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Sim, eu estava emputecido ali, sentado e respirando fundo, rodeado de gente que um dia me falou de abrir o coração a deus, e eu ficava me imaginando com uma adaga na mão, com meu músculo pulsante sobre uma pedra, rasgando-o e gritando ao onipotente inventado pelos estrangeiros: aqui está! Aqui está! E aqui estou, sentado com gente que agora destampava garrafas de cerveja e filosofeava com um requinte tão incomum que me fazia ficar pensando...
Um deles, chamado Hermosso, cara grande e feio que fingia ser meu conhecido a ponto de me destinar certas intimidades, mal abria os olhos, e quando o fazia era para não perder de vista o decote da cantora de bar, que cantava uma música corrompida com muitas metáforas, tantas que me faziam esquecer até o que pretendiam metaforear.
-conheço essa aí desde pequena – disse um que estava acomodado na mesa á minha esquerda. Disse isso a me olhar, como se me importasse essa informação, como se conhecer alguém desde pequeno fosse o mesmo que conhecer alguém. Disse como se o fato dele a conhecer assim facilitasse as coisas a ela.
-É tão deprimentemente nostálgico - disse o outro da direita, que parecia contrariar o primeiro – tão triste e nostálgico quanto as cigarras do Emílio.
Cigarras do Emílio? O que esse cara sabe sobre as cigarras? Mirei-o bem na cara, tentando desvendar a fisionomia de quem se atrevia a tirar do bolso uma frase tão descabidamente poética. Discordo disso de dizer que as cigarras são cantoras tristes. Sim, são cantoras de despedida, mas não só se entristecem num afastamento os viciado em posses e domínios? As cigarras do Emílio só cantam...
Porra, a cantora se encosta num velho fliperama. Dali dá pra ver bem suas pernas, os joelhos volumosos, a saia de folho preta e um corpete. Está de costas e dança. Penso que não é tão bela como dizem. Seus cabelos escorrem pelas costas, a luz que vem dos carros desenha movimentos nas suas costas. Ela dança e canta.
- diabo de criação gostosa e medonha! E o que é isso que ela balbucia? – resmungou o cara das cigarras - que merda! Não dá pra baixar esse volume? Não viemos aqui para ouvir isso, viemos para beber, não é? Quando viemos para um bar, viemos para beber, porra. Agora se ela tirasse a roupa, seria mais divertido, gosto desses fiambres branquinhos...
Com coisas assim nem se concorda nem se discorda. Olhei para o meu copo de cerveja e senti aquela obrigação por esvaziá-lo. Não me atrevi. Quando a cantora deixou de rebolar e cantar eu já havia desistido de usufruir da função maior de um bar. Pedi alguma coisa para comer, não lembro o quê...
Hermosso via tudo com os olhos que só se abriam vez ou outra. O canto de sua boca se retorcia. Uma espécie mal escrita de “o sorriso do bruto para a noite dadivosa”. A cantora na máquina de fliperama me lembrava o filme TÓKIO EM CHAMAS. Rebola meu bem, sussurrava Hermosso, por baixo dessa saia de folho há uma vagina cansada a esperar por um principe que pague a pernoite e algumas etílicas fileiras brancas... rebola e canta, meu bem. Tenho um possante lá fora que custou caro e uma coisa que vai preencher o vazio de teus olhos rararara! É assim desde antes de salomé! REBOLA GOSTOSA!!! Herodes comeu ela? O que vocês acham? Rarararara.Chefe!!!
Vários bilhetes se amontoavam sobre a lâmina de vidro do fliperama. As cigarras do Goeldi não sabem ler e cantam sempre a mesma velha coisa natural e sem rima: ssssss ssssss ssssss! Não pedem permissão e incomodam as senhoras de alta classe em seus apartamentos. Há muito mais alma nisso de sibilar por volta das cinco, não, nada de pedidos baby, detesto Chico senão por Chico calado. Havia muito mais alma em tudo que não fosse aquilo.
Ao final a moça que cantava desceu do patíbulo e lambeu com certa vaidade juvenil a boca de um carinha que estava sentado por ali quietinho desde o começo, talvez a única criatura a motivá-la, por estar, decerto, cego . Ouvi aplausos? aplausos de bar de beira de rua não me soariam como insulto. Ser aplaudido por bêbados e por gente que só quer trepar é tão mal assim. É, onde no mundo haveria um público diferente?
No meio do vozerio alguém gritou: “É isso aí gostosa! Belo reboladinho rarararara!”.
Reconheci. Era Hermosso.
Depois novamente a mesma voz com uma outra poesia...
“já se pode ver ao longe
A senhora com a lata na cabeça
Equilibrando a lata vesga...”
Catarina hoje me informou ser uma letra de Chico César e de Vanessa.
“O que faz o equilíbrio cego a lata não mostra
O corpo é que entorta, pra lata ficar reta”.
Descobri dia desses que “equilíbrio cego é o modo como chamam aquele rolo de pano usado pelas sertanejas entre a cabeça a a lata d’água.
Não quis ouvir mais nada. Se quem canta ouvisse o que canta
Se quem toca ouvisse o que toca
E se quem ouve soubesse que saber ouvir não basta...
Que merda. Deixei o copo de cerveja intacto sobre a mesa ao lado de uma nota de cinquenta e Hermosso em fim de noite, jogado no chão, enquanto os garçons já empilhavam as cadeiras.
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