato na memória - enxergo um rosto combalido, a gravura de tudo o que sou, em preto e branco, nenhuma cor me daria beleza, nenhuma luz me faria resplandecer mais agora tal como essa que me supõe tão inerte. se um dia eu percebesse que ela realmente estaria a me enxergar, ah... cairia todo o meu reino, toda a minha babilônia seria louvada por estar destruída. "cuida do que me mostra". ela escreve. "o retorno é embaraço".
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Postado por leererzeit às 05:30
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como não dar mil nomes a este lugar? ao objeto giravento dei o nome de moinho; ao tecido branco que isola meus passos dei o nome de cerca; ao mar dourado ao redor do moinho dei o nome de trigal; a esta praia dei o nome de sossego. ..
gostaria do passo ainda não dado, o mesmo que depois do último suspiro me será sem volta. tal passo me levará ao tempo dos desnomes. um lugar que é um tempo bem mais tranquilo que a praia do sossego. ali, tudo o que estou aqui a ser e tudo o que sou aqui a estar fingindo, me serão coisas inomináveis. por agora inominável me é somente a menina.

a imagem de kleine Frau me é imagem apenas na alma. o seu olhar se mostra a mim como desenhos de absortos. vejo seu rosto de perfil. pedaços de sua anatomia. fios de cabelos ondulantes . de resto, o que faço para completar a musa do agora,  faço como a encobrir lacunas. não como um títereiro e seu boneco involuntário, nem como o solitário e seu puzzle de dez mil peças, mas como alguém cansado, alguém que deseja líquido e livre ... solto, disforme na gravidade zero, o sentimento que brotou em mim dos olhos de kleine Frau.
Postado por leererzeit às 04:59
5.1.08
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tenho a súbita sensação de alguém. abro os olhos e me vejo refletido nos de kleine Frau. está diante de mim e nisso me basto de ser contente.

Postado por leererzeit às 13:29
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20

na volta às ruas da cidade estão desertas. penso que se fechar os olhos serei teletransportado. mas no caminho nada me ocorre de imediato. a aurora avermelha um pedaço generoso de céu. adormeço no trapice de uma casa de inúmeras janelas...

ouço o som das cortinas se fechando e os aplausos do público. o espala da noite acaba de surgir. ele gesticula em crina...
uma multidão de sonoridades tão pouco livres.

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Postado por leererzeit às 13:23
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há alguma desventura aqui nesta mesa do Café Imaginário. vem a mim o mesmo Herr Ober que me vêm sempre e nunca nada me diz por conta de saber que jamais respondo e nada peço. a moça ao meu lado movimenta os lábios acompanhando a música. o cantor me reconhece e cumprimenta com um aceno de cabeça. e eu tenho que mostrar-me extasiado com o que ele canta, tenho que ouvir sem entender o que diz de mim, tenho que ouvir os aplausos e forçar um sorriso amistoso. olho aquelas pessoas perfumadas e não sinto nenhum alívio. espero ansioso que um sussurro venha aos meus ouvidos e me ordene a desancorar-me a alma. a moça ao meu lado já não é mais a mesma depois do quinto tiaubee.
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Postado por leererzeit às 13:17
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como os cantadores bêbados envelheço na cidade. sei que em outro universo o moinho gira. kleine Frei se esconde na máquina do entretempo.

"eu me escondo ainda por aqui?"

se a voz do títere insistir em me levar ao porto não serei um tolo a aceitar a oferta. não. há uma vida concreta e sem medos maiores aqui onde estou! posso comprar alguns sorrisos, enfiar moedas nas máquinas de cerveja, gaitar depois de estórias sem graça e me fingir interessado pela vaidade das camélias.
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Postado por leererzeit às 13:11
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da janela posso ver o rio...

e sei que agora envelheço pois o tempo corre. no meu pulso... assusto-me, rugas, tremores e um relógio! papéis sobre a mesa e projetos de futuras seduções da massa. preciso sentar diante da máquina e esperar que a arquitetura dos verbos me desmorone.
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Postado por leererzeit às 13:07
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Baudelaire me espera ansioso por comida. demora-se quinze minutos numa festa que nunca entendo. se eu tiver sorte, terei logo sono. caso contrário: brincadeiras com as palavras; fugas para os bares da cidade, construção de um novo mundo fictício.
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Postado por leererzeit às 13:00
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é claro que chove na cidade apressada. pelo retrovisor vejo rostos enxovalhados por tintas de carimbo. vejo casais que se escondem nas marquises. passam por mim milhares de seres em agonia. apalpam os bolsos, se apertam com medo dos ladrões e espraguejam baixinho a má sorte que é estar sempre em atraso.
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Postado por leererzeit às 12:52
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maldição

desperto em meio ao caos da cidade crescente e diante do chafariz da praça das sereias ouço cigarras em contratempo ao vozerio. há um homem que vitupera com dedo em riste entre moças enfiadas em roupas sintéticas. algum tumulto se forma debaixo do sinal vermelho, a cavalaria se apressa entre automóveis amotinados enquanto uma mulher de olhos claros me pede esmola.

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Postado por leererzeit às 12:42
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diante do moinho adormeço a solfejar a mesma sinfonia.

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Postado por leererzeit às 07:56
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"me senti como se atravessasse uma flecha, sem luz. através de um sentimento inabalável..."
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Postado por leererzeit às 07:54
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no barco no qual cheguei até aqui não havia remos...

fui trazido em corrente. uma travessia derivada da vontade de não ficar.

mas agora por olhar tanto e tanto o giravento do moínho sinto-me no antigo sono. o mesmo que me sacudiu neste entretempo que de acordo com minha contabilidade não passa do segundo de um flerte...

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Postado por leererzeit às 07:41
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10

estou assim sentado ao lado da cerca e meus olhos não se libertam do moínho. suspeito que se me deixar dominar pelo não-olhar a menina poderá fugir levando consigo a ilha que construí durante anos. me restaria sem isso o descontentamento lento da minha insofismável velhice?

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Postado por leererzeit às 07:36
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quando criança eu me dedicava a construir pipas no verão. na minha casa de janelas de vidros coloridos eu habitava em companhia de uma mulher que morria aos poucos. que ingenuidade a minha em não saber que eu mesmo também nela me desvivia, já quem em determinado tempo eu lhe era também parte do corpo. no céu as pipas eram a extensão de meus braços. quem as visse de muito longe também me saberia e se indagaria sobre minha ventura.
acredita: parte de mim é capaz disso porque parte de mim é aquilo que construo.
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enfim, eu as soltava ao vento, imaginando-as mais belas desse modo que presas a mim. e todas as outras crianças corriam a querer alcançá-las para que depois de lhe emprestassem nova altura, nova promessa de nuvens e novas liberdades. mas se demoravam na coragem de se atrever. até que a linha se prendesse em algum arvoredo. era quando aquelas estruturas de tala e papel de seda colorido alcançavam vida própria, livres dos desejos de seu criador. durariam em outra vida até a próxima queda, revelariam a força e os rumos dos vários ventos e não se desmanchariam antes das tempestades.
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Postado por leererzeit às 07:19
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8
como seria sua imagem completa?

seus passos em camaralenta, suas pegadas profundas. o rosto sereno, vez ou outra num sorriso pouco evidente, acalma os cabelos que lhe caem aos olhos e aperta o vestido contra os seios.
logo chega o caminho que leva ao trigal. ela transpõe a cerca branca, a mim intransponível, e desaparece na plantação. pouco depois a vejo ao moinho que por qualquer motivo que não entendo se põe a girar e a ranger a mesma sinfonia de meus solfejos de menino.
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Postado por leererzeit às 07:08
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7


ouço o mar e seu estertor eterno, o pozidon que se debate e nunca morre. vejo o trigal limitado por uma cerca branca indimensionável perfeitamente construída intransponível.
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ao centro... um moinho de vento que não se move.
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mas como? há vento aqui para mover encalhados encouraçados!
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suspeito que a tudo eu só perceba com esse olhar que possuo no canto dos olhos. de fato não me desvio o rosto da menina que segue sem pressa ao giravento estanque. nada nela eu poderia ver sem vento. nada nela existiria sem minha vontade.
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Postado por leererzeit às 06:58
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como despertar ao meu rumo os olhos da menina? e dizer bem perto de seus ouvidos com o marasmo de minha boca sem risos que estar entre o trigal e o mar era um sonho arquitetado somente por mim. quis lhe obstar a permanecer ali, quis lhe indicar a entrar no bote e se deixar levar a uma ilha somente sua. mas os sussurros eram opacos, por temor jamais os quis por ela ouvidos, pensei-me aí um louco tal como Dirce ao filho imóvel após o impacto de uma panacéia de inúteis grunidos.
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Postado por leererzeit às 06:49
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5


o pequeno bote trouxe-me até aqui. posso ainda divisá-lo na calmaria, não se afasta mesmo sem estar preso, seu reflexo inverso é estanque, sua fisionomia é a mesma que carregam alguns amantes. a tempestade vindoura me parece agora um blefe. estou no tempo esvaziado - tempovazio, algo que guardei numa caixa de papelão e não mais encontrei...
vejo o vento em rodeios na menina, sua imagem a mim se revela em partes entrecortadas, e o esvoaçar de seu vestido é parte de uma cena que medi em filme mudo.
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não me pode ver. tento lhe tocar os ombros mas vacilo, temo sua inexistência. o despertar me é um monstro incômodo que me atormenta. nem sei se mesmo durmo, nem sei se mesmo vivo...
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Postado por leererzeit às 06:03
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4

suponho:
a menina está com o queixo apoiado nos joelhos.
prende-se livre ao mar. não pode me enxergar pois não percebe ainda os movimentos tolos que faço nas pontas dos fios.
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Postado por leererzeit às 05:59
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3
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Eu que já tanto envelheci...
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que já me vejo em desejo de desligar os sentidos, que estou como que perdi na guerra o rebento único. que apontei o dedo à lua cheio de medo das crendices e me jurei em falso setenta e cinco mil vezes o meu nada de ilusões...
justo eu...
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redescobri a imaginação.
coisa conhecida tão bem pelos escravos e pelas crianças
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encontrei seu pequeno bote ancorado por ali.
segui os movimentos que a voz de meu títereiro me indicava.
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"ande, velho e louco. desancore! ao mar sem remos! pois se vier a tempestade? só depois da travessia. pois é esta sim que durará o restante da tua vida inteira. é a travessia bem mais que os portos. desancore-se do movimento. feche os olhos e durma. acordará dentro de si, encalhado na praia longilinea entre a montanhacéu e o absurdomar".
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Postado por leererzeit às 05:32
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2


"Não vivi a juventude.Vivi o passado; era para mim o futuro mais próximo".


e o vento... e o sol...

com o que me conformei do olhar de kleine Frau em fotografia construí este universo. me vi pois o palhaço salvo dos vândalos pela misericórdia incomum dos carnavais. eu, a criatura esquecida esculpida em monumento de lioz. uma tragédia em Mi para alegrar a tristeza do arlequim.

me perdi no branco e preto da fotografia. me fiquei estanque nesse tempo de calma. como um senhor que se desmancha de amores e paciência na espera da moça do reclame. tudo tudo tudo isso, acredite, me veio surgindo das horas de insônia e do olhar antimovimento em papel de kleine frau.
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Postado por leererzeit às 05:22
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1
devo ter adormecido ou morrido de uma vez.
o que vejo é o que construí por longos anos.


Há um cercado a separar estrada e trigal. Há uma casa que me vem como que deserta sob castanheiros.
quem seria o louco a morar sob castanheiros?
há no liame da vista uma montanha que é ao mesmo tempo o céu.
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o dourado do trigo em vento me deixa nostálgico. sempre quis ter ao largo de minha morada algo assim posto que nunca o tive, algo assim que nas manhãs me pudesse esvaziar com essa paz de me sentir pequeno, com essa mentira sossegada de não me desejar maior. e eu me veria inteiro, com a tranquilidade de não desejar outras partes em mim, pois eu seria o que sempre fui.
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Postado por leererzeit às 04:41
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os olhos da menina me fazem sorrir...e eu penso até que é possível que eu tenha à janela um olhar de busca...o sol entra em minha morada com um invasor benigno...sinto um súbito desejo de ter com o mar.
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Imaginar ...
a verdade é ausente de seu sentido. a linguagem se desfaz em sua estrutura. todas as certezas se esvaziam na infinitude de tudo o que desmente as sensações.
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nos olhos da fotografia me vi refletido. não transformei isso em fuga, loucura transformar isso em fuga. desde moço solfejo uma canção sempre que sinto isto que não chamo por nenhum nome. não, não transformei essas sinfonias imaginárias em fuga. entre a minha vida em solfejo e os olhos da fotografia aquele mundo de estranha afasia já existia em minha espera.
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desancorar...
eis o sussurro de minha última coragem. desancorar, minha voz é um arco-íris rouco. desancorar, os olhos da fotografia me clamam em silêncio, o solfejo me vem como sinfonia. se eu tiver que me dar novo nome agora, dou-me: vencido.
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S. NUR

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